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Silêncio e ação – Cinema em tempo de pandemia

Diante de tantas mortes, alarido do ex-capitão é falta de compostura

Eduardo Escorel | 13 maio 2020_11h16
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Fazer silêncio é sinal de respeito – atitude requerida diante das mortes causadas pela Covid-19. Mais de 12 mil pessoas no Brasil e mais de 290 mil em todo o mundo, até 12 de maio. Alarido, como o do presidente da República, é falta de compostura. Silenciar não é o mesmo que ser omisso, caso da secretária Especial da Cultura ao não manifestar sentimento pela perda de escritores, atores, compositores, artistas plásticos etc.

Para nos protegermos e não sermos agentes transmissores do vírus, fomos compelidos a ficar isolados e emudecer ou, com a piora progressiva da situação, passar ao regime de confinamento mais rigoroso onde foi decretado – medida que chega com atraso, mas já é indispensável em pelo menos sete estados, nas cidades com maior número de contaminados, para que doentes possam receber assistência médica adequada e venha a ser contido o aumento dia a dia das vítimas da pandemia. 

Enquanto isso, o ex-capitão, inquilino provisório irresponsável do Palácio da Alvorada, seguido por bajuladores de plantão, participa de aglomerações barulhentas em Brasília, rejeita medidas preventivas e faz inopinada visita ao Supremo Tribunal Federal.

O dilema de quem está isolado é como silenciar sem ficar inerte, à mercê da crise. Como reagir à passividade imposta pelo confinamento e encontrar meios de se expressar, no caso de quem faz cinema ou outras artes. 

Nas palavras do diretor de documentários Bebeto Abrantes, precisamos enfrentar o desconhecido e “reinventar o processo ao qual estamos acostumados.” Saída que ele encontrou para se manter ativo, superando, de certa forma, a barreira do silêncio ao conceber a produção de um filme sem que haja contato pessoal entre os integrantes da equipe. 

Depois de passar quarenta dias isolado, sozinho, Abrantes reagiu e propôs parceria a Cavi Borges no roteiro e na direção. Eles começaram convidando pessoas que conheciam para fazer as gravações e formarem o elenco. Esses colaboradores, de classes sociais, gêneros, idades, crenças, profissões e locais de moradia variados, estavam em quarentena. Cada participante faria sua própria gravação diária, com tema, forma e duração livres, sem ter contato físico com os dois diretores (a exceção é mulher de um deles). Em seguida, enviariam o registro por e-mail para o editor Wellington Anjos. O que a dupla de realizadores não previu foi que os participantes saíssem do isolamento, por conta própria, entrando em contato com terceiros, o que veio a ocorrer em alguns casos.

Na primeira parte, há oito participantes, quatro mulheres e quatro homens, com relatos pessoais diversos, cada um com mais de uma intervenção, formando um painel amplo de experiências vividas no Rio de Janeiro, São Gonçalo e Nova Iguaçu durante a primeira semana de quarentena, de 23 a 29 de março. 

O risco de o documentário se tornar uma celebração narcísica, do qual Me Cuidem-Se! não chega a escapar de todo, é atenuado pela diversidade de perspectivas, indo da representação da angústia no isolamento ao ponto de vista de moradores de rua colhido em estilo de reportagem; da reflexão sobre o isolamento solitário ou compartilhado à higienização da Favela Santa Marta; do movimento de carros e pessoas em um município da Baixada Fluminense ao esforço para manter o apartamento limpo e lavar roupa sem ter máquina etc. 

Cena do documentário Me Cuidem-se!/Reprodução

 

Em alguns casos, o modo de gravar a si mesma ou mesmo é neutro – postada (o) diante da câmera estática a (o) participante fala em tom confessional. Uma delas, porém, não diz uma palavra sequer, apenas respira em suas aparições, intercaladas ao longo das três primeiras partes. Trancada no banheiro, ela encena a angústia, não sabemos ao certo se real ou imaginária, de uma mulher confinada em um espaço restrito. No prólogo da primeira parte ouvimos sua respiração ofegante durante os créditos iniciais. Em seguida, vemos em close o colo nu se expandir e retrair movido pelos pulmões, além da ponta curvada de cabelo loiro sobre o ombro. Após quarenta segundos, a câmera vira e se desloca até a janela basculante. Através de uma das aberturas, vemos a lateral externa do prédio e outras janelas, as árvores e prédios vizinhos, a mata da encosta, tudo iluminado por um sol radioso. Esse breve plano de cerca de 54 segundos, ao ser escolhido para ser o prólogo de Me Cuidem-Se!, deixa claro o valor expressivo do silêncio. Revela, ademais, um dos alicerces do filme-processo de Abrantes e Borges – a tensão existente entre, de um lado, recolhimento e olhar introspectivo e, de outro, atração pelo mundo exterior em condições de vida normais.

Outra baliza de Me Cuidem-Se! resulta de as gravações serem feitas por não profissionais, exigindo que os realizadores acolham o que poderiam ser consideradas imperfeições que aproximam o documentário da arte bruta. A esse propósito, Abrantes me disse por telefone ter lembrado de uma citação de Glauber Rocha, feita por Torquato Neto em Os Últimos Dias de Paupéria, na qual a racionalidade da montagem é criticada por “eliminar o instinto e a crueza da imagem” – noção decisiva para editar as gravações amadoras feitas pelos participantes.

Fracassei na tentativa de encontrar a menção a Glauber na edição original do livro de Torquato, publicada em 1973. Apesar de afastado da sua biblioteca, Abrantes localizou o livro e conseguiu receber sua edição de 1982. Lá está, na página 25, a crônica “Palavra de Glauber” que reproduz um trecho da entrevista dele à Interview, revista fundada por Andy Warhol, na qual Glauber declara: “Quero liquidar com todas as teorias de montagem, tempo, gramática fílmica etc. Isso tudo já se transformou numa linguagem. Eu quero liquidar essa linguagem e partir de volta a um approach bem primitivo, como uma criança. Sem conceituações … eu quero romper com os conceitos estruturais e começar de novo, com um approach mais imediato. Acredito que a estrutura dos signos é mais importante do que a montagem. A montagem reprime as imagens e os signos. A imagem deve determinar a montagem como um sonho, onde as imagens levam você diretamente a outras imagens. Qualquer filme é a projeção de um sonho reprimido. E eu quero que esse sonho seja liberado, seja livre, sem nenhum limite. O cinema agora é feito por cineastas, filmmakers, e eu quero que ele seja feito por todo mundo. Super 8… Oito [sic] crianças… Isso será o cinema liberto.”

Apesar das diferenças, a síntese feita de memória por Abrantes preservou a essência do original glauberiano que tem algo profético e serviu de fundamento para o filme-processo Me Cuidem-Se!, gerado por força das circunstâncias em moldes que lembram em alguns aspectos os de Rua de Mão Dupla (2002), de Cao Guimarães. Para Abrantes e Borges, há uma palavra de ordem: “A quarentena é física, o abalo e a resistência são mentais e a superação é coletiva!!!”

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Le Lion des Mogols (1924), de Jean Epstein; Gribiche (1925), de Jacques Feyder e La Tour (1928), de René Clair, destacam-se entre as novidades da semana disponíveis na plataforma de streaming gratuito da Cinemateca Francesa https://www.cinematheque.fr/henri/

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Nota: Coluna atualizada em 25 de junho de 2020. Foram eliminadas as indicações dos links de acesso ao filme Me Cuidem-se!, a pedido de seus diretores, uma vez que as cinco partes editadas deixaram de estar disponíveis no Vimeo.

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