O Exército decidiu manter em sigilo por até cem anos o processo administrativo, já arquivado, contra o general Eduardo Pazuello, por ter participado de ato político ao lado do presidente Jair Bolsonaro. Militar da ativa, Pazuello é proibido de expressar opinião política. Esse é só um exemplo de como o sigilo de documentos de interesse público, na prática, pode virar regra no Brasil – ao contrário do que determina a Lei de Acesso à Informação, em vigor há nove anos, segundo a qual a transparência é a regra, e o sigilo, a exceção. A LAI protege informações pessoais, informações resguardadas por outras leis (como o sigilo bancário ou fiscal) ou de relevância para a segurança nacional. Um documento pode ser classificado como reservado (5 anos de sigilo), secreto (15 anos) e ultrassecreto (25 anos). Se o documento for considerado como informação pessoal, a lei prevê que seja preservado por até cem anos. As regras que embasam decisões rotineiras sobre sigilo de documentos, no entanto, são confusas, muitas importadas da legislação da ditadura militar, e não parecem seguir nenhuma lógica sobre o que ficará oculto e por quanto tempo. O =igualdades joga luz sobre esse processo tão pouco transparente.
Em novembro de 2012, duas cartas enviadas à Polícia Federal denunciaram a atuação de milicianos no Rio de Janeiro. Para proteger as informações pessoais do denunciante, a PF impôs sigilo de cinco anos aos documentos em 2013, classificando-os como “reservados”. Assim ficaram até 2018, quando, tornados públicos, expuseram até mesmo o endereço do remetente. Em 2021, em outro caso, a suposta presença de informações pessoais levou o governo Bolsonaro a classificar como sigilosas informações sobre o processo administrativo, já arquivado, a respeito do general Eduardo Pazuello em ato político em maio ao lado do presidente. A CGU, órgão que fiscaliza o funcionamento da Lei de Acesso à Informação, considera que sindicâncias arquivadas não configuram informação pessoal. O jornalista Francisco Leali, do jornal O Globo, solicitou o documento por meio da LAI e recebeu o dispositivo das informações pessoais como desculpa para negar o acesso. Caso o entendimento do Exército não seja revisado, as informações poderão ficar ocultas por até cem anos – tempo máximo permitido.
Em janeiro deste ano, o governo entendeu que o cartão de vacinação do presidente Bolsonaro é uma informação pessoal e, portanto, ficará sob sigilo por até cem anos. Para se ter uma ideia do peso deste tipo de classificação, o governo dos Estados Unidos levou menos tempo do que isso – 41 anos e 11 meses – para desclassificar documentos que mostraram que as autoridades americanas sabiam da tortura na ditadura brasileira e poderiam ter interferido se quisessem.
A Marinha classificou como reservados, com sigilo de cinco anos, um documento que versa sobre a substituição de peças em viaturas da instituição. É o mesmo período de sigilo imposto pela Agência Espacial Brasileira (AEB) a documentos sobre o processo de desenvolvimento de foguetes de sondagem. Segundo a AEB, a divulgação dos documentos “poderia apresentar prejuízo ao projeto de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional”.
Em setembro de 2014, a Abin classificou como reservado (cinco anos de sigilo) um relatório de duas páginas que tratava sobre a “fuga de prisioneiros no Haiti”. As informações contidas no documento, no entanto, já tinham sido divulgadas pela imprensa um mês antes. Cinco anos é o mesmo período que a população ficará sem saber detalhes das operações policiais na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, apesar da tentativa de ao menos dezessete entidades ligadas à defesa de direitos humanos para que o sigilo seja afastado. A classificação foi imposta pela Polícia Civil no estado.
Dias depois de o então ministro Sergio Moro ter prestado depoimento à Polícia Federal e dito que o presidente Jair Bolsonaro queria controlar o comando da instituição para defender sua família, o governo decretou sigilo de quinze anos sobre o vídeo da famosa reunião ministerial de abril de 2020, que demonstraria tais alegações. O vídeo foi tornado público mesmo assim, após determinação do ministro do STF Celso de Mello, que disse não ter sido informado sobre o sigilo – “circunstância que torna essa reprodução audiovisual inteiramente aberta ao acesso público”. Quinze anos é o triplo do tempo usado pelo Ministério da Justiça para classificar relatórios sigilosos da instituição sobre como o governo Dilma monitorou os “rolezinhos”, como ficaram conhecidos os encontros de jovens da periferia em shopping centers de todo o país, em 2014.
A PF classificou como reservados por cinco anos papéis sobre as manifestações de junho de 2013 – em que a instituição reconheceu o despreparo de policiais para lidar com os manifestantes. Um dos documentos diz que o acompanhamento policial às manifestações foi inadequado, com policiais “possivelmente recrutas, aparentemente sem preparação para esse tipo de situação e sem qualquer apoio para reforço uma vez que ficassem cercados”. É o mesmo prazo de sigilo de relatórios do Ministério da Justiça chamando de “detenções arbitrárias” prisões de jornalistas durante as manifestações de 2013. Os documentos foram revelados pelo Projeto Sem Sigilo, da Agência Fiquem Sabendo. Em 2012, o jornalista Rubens Valente revelou que o Brasil exportou bombas condenadas internacionalmente a um ditador no Zimbábue. Anos depois, o governo passou a negar os mesmos dados por tempo indeterminado, alegando que eles estão protegidos pela lei do segredo industrial. Enquanto esse entendimento vigorar, esses papéis estão sob “sigilo eterno”, embora, oficialmente, essa condição tenha sido extinta pela Lei de Acesso à Informação.
Não existe hoje, na legislação, qualquer regra sobre como os documentos que perderam o selo de reservado, secreto ou ultrassecreto devem ser tornados públicos. Na prática, cada órgão age de um jeito. As Forças Armadas, responsáveis por mais de 90% dos documentos desclassificados desde a regulamentação da LAI no Brasil, só liberam os documentos se provocadas via LAI, de quinze em quinze. Juntos, Marinha, Exército e Aeronáutica desclassificaram ao menos 394.408 documentos de 2013 até maio de 2020, e o tempo médio de resposta varia de 16 a 23 dias, segundo a Controladoria-Geral da União.
Fontes: Secretaria-Geral da Presidência da República, Arquivo Nacional dos EUA, Exército, Marinha, Polícia Federal, Agência Espacial Brasileira, Abin e Polícia Civil do Rio de Janeiro, Secretaria de Comunicação da Presidência da República, Ministério da Justiça e Segurança Pública.