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Seu shortinho é político, Anitta

Não há mais espaço para isenção no mundo das celebridades

Fabiana Moraes | 30 set 2018_08h00
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Há muito tempo, em um reino encantado, as celebridades podiam habitar seus Olimpos confortáveis e distantes da vida dos outros, sempre apartadas daqueles seres cujas existências não foram abençoadas por qualidades mágicas. Suas piscinas, suas viagens, suas compras, seus casamentos, seus divórcios, seus nascimentos e suas mortes: nós, os não abençoados, assistíamos ao espetáculo de suas vidas enquanto tocávamos, resignados, as nossas. Mas um dia inventaram a internet. Mais tarde, o smartphone e as redes sociais. O trio se casou e pariu vários fenômenos, como a diminuição da assimetria entre os célebres e os espectadores, entre quem é visto e quem vê – e essa nova relação vem marcando o debate eleitoral brasileiro. Pode não ser assunto de seu comentador político favorito, mas o fato é que, no balaio formado por discursos de violência, crise de representatividade e armas contra a democracia, os famosos possuem um peso fundamental: detêm um poder só possível a quem domina computadores, celulares e retinas de milhões de pessoas.

A base de fãs de Anitta sabe bem disso – e não deixou por menos. Entende que a visibilidade da cantora depende essencialmente dela, logo a manutenção desse afeto tem um preço. Desde o assassinato de Marielle Franco em março deste ano (quem matou Marielle?), a artista vem tendo seu carisma midiático dilapidado. Naquele momento, seguidoras e seguidores da cantora cobraram uma fala pública que demorou a chegar e, quando veio, apareceu de forma escorregadia e um tanto aerada. Anitta colocava a morte brutal da vereadora carioca na conta de mais um crime provocado pela violência, enfraquecendo a provável politização do ataque. Foi a primeira vez que a artista, vinda de uma favela como Marielle, mostrou a sua nada sutil técnica de Como Parecer que Saí de Cima do Muro Enquanto Comando as Massas a Partir Dele.

Tal estratégia voltou à tona agora, dentro do liquidificador chamado Eleições 2018, quando o golpe na imagem da “diva!”, “poderosa!”, “rainha!” se revelou bem forte. Novamente instigada pela base de fãs a dizer o que pensa sobre um candidato claramente homofóbico, racista e machista, a cantora fez playback do discurso escorregadio: “Meu voto é secreto, peço respeito, sou contra a homofobia, vocês me conhecem.” Imediatamente, seu capital eletrônico-afetivo despencou entre parte de suas admiradoras e seus admiradores, a maioria alvo das falas violentas do candidato-capitão da reserva. Resultado: nas mesmas redes que a notabilizaram (quase 31 milhões de seguidores no Instagram, quase 10 milhões no YouTube, quase 14 milhões no Facebook), Anitta foi descontruída e confrontada. O golpe foi duplo: o primeiro, por contraste, veio da jornalista Rachel Sheherazade, que, a despeito de suas posições conservadoras, colocou um #elenão em seu Twitter – ou seja, se mostrou mais coerente que a artista e ícone gay. Depois, surgiu Daniela Mercury com uma dinamite: seu vídeo chamando a colega para se posicionar publicamente é, sem dúvida, uma das peças políticas mais poderosas dessas eleições. A partir dele, criou-se uma reação em cadeia fazendo com que centenas de outras pessoas públicas, com variados graus de visibilidade, falassem o #elenão. Esse movimento se globalizou (com nomes como Cher e Madonna na reverberação) e estava ontem nas ruas impregnadas não só de mulheres, mas também de homens, LGBTs e minorias diversas. Daniela sabe que não pode se apartar do público e que permanecer no Olimpo – ou no muro – não é mais uma opção, principalmente quando a intolerância bate à porta.

Com a pedagógica pressão de seus fãs e colegas, o que Anitta deve estar finalmente aprendendo é que pessoas célebres, aquelas que ocupam constantemente nossas telas e conseguem uma grande visibilidade para si, precisam prestar contas dessa aparição massiva: acenos e beijinhos e selfies já não satisfazem os seguidores. Mais: Anitta também deve compreender que rebolar de shortinho tendo uma favela ao fundo é um ato político, pois naquele espaço convivem tanto o shortinho quanto o extermínio policial, tanto o biquíni de fita isolante quanto as milícias. Ao cantar sobre os primeiros, mas silenciar sobre os demais, ela sugere um alcance limitado de sua propagada “favelidade”, enquanto seus fãs avisam que a Maré e o Vidigal (RJ), o Alto José Bonifácio e a Charneca (PE), a Vila da Barca e o Assentamento Sideral (PA) não podem ser tratados apenas como cenários de hinos pop. É preciso se comprometer com eles. Com um agravo: alguém que deriva desses espaços deveria ter uma visão mais afiada sobre isso.

A tentativa de não tomar partido destoou da imagem que a cantora já homenageada na Parada LGBT de São Paulo vem construindo para si: ao dourar a pílula, uma postura conservadora para uma rainha gay, ela por pouco não entrou no vasto time de personalidades que fala abertamente sobre política, gente famosa que anuncia suas bandeiras e até seu voto. Nesse sentido, é eloquente o vídeo de 1989 em que artistas como Djavan, Gal Costa, Chico Buarque, José Mayer, Marieta Severo, Reginaldo Faria, Beth Carvalho e Joana Fomm se reuniram para apoiar a candidatura de Lula à Presidência da República. Mais recentemente, nas eleições presidenciais de 2014, Ronaldo, Neymar e Luciano Huck surgiram como cabos eleitorais de Aécio Neves (o primeiro voltou às ruas para lutar contra a corrupção em 2016 usando a clássica camiseta “eu votei no Aécio”). Naquele mesmo 2014, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Lenine, Marcos Palmeira e Wagner Moura, entre outras celebridades, surgiam apoiando a candidatura de Marina Silva, hoje novamente concorrendo à Presidência.

 

Existem, no entanto, diferenças fundamentais entre tais exemplos e a experiência atual de Anitta e outros hipervisíveis. Primeiro: a cantora não foi chamada para dizer em quem votaria e tem todo direito, é claro, de manter sua escolha para si. O que se pedia a ela era um posicionamento a respeito do único candidato a declarar-se antiminorias. Segundo: o ambiente lá fora é de clara disputa de discursos e representações, com a popularização feliz e inédita de discussões sobre o machismo, o racismo e a LGBTfobia. A base de fãs da cantora está intimamente ligada a essa difusão de pautas, em especial as que se relacionam com sexualidade, negritude e gênero. Bem informados, esses fãs sabem quando são aceitos por alguém apenas nas ocasiões em que seu pink money interessa (a consultoria LGBT – Capital estima que consumidores gays e afins movimentem 160 bilhões de dólares por ano no país, além de gastarem 30% mais que não-gays). “A comunidade LGBT não é só um nicho de mercado. É um movimento social em busca de respeito, dignidade e direitos iguais”, avisou Spartakus Santiago, youtuber com 92 mil inscritos em seu canal, que já havia elogiado Anitta por causa do vídeo Vai, Malandra, no qual a cantora, tida como modelo de beleza, exibe sem filtros suas celulites enquanto caminha pela Favela do Vidigal, no Rio. “Antes de a bandeira LGBT ser um produto, ela é um símbolo de resistência”, ensinou, acertadamente, o jovem de grande popularidade nas redes, lembrando que, ao se construir ícone desse público, a artista deixou de ser apenas uma cantora.

O que o episódio demonstrou é que o ambiente social e político somado à interação nas redes entre fãs e celebridades vem conseguindo fissurar a enorme racionalização do carisma midiático, um fenômeno estudado pelo sociólogo Richard Sennett, que há tempos sacou o caráter técnico da construção dos famosos, especificamente os políticos. O ambiente institucional é um dos que mais fagocitaram a lógica do entretenimento, transformando um presidente como Barack Obama em entidade espetacular, quase uma estrela do rock. Porém, por mais que organizem aparições e discursos, famosos estão sujeitos a algo inescapável acontecendo lá fora. A ebulição social chega para todos, incluindo os olimpianos, termo com o qual outro sociólogo, Edgar Morin, batizou as figuras midiáticas. Por essa razão, é também interessante observar como essas discussões que perpassam a política nacional e mundial não chegam a outro Olimpo, aquele formado por boa parte da intelectualidade, que não vai se prestar a pensar em shortinhos e biquínis atrevidos quando se dedica a um debate realmente “sério”, seja a teoria do caos, os conceitos do devir deleuziano ou a capacidade curativa das nanocélulas. Afinal, celebridades são apenas celebridades, certo? Entidades vazias, que disseminam a distração e a antipolítica, criaturas massivas demais, mundanas demais para serem consideradas além das portas do salão de beleza.

Mas dá-se que Ratinho é tão importante quanto Gilberto Freyre para discutir o Brasil, como bem sintetizou a socióloga Maria Eduarda da Mota, da Universidade Federal de Pernambuco. No miúdo dos dias, nos ônibus lotados, nas filas da lotérica e do supermercado, nas vans que circulam pelo interior do país, no Facebook com seus tantos erros de português formal, os endossos de Anitta, Marília Mendonça, Tite ou Gretchen provocam mais que brigas e fofocas: geram reações de adesão e oposição, que em uma semana vão se expressar nas mãos de milhões de pessoas a teclar, que Deus, Oxalá e Jurema nos protejam, dois números e o botão verde “confirma”.

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