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    ILUSTRAÇÃO DE PAULA CARDOSO SOBRE FOTO DE AVENER PRADO/FOLHAPRESS

anais da lava jato

Silêncio na “República de Curitiba”

Com Lula solto, acampamentos de militantes se desfazem, e capital paranaense volta à rotina

Felippe Aníbal e Thais Bilenky | 12 nov 2019_16h40
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Na sexta-feira em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deixou a sede da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, onde ficou preso por 580 dias, não se viu um único apoiador da Operação Lava Jato nem no entorno da PF, onde estava instalada a “Vigília Lula Livre”, em apoio ao petista; nem na praça em frente à Justiça Federal, que, no auge da operação, reunia uma legião de entusiastas da investigação. Diante do prédio do Judiciário, uma placa de cerca de três metros de altura em favor da “CPI da Lava Toga” era o último resquício do “Acampamento da Justiça”, onde se reuniam nos últimos anos os defensores da Lava Jato. No início da tarde de 8 de novembro, o marco foi posto abaixo por um pequeno grupo de manifestantes que vestiam camisetas vermelhas. Ninguém reagiu. 

Preso mais ilustre da “República de Curitiba”, Lula passou sua última hora e meia na PF de bermuda, usando chinelo de dedo e camiseta colorida. Escolheu o que levaria consigo quando saísse da prisão: algumas roupas e medicamentos, que colocou em uma mala. O restante seria recolhido por auxiliares nos dias seguintes. Naquela tarde, depois que o alvará de soltura foi expedido, às 16h16, o ex-presidente, reunido com aliados e advogados, mencionou mais de uma vez sua intenção em falar com os militantes em frente à PF. Vestiu uma camiseta azul-marinho, um terno preto e saiu do prédio por volta das 17h40 de sexta-feira (8/11). Assim que cruzou o portão, foi abraçado pela filha, Lurian Cordeiro Lula da Silva, posou rapidamente para fotos e foi conduzido a um palco instalado na vigília, trinta metros adiante, onde faria seu primeiro discurso em liberdade.

O acampamento pró-Lula nasceu em 7 de abril de 2018, mesmo dia em que o ex-presidente foi  preso, e se manteve pelos 580 dias de prisão. Rigorosamente todos os dias, os militantes saudavam o líder petista dando bom-dia, boa-tarde e boa-noite. O espaço recebia caravanas de todos os cantos do país, além de visitas de apoiadores como a escritora Pilar Del Rio, o sociólogo italiano Domenico de Masi e o cantor e compositor Chico Buarque. A vigília mudou a rotina do bairro Santa Cândida, na área Norte de Curitiba, e provocou tensão com moradores.

A cinco quilômetros dali, no bairro do Ahú, na região central, o “Acampamento da Justiça”, em frente ao prédio da Justiça Federal, funcionava como centro de apoio à Lava Jato, ao então juiz federal Sergio Moro e ao procurador Deltan Dallagnol. A mobilização começou em 16 de março de 2016, mesmo dia em que Moro divulgou a conversa na qual Lula falava sobre a “República de Curitiba” com a então presidente Dilma Rousseff. No acampamento, dezenas de pessoas com camisetas verde-amarelas distribuíam adesivos de apoio à Lava Jato. Turistas visitavam o lugar para comprar “Pixulecos” – bonecos que simbolizavam Lula, com roupa de presidiário – e camisetas com estampas do rosto de Moro e frases como “República de Curitiba: aqui se cumpre a lei.” Celebridades passaram por lá. Em agosto de 2016, uma comitiva formada pelos atores Victor Fasano, Luana Piovani, Lucinha Lins e Susana Vieira, além do cantor Raimundo Fagner, foi recebida por Moro. No mesmo agosto, no dia 31, centenas de pessoas se reuniram no “Acampamento da Justiça” para comemorar o impeachment de Dilma. 

Depois da prisão de Lula e da eleição de Jair Bolsonaro (PSL), o “Acampamento da Justiça” foi minguando, segundo seguranças da própria Justiça Federal. Em junho, vieram à tona os primeiros vazamentos de conversas entre procuradores da Lava Jato, revelados pelo The Intercept Brasil. Ao longo do último ano, a Lava Jato sofreu outros reveses no Supremo, como a proibição de  que informações do antigo Coaf sejam usadas em processos sem autorização prévia da Justiça. O STF também decidiu que, quando houver réus que são delatores, o direito de falar por último nos processos é dos que não estão fazendo delação premiada. O acampamento em defesa da Lava Jato foi diminuindo cada vez mais.

Na “Vigília Lula Livre”, graças à decisão do Supremo contra a prisão de condenados em segunda instância, o “Bom-dia, presidente” de sexta-feira (8/11) contou com um coro de mais de duzentas vozes. No início da tarde, os principais advogados de Lula, Cristiano Zanin e Valeska Martins, chegaram à Justiça Federal e foram recebidos pelo juiz federal Danilo Pereira Júnior. O alvará saiu logo depois. 

Dentro do prédio da PF, as regras da prisão de Lula foram afrouxadas, e petistas credenciados como advogados puderam acompanhar o ex-presidente nos trâmites finais. No decorrer dos 580 dias na Polícia Federal, as visitas foram sendo restringidas e, no final, apenas dois advogados sediados em Curitiba visitavam Lula diariamente, um de manhã, outro à tarde; visitas de familiares, amigos e aliados eram permitidas apenas às quintas-feiras. Sentaram-se à mesa dentro da cela de Lula o ex-candidato do PT à Presidência Fernando Haddad, a presidente do partido, deputada Gleisi Hoffmann, o deputado estadual Emidio de Souza e os ex-deputados Wadih Damous e Luiz Eduardo Greenhalgh. Lula pediu a Manoel Caetano, um de seus advogados em Curitiba, para passar um café. No dia a dia, o próprio ex-presidente fazia a função quando recebia visitas: usava a chaleira elétrica disposta na cela para aquecer a água e depois usava um coador de papel. 

Lula estava falante como de costume. Se não demonstrou ansiedade, pareceu um pouco preocupado com a vida fora da cadeia: onde morará, onde trabalhará, como será sua rotina. Ele quer se casar com a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, e deve mudar de casa. Os advogados Zanin e Martins estavam numa sala ao lado organizando a saída com a PF, a Polícia Militar e os seguranças a que Lula tem direito como ex-presidente. Pouco antes de Lula e Zanin assinarem o alvará de soltura, o advogado comparou a situação do cliente com a de Benedetto “Bettino” Craxi, principal alvo da Mãos Limpas, operação italiana que inspirou a Lava Jato. Em um artigo de 2004 sobre o caso italiano, Moro afirmou que muitos agentes públicos corruptos são condenados pela população ao ostracismo. O brasileiro, por sua vez, saía pela porta da frente, aclamado por parte da população, a despeito da intenção de Moro de impor uma pena análoga, afirmou o advogado. Lula pareceu reflexivo. Ao sair, discursou por quase dezoito minutos na “Vigília Lula Livre”. Não poupou Bolsonaro, Moro e Dallagnol. Logo o ex-presidente deixaria Curitiba para trás e, na manhã seguinte, embarcaria com destino a São Paulo.

A Lava Jato também colocou em evidência vários escritórios de direito da capital paranaense. Alguns advogados acumularam a defesa de vários réus, como Marlus Arns, que representou cerca de 25 implicados na Lava Jato e costurou a delação de empreiteiros da Camargo Corrêa, como Paulo Augusto Santos, Dalton Avancini e Eduardo Leite. Outro que ganhou projeção com a Lava Jato foi o advogado Adriano Bretas, que teve cerca de quinze clientes, entre os quais o ex-ministro Antonio Palocci. Nem Arns nem Bretas responderam aos pedidos de entrevista feitos enviados pela piauí. O diretor de Prerrogativas da seção paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Alexandre Salomão, disse que a categoria nunca se sentiu envaidecida pelo rótulo “República de Curitiba”. Pelo contrário: os advogados viam a expressão como uma distorção de uma frase retirada de contexto. Ele lembra que, apesar do enfraquecimento da Lava Jato, ainda há uma série de processos conexos tramitando na Justiça Federal do Paraná. Mesmo que os clientes renomados minguem, ele diz que a advocacia curitibana não será afetada por isso. “Não concordamos com a expressão ‘República de Curitiba’, porque ela vai contra a Constituição, como se Curitiba não fizesse parte da República Federativa do Brasil. Talvez a operação tenha trazido o foco da grande mídia pra cá, mas Curitiba sempre teve tradição jurídica”, disse.

A decisão do Supremo afetou outros presos da Lava Jato que cumpriam pena em Curitiba, como o ex-ministro José Dirceu e o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto. Levantamento do MPF apontou que podem ser beneficiados outros 34 condenados em segundo grau, como presos que já estavam no semiaberto e condenados que cumpriam pena no regime fechado. Entre eles, o lobista João Augusto Rezende Henriques – apontado como operador do MDB –, e o pecuarista José Carlos Bumlai. O ex-deputado Eduardo Cunha (MDB) e o ex-governador do Rio Sérgio Cabral (MDB) vão continuar presos porque, apesar de a condenação de ambos não ter transitado em julgado, eles foram alvos de prisão preventiva. “Outros 307 denunciados, que aguardam julgamento em primeira instância, também poderão ser beneficiados, visto que só cumprirão pena depois de um longo período de trânsito do processo. O mesmo se aplica a parte dos 85 réus já condenados em primeira instância e que aguardam o julgamento de recursos no tribunal”, consta de nota emitida pelo MPF. “A força-tarefa vê risco de retrocesso no combate à corrupção e à impunidade”, acrescentaram os procuradores da Lava Jato.

Na manhã seguinte à soltura do ex-presidente, no sábado, militantes começaram a desmobilizar a “Vigília Lula Livre”. Enquanto alguns varriam o chão, outros empilhavam cadeiras de plástico e encaixotavam utensílios. O metalúrgico aposentado Sebastião Curi, que se juntou ao grupo na semana em que o líder do PT foi preso, custava a acreditar: “A gente tá saindo vitorioso. O Lula acabou se tornando cada vez maior, e eles [da Lava Jato] foram ficando pequenos”, disse, com a fala entrecortada pelo choro. “Quando ele [Lula] saiu, a nossa sensação é de que tínhamos ganhado uma eleição ou uma Copa do Mundo. A grande experiência da minha vida foi aqui”, afirmou, também em lágrimas, Rosane Silva, uma das coordenadoras do espaço. Voltam para São Paulo muitos militantes que se mudaram para Curitiba para auxiliar Lula, como Marco Aurélio Santana Ribeiro, o Marcola, encarregado de entregar a Lula cartas, livros e pendrives com programas a serem vistos.   

Parte da estrutura vai permanecer no terreno – que é alugado – pelo menos até que o PT e os movimentos sociais decidam o que fazer com o lugar. “Muita gente defende a compra do terreno e a criação de um memorial. Outra corrente quer instalar um centro de formação política. Tudo isso vai ser deliberado nos próximos dias, inclusive com a opinião do Lula”, disse Silva. Não haverá, no entanto, a movimentação que os vizinhos se acostumaram a ver ao longo do último um ano e sete meses. “A gente vai manter uns três seguranças aqui, para vigiar as coisas. E só”, disse a coordenadora.

No Empório Zambrano, praticamente o único ponto comercial nas imediações da PF, a rotina vai voltando à normalidade. Enquanto Lula esteve preso, as mesas do café-restaurante acabaram funcionando como ponto de reunião para o staff petista, antes das visitas e audiências com o ex-presidente. Dono do estabelecimento, Eduardo Vilas Boas se acostumou a receber os advogados Cristiano Zanin, Valeska Martins, Manoel Caetano e Luiz Carlos da Rocha, além de integrantes da cúpula do PT. Mais do que isso: o bistrô chegou a preparar grelhados “de reforço” ou marmitas com almoço executivo que seriam servidas ao ex-presidente – que, às quintas-feiras (dia de visita), almoçava na companhia da namorada. Entre os pratos, um dos clássicos da casa: bife de fígado acebolado. “Principalmente quando ela [Rosângela] entrou no circuito e começou a cuidar da alimentação dele, a coisa ficou mais intensa. Na maior parte das vezes, fazíamos grelhado, bife de chorizo. Frango grelhado também saía bem. Quando avisavam com antecedência, dava para preparar uma coisa especial, uma chuletinha”, contou o proprietário. Os pratos executivos custam entre 18 e 25 reais. O restaurante foi inaugurado em junho do ano passado, não de olho no público da vigília, mas no fluxo de advogados e pessoas que vão à PF tirar passaportes. Com o fim do acampamento, perde os fregueses ilustres ligados a Lula, mas, por outro lado, o dono espera passar a receber clientes que evitavam o empório por causa da proximidade com o ponto de militância petista. “Em relação ao movimento, não vai mudar muito. O público da vigília não vinha muito aqui. Vai fazer falta, porque a gente tinha uma certa afinidade com essas pessoas [advogados de Lula e políticos]. A gente se acostumou com eles aqui. Era divertido pelo movimento”, disse Vilas Boas.

Entre os moradores do bairro, a sensação era de alívio. A sede da PF fica numa área residencial e silenciosa, com muitas casas de classe média e quase sem prédios. Com Lula em liberdade, a expectativa do comerciante Maurecir Soika, que vive ali há mais de vinte anos, é de voltar à tranquilidade local. Casado com uma mulher “anti-Lula”, ele relatou momentos de tensão entre moradores e militantes, mas acrescentou que, com o passar do tempo, começou a aprender com as diferenças entre ele e os acampados. Enquanto assistia ao desmonte da “Vigília”, sentia como se aquela etapa da história tivesse chegado ao fim. “No começo, foi uma bagunça. Acampavam na minha calçada. Mas acabou. Para nós, vai ser um alívio”, disse. “Não me meto muito em política. Fiquei muito contente quando o Bolsonaro ganhou. Parecia que a coisa ia melhorar… Com a saída do Lula, parece que é o fim da ‘República de Curitiba’.”

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