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Silêncio na aldeia

Pelo menos dezesseis povos indígenas da Amazônia Legal que tiveram contato com a Covid-19 têm idiomas ameaçados de desaparecimento

Gustavo Queiroz | 27 abr 2021_16h12
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Em janeiro deste ano, o indígena Pedro Arthur Kampé foi internado no Hospital Municipal de Alta Floresta d’Oeste, em Rondônia, com sintomas de gripe e cansaço. Chegou a receber alta e foi acompanhado pela Casa de Saúde Indígena do município. Os sintomas voltaram em menos de uma semana, e Pedro, de 84 anos, não sobreviveu à segunda internação. Deixou oito sobrinhos e cerca de quarenta sobrinhos-netos. Mas a morte de Pedro Arthur foi também um golpe para a memória indigena: ele era o último falante pleno do Kampé, uma variante da língua Sakurabiat, do ramo Tupari. Desde o início da pandemia, a Covid-19 atinge povos indígenas com força avassaladora e escancara um problema: a morte dos últimos anciãos de um povo muitas vezes significa o desaparecimento completo de línguas originárias. 

Até o dia 26 de abril, 1.048 indígenas morreram de Covid no Brasil – mais do que o total de mortos pela doença em países como Austrália e Moçambique – segundo levantamento autônomo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Deste total, ao menos dez eram de povos cujos idiomas estão listados como “criticamente ameaçados” no Atlas Mundial das Línguas em Perigo, da Unesco. Se considerados todos os povos da Amazônia Legal que tiveram algum contato com a doença, há dezesseis idiomas em risco de desaparecimento. Em culturas que dependem do conhecimento oral para a sobrevivência de sua identidade, cada morte é sentida por uma aldeia inteira. Em todo o Brasil, foram 52,9 mil casos confirmados de Covid entre indígenas em 163 povos, mais da metade dos 305 existentes no país.

De acordo com a linguista Ana Vilacy, pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, Pedro Arthur era membro dos Siokweriat – um dos subgrupos da etnia Sakurabiat. “Os Sakurabiat são os remanescentes de um povo que sofreu uma drástica redução populacional a partir dos primeiros contatos com não indígenas”, explica Vilacy. Quando deixou a Terra Indígena Rio Mequéns e se mudou para a TI Rio Branco, ambas em Rondônia, Pedro Arthur passou a se identificar também como Kampé, bem como o idioma falado por ele – uma variedade linguística do Sakurabiat, língua que agora conta com apenas doze falantes fluentes em todo o mundo. “A gente perdeu um historiador, um livro. Era uma pessoa muito boa, muito gentil”, afirma o professor Raul Tupari, parente de Pedro. 

O levantamento da Unesco elenca 45 línguas indígenas brasileiras na categoria “criticamente ameaçada”, nível que levanta o maior alerta de perigo. Uma delas é o Yawalapiti, idioma do povo de mesmo nome – e cujo risco de desaparecimento aumentou após a morte do ancião Aritana Yawalapiti, de 71 anos, por Covid-19, em 5 de agosto de 2020. Após quinze dias de internação, o líder indígena morreu na mesma data em que o Supremo Tribunal Federal (STF) obrigou o governo federal a tomar medidas para proteger comunidades indígenas do avanço do coronavírus. Por maioria, os ministros referendaram uma liminar no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, que denunciava a omissão das autoridades na gestão da crise.

Aritana Yawalapiti era um líder reconhecido do Alto Xingu, região localizada dentro do Parque Indígena Xingu, área no Mato Grosso demarcada em 1961 e onde vivem dezesseis povos. Mas para ele a decisão do STF chegou tarde. Em seu povo, agora apenas sete pessoas vivas têm domínio pleno do idioma, destacou Tapí Yawalapiti, filho de Aritana, ao defender sua dissertação de mestrado em Linguística na Universidade de Brasília (UnB). Intitulada Documentação da Língua Yawalapíti: uma língua que não deve morrer, foi uma homenagem ao pai. “O significado da língua é a identidade de um povo, é o documento do povo, então através dela a gente se reconhece”, conclui a dissertação.

Tapí Yawalapiti com seu pai, Aritana – Foto: Acervo pessoal/Tapí Yawalapiti

 

O último Censo do IBGE, realizado em 2010, apontou a existência de 274 idiomas indígenas no país – o número total varia de acordo com a metodologia de análise dos troncos linguísticos, e o mais aceito por especialistas circula entre 150 e 170. Estima-se que, no início do século XVI, 1.078 línguas eram faladas por aqui. Isso significa que, no melhor cenário, a cada dois anos de história do Brasil três línguas indígenas deixaram de existir. Além daquelas em risco máximo, há ainda outras 145 línguas “em perigo” no Brasil. Esse silenciamento das línguas originárias tem várias razões – a redução populacional, a pressão social para uso do português e a quebra de transmissão entre gerações são apenas algumas delas, explica Ana Vilacy. A morte de línguas resultante desse “deslocamento linguístico” é chamada de glotocídio. “Se você não tem acesso à própria cultura, não tem o ensino nas escolas e ninguém fala, a língua se torna restrita. Ela é empurrada e fica naquele pequeno espaço fechado, reduzido”, conclui.

A Covid-19 vem na esteira de vários outros problemas, como a ostensiva atividade mineradora em terras indígenas no Pará e o aumento das queimadas na Amazônia, aponta levantamento do MapBiomas. Análise do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também mostra que, no primeiro ano de gestão do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), os casos de violência contra povos indígenas aumentaram. A invasão e exploração ilegal de recursos mais que dobraram em relação a 2018. Monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) também indica que 2019 bateu recorde no aumento do desmatamento sobreposto a áreas indígenas da Amazônia. Foram 490,78 km² dizimados – a maior desde o início da série histórica, em 2008. 

O “tratamento precoce” – e sem comprovação científica – contra a Covid-19, estimulado pelo governo federal, fez vítimas entre os indígenas. Foi administrado ao ancião e último guerreiro da etnia Juma, Aruká Juma – atendido inicialmente em Humaitá (AM) e depois levado para Porto Velho (RO), onde morreu de Covid-19 em meados de fevereiro. A informação foi compartilhada por uma funcionária da Casa de Atendimento de Saúde Indígena (Casai) de Humaitá, órgão do Ministério da Saúde, e divulgada pela agência Amazônia Real. Em nota, a Coiab lamentou: “O último homem sobrevivente do povo Juma está morto. Novamente, o governo brasileiro se mostrou criminosamente omisso e incompetente. O governo assassinou Aruká. Assim como assassinou seus antepassados, é uma perda indígena devastadora e irreparável.” A redução populacional dos Juma segue a mesma fórmula dos Umutina e Sakurabiat: caiu de 12 mil índios no século XVIII para apenas quatro, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA). Segundo a família, Aruká falava poucas palavras em português e guardava um mar de conhecimentos sobre a língua. 

Os dados oficiais sobre a Covid dentro dos territórios indígenas homologados ainda são insuficientes. Levantamento de setembro passado da ONG Open Knowledge Brasil apontava que, na Amazônia Legal, apenas 56% dos estados divulgaram informações sobre etnias indígenas afetadas pela doença. Documento do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena denuncia que muitas vezes os indígenas são classificados como “pardos” nas fichas de identificação. Estudo publicado na revista Frontiers in Psychiatry indicou que a mortalidade para Covid entre povos da Amazônia Legal é 110% maior que a média brasileira. Os pesquisadores usaram dados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Se fossem consideradas as informações da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a taxa seria reduzida pela metade.

Em nota, o ministério da Saúde afirmou que a Sesai desenvolve estratégias de proteção, prevenção, diagnóstico e tratamento da Covid-19 desde o início da pandemia. “Junto com o Ministério da Defesa, a Sesai realizou vinte missões interministeriais em aldeias, onde foram feitos mais de 60 mil atendimentos. Todos os Distritos Sanitários Especiais Indígenas receberam, também, mais de 6,6 milhões de itens de insumos, como testes para Covid-19, medicamentos e EPI”, informa. Com as especificidades da ADPF 709, os povos indígenas passam a ter prioridade no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra Covid. A Sesai calcula que 907 mil doses serão necessárias para imunizar essa população. Até o último dia 26, 77% dos indígenas aldeados receberam a primeira dose da vacina. 

Procurada pela piauí, a Funai afirmou que, por meio da Coordenação de Processos Educativos (Cope), apoia processos para valorizar línguas, culturas, conhecimentos, saberes e práticas tradicionais. Destacou que o Museu do Índio atua nessa área por meio do Projeto Salvaguarda de línguas indígenas, proveniente de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), com a formação de pesquisadores indígenas para a documentação e línguas e culturas dos povos originários. No âmbito da proteção territorial, destaca que realizou 306 ações em 2214 Terras Indígenas desde o início da pandemia para coibir ilícitos como extração ilegal de madeira, garimpo, caça e pesca predatórias. A Funai afirmou ainda que distribuiu 600 mil cestas básicas a famílias indígenas e investiu 46 milhões de reais em ações preventivas contra a Covid.

 

Em meados de dezembro de 1985, o linguista Gilvan Müller de Oliveira iniciou uma série de entrevistas com a última falante da língua indígena Umutina. O pesquisador recém-formado realizava encontros diários para um trabalho de recuperação do idioma, a pedido da Fundação Nacional do Índio (Funai). Mas a entrevistada Kozakaru Umutina resistia, se emocionava, e as perguntas precisavam ser interrompidas. A anciã havia passado trinta anos sem falar o próprio idioma, suprimido após incontáveis repressões desde o primeiro contato de seu povo com não indígenas, em 1911. Um desses massacres foi também uma epidemia, agora de sarampo, que dizimou um terço da aldeia. “Eu diria que essa experiência da Kozakaru é um cristal que reflete para todos os lados muitas situações semelhantes e igualmente trágicas que vêm acontecendo todos os dias”, afirma Müller.

O linguista percebeu que, para a anciã Umutina, falar a própria língua era motivo de sofrimento, e decidiu não dar continuidade ao projeto. Voltou a Brasília com 190 palavras anotadas e 60 minutos em vídeo. Após a morte de Kozakaru, um irmão dela que retornou à aldeia ainda falava o idioma materno. “A língua surge em determinados momentos, sendo um monumento da memória, da identidade, das relações culturais e da própria memória da perda”, explica Müller, hoje professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). No caso do indígena Pedro Arthur Kampé, a morte dele pode não significar o fim do idioma. Para Leonio Kampé, ainda não é tarde para revitalizar o idioma de seu tio-avô, já que algumas pessoas aprenderam elementos da língua e agora podem tentar resgatá-la.

Uma das mais importantes iniciativas de resgate de idiomas indígenas foi preservada por acaso do fogo que consumiu boa parte do acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. No dia do incêndio, o Estudo Sincrônico de Línguas Indígenas do Alto Xingu estava em processo de higienização e, por isso, não se encontrava no terceiro andar do prédio, local em que ficavam as demais publicações desse tipo. Digitalizado um ano depois pelo Centro de Documentação de Línguas Indígenas (Celin), ele apresenta um vocabulário inédito da língua Yawalapiti documentado em 1977 pela então professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Renata Bondim. O texto dispõe de 2.784 verbetes que auxiliam linguistas como Tapí a manter viva a memória Yawalapiti.

Segundo a fundadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, Ivaneide Cardozo, os Juma também têm a oportunidade de manter o idioma vivo depois da morte do ancião Aruká Juma. “Não é verdade que Aruká era o último falante da língua. As filhas dele sabem falar também.” As três filhas dele e os netos continuam a estudar o próprio idioma. “Estamos na vez de aprender a falar mais a linguagem do povo Juma”, afirma Puré Juma Uru Eu Wau Wau, de 19 anos, neto de Aruká e presidente da associação do povo Indígena Juma-Jawara Pina. “O desejo é manter a verdadeira língua indígena do Juma na aldeia e passar para as próximas gerações.”

Em Rondônia, estado que concentra mais de vinte línguas de povos originários, apenas três anciãos tinham conhecimento do idioma Puruborá até o início do ano passado, data em que Eliézer Puruborá faleceu após contrair Covid-19. Um ano depois foi a vez de Nilo Puruborá, de causas naturais. Agora resta apenas um último falante idoso: Paulo Aporeti Puruborá, de 90 anos presumidos. Mas o trabalho de documentação da língua realizado pelos Puruborá com Ana Vilacy e outros pesquisadores pode contribuir para a revitalização do idioma. Junto com os anciãos, o povo organizou o “Vocabulário Ilustrado de Animais na Língua Puruborá” e outros materiais de documentação que agora são utilizados por professores indígenas para ensinar os mais novos.

A política da diversidade linguística no Brasil vai completar apenas onze anos e tem como carro-chefe o Inventário Nacional da Diversidade Linguística – instrumento de reconhecimento de línguas como patrimônio cultural. Em paralelo, a política de cooficialização de línguas permite que os municípios tomem decisões de tornar oficial, junto com o português, outra língua presente em seu território. “Essas políticas contrabalançam esse momentos de ameaça, mas não chegam a garantir que essas línguas saiam dessa posição”, afirma Müller. O linguista entende que é necessário trazer as línguas para o âmbito público e utilizar tecnologias conhecidas de documentação. A pesquisadora Vilacy reforça: “As políticas públicas devem prezar pela manutenção da vida, além da garantia da terra, junto com políticas que garantam educação e alternativas de trabalho nas aldeias. Está tudo relacionado. Eles dizem: ‘precisamos continuar vivos.’ A língua precisa ter falantes. Só vai permanecer se tiver pessoas vivas.” 

O linguista australiano Christopher Moseley ficou sabendo da morte de Aritana Yawalapiti por meio da imprensa internacional – o ocorrido foi noticiado por New York Times, Reuters e Washington Post. Além de ter sido o editor-chefe da última versão do Atlas da Unesco, Moseley é membro da Foundation for Endangered Languages, organização que atua com a conscientização, monitoramento e apoio à documentação e propagação de línguas sob risco de desaparecer. Ele reforça que trabalhos como o de Tapí são essenciais para a manutenção de línguas indígenas: “Boas documentações, materiais educativos adequados e professores qualificados podem aumentar o prestígio de uma língua aos olhos das crianças.” O pesquisador elenca ações possíveis em um período de pandemia, como a tradução e divulgação de informações de saúde na língua originária. A Unesco instituiu a “Década das Línguas Indígenas” para os próximos dez anos. 

No Alto Xingu, Tapí não tem pretensões de assumir o lugar de Aritana, chamado de “articulador de mundos”. Quer ser exemplo para os mais jovens e ajudar a preservar, além da língua, a cultura de seu povo. “Aprendi com meu pai e hoje estou aplicando na prática o que me passou, me preparou e me ensinou”, afirmou o linguista à piauí. “A minha luta hoje é documentar nossa língua materna e fazer livros didáticos para os professores indígenas trabalharem com as crianças.” Ao documentar o idioma originário de seu povo, Tapí tenta mantê-lo vivo. Mas sabe que a língua só fica viva se aqueles que a utilizam também sobreviverem.

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