É consenso que a situação ficou insustentável. Há grandes times brasileiros que não conseguem trocar três passes sem que a bola seja tocada por um jogador pertencente a um investidor. Em 16 de agosto de 2013, publicamos um post com o título “Pra que time você torce: o do Uram ou o do Delcir?”, em que discutíamos, entre outras coisas, a contradição que convive com o fato de vários jogadores pertencerem ao mesmo grupo de investidores e defenderem clubes diferentes. Certa vez, ao ser perguntado sobre o seu futuro, o recém-aposentado lateral-esquerdo Kléber respondeu com uma frase de cair o queixo: “Jogo no time em que o Delcir mandar eu jogar.” Delcir é Delcir Sonda, principal acionista da DIS, empresa que tem participação num monte de jogadores do futebol brasileiro.
Na última sexta-feira, a Fifa anunciou o veto à participação de investidores nos direitos econômicos dos jogadores. As notícias publicadas atribuem a medida a pressões da Uefa e, especialmente, da Federação Inglesa, o que é suficiente pra gente encarar a proibição com um olho no padre e outro na missa.
Ok. A é hoje o campeonato nacional mais empolgante do planeta. Copa do Mundo à parte, o melhor jogo de futebol a que assisti esse ano foi Arsenal x Manchester City, dois a dois, no Emirates Stadium, quando estiveram em campo 18 jogadores que participaram da última Copa, sendo dois campeões (Ozil e Mertesacker) e três vices (Zabaleta, Demichellis e Aguero). Pelas minhas contas, o Brasileirão inteiro tem menos da metade disso. A disparidade tática é gritante, a qualidade dos gramados é incomparável, a média de público nos estádios é bem maior lá do que cá. Entretanto, convém desconfiar de medidas moralizantes propostas por uma federação que estende tapete vermelho para o dinheiro de renomados contraventores internacionais. Aí vale, né?
Como vale, também, o excesso de mercantilização da liga inglesa, que não conseguiu se reinventar sem perder a ternura – o que incluiu um violento aumento no preço dos ingressos, menos pela necessidade de crescer a arrecadação com bilheteria e mais pela perversa estratégia de substituir os mais pobres, que tornaram o jogo popular, por um tipo de torcedor capaz de se entupir com os caros produtos vendidos nas novas arenas. (Já indiquei duas vezes aqui no blog, e não me acanho em indicar novamente, o imperdível texto “O esporte que vendeu a sua alma”, de Marcos Alvito, publicado na edição 15 da piauí.)
Resumo da ópera: há muito o que aprender com a profissionalização e a parte organizacional das mais importantes ligas europeias, mas também há o que questionar. É bastante possível que, comparado a Roman Abramovich, o empresário português Jorge Mendes mereça a canonização. Mas Abramovich pode tudo, porque ele simplesmente comprou o Chelsea inteiro e não tem fatias de jogadores: é tudo dele. Vejam, não estou defendendo Jorge Mendes; apenas não estou entendendo bem.
Claro que é preciso respeitar os argumentos de quem se apoia no bom momento técnico vivido pelos grandes clubes europeus e na discutível necessidade de os nossos se transformarem em empresas, mas que diabo de empresa bem gerida é o Chelsea, que na temporada 2005-2006 deu um prejuízo de 80 milhões de libras, na de 2007-2008 perdeu 66 milhões de libras e seguiu nessa toada até 2011-2012, quando conseguiu lucrar 1,5 milhão de libras? Um sanduíche de pernil com abacaxi do Cervantes para quem pensar em lavagem de dinheiro.
Outra coisa que chama a atenção nesse embrulho é a absoluta descrença com que nós, brasileiros, recebemos a notícia. Paira no ar a sensação de que será impossível evitar a burla. Também penso assim, embora forçado a reconhecer que, se há uma coisa no mundo da qual nosso futebol morre de medo, é a Fifa. Por causa dela, aceitamos passivamente a realização de partidas oficiais em mais de 3 mil metros de altitude, não retiramos nossos times de campo quando há demonstrações covardes de racismo, submetemo-nos a decisões tortas de tribunais esportivos pra lá de fajutos. A Fifa pode não gostar.
Há quem veja, na nova ordem, o impulso que faltava para os nossos clubes voltarem a se preocupar prioritariamente com as categorias de base – hoje eles se preocupam mais em manter boas relações com os investidores. Você, que é tão flamenguista quanto o blogueiro, me diga aí: há quanto tempo o Flamengo não revela um jogador de verdade?
Há quem perceba a intenção da Fifa apenas de proteger a si mesma, isentando-se de qualquer responsabilidade em possíveis desentendimentos, como os que vêm acontecendo entre o Futebol Clube do Porto e o fundo de investimentos Doyen.
Há quem desconfie de uma ardilosa manobra dos grandes clubes europeus a fim de invadir a área de brasileiros e sul-americanos, que se tornarão ainda mais vulneráveis sem a ajuda dos investidores. (Neymar, por exemplo, teria ido embora do Santos muito antes do que foi.) Nunca se mostrou tão adequado o clichê “não tem mais bobo no futebol”. Principalmente fora de campo.
Em momentos de incertezas, Tancredo Neves costumava recomendar, sábia e mineiramente: “Só examine a espuma depois que as ondas pararem de bater.”
A maré desse assunto ainda está alta.