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Silêncio precioso

Documentário Os Arrependidos parece uma sentença moral condenatória dos personagens

Eduardo Escorel | 28 abr 2021_09h06
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O documentário que foi considerado o melhor da competição brasileira de médias e longas-metragens pelo júri do recente 26º Festival É Tudo Verdade tem o controvertido título de Os Arrependidos. Dois dos cinco ex-militantes da luta armada entrevistados no filme rejeitam, demonstram indiferença ou simplesmente não gostam do termo “arrependidos”, atribuído a eles e a cerca de quarenta outros jovens, por terem renegado na tevê a atuação política que tiveram após o Ato Institucional nº 5 ser decretado em dezembro de 1968.

Marcos Vinício Fernandes dos Santos diz no terço inicial do filme: “Eu fiquei puto com esse negócio de arrependido, arrependido, mas depois [faz expressão de desgosto e gesto de indiferença] tanto faz…” Gustavo Guimarães Barbosa afirma, por sua vez, a dez minutos do final: “Eu não gosto [do termo ‘arrependido’, ‘arrependimento’]. Eu não me sinto bem com essa expressão… nem com ‘terrorista’, nem com ‘arrependimento’. [voz off: “Por quê?”] Não sei. Eu acho que é pela carga emocional, meio culposa, que essa palavra traz. Eu prefiro falar em autocrítica.”

Ambos deixam claro não se considerarem “arrependidos”. Mesmo assim, os codiretores Armando Antenore e Ricardo Calil adotaram essa expressão para título – escolha que projeta uma sombra de ambiguidade ética sobre Os Arrependidos, pois a palavra era usada pelos órgãos de segurança da ditadura (1964-85) e também pela imprensa da época. O próprio documentário, aliás, é dúbio com relação ao termo, citado em legendas e mencionado pelo entrevistador, ora entre aspas, ora sem aspas.

A dubiedade resulta do fato de que, para o documentarista, não se trata apenas de “entender as razões do outro, sem lhe dar razão”, como Eduardo Coutinho disse, citando Pierre Bourdieu (“Compreender”, p. 704 de A Miséria do Mundo, 1999) em entrevista publicada na revista Cinemais (nº 22, 2000, p. 66), e Calil mencionou ao apresentar Os Arrependidos antes das exibições no Festival É Tudo Verdade. O essencial, para Coutinho, sempre segundo a lição de Bourdieu, “é a tentativa de se colocar no lugar do outro, de não julgar [meu grifo], de respeitar a singularidade do outro…”. Ao analisar Theodorico, Imperador do Sertão (1978), de Coutinho, Consuelo Lins escreve que “é preciso impedir tanto a cumplicidade moral entre cineasta e personagem quanto o desrespeito ao pensamento de quem foi escolhido para ser protagonista do filme.” (O Documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. 2004. p. 24).

Mais do que um título, Os Arrependidos parece uma sentença moral condenatória dos personagens. Respeitar as convicções deles seria imprescindível para honrar o pacto de confiança que deve reger a interação entre quem filma e quem é filmado.

Em suas respectivas apresentações no Festival É Tudo Verdade, tanto Antenore quanto Calil afirmam ainda que Os Arrependidos “é um filme incômodo”. Antenore acrescenta que o documentário “nos faz pensar sobre o presente” e Calil declara que o incômodo é “potencializado pelo momento que vivemos no Brasil”. A quem os diretores acreditam que Os Arrependidos pode incomodar? Seria aos seus próprios personagens, diante da ausência de empatia com que são retratados? Quanto à tentativa de estabelecer conexão entre as farsas televisivas em que os militantes se retrataram, montadas há pouco mais de cinquenta anos, e as ameaças atuais à democracia, o nexo parece tênue entre a prática de Estado que “passou a torturar opositores para que fizessem mea-culpa”, conforme uma das legendas iniciais do documentário informa, e os arroubos autoritários do morador provisório do Palácio da Alvorada, de seus zeros e adeptos de extrema direita.

A essas incongruências se somam outras, a começar pelas inserções recorrentes feitas em Os Arrependidos de exaltações patrióticas ao chamado “Brasil Grande”, características da Presidência do general Emílio Garrastazu Médici, no período 1969-74. Embora sejam coevos, campanha ideológica e prática de tortura como arma de Estado são recursos díspares. Pretender que haja equivalência entre eles é uma simplificação – a propaganda pode ser detestável, mas é um meio de comunicação legítimo; quanto à tortura, como não deveria ser preciso dizer, ela é inadmissível.

Além disso, há um detalhe menos relevante, mas que chama a atenção. Enquanto, de um lado, os ex-militantes são identificados pelo nome, em legendas superpostas à imagem, de outro, nas cenas de arquivo, os “profissionais das diversas emissoras de televisão”, como informa em off o apresentador de uma dessas sequências, que participam do embuste entrevistando os militantes são mantidos anônimos, assim como as emissoras de televisão que acolhem e transmitem as encenações. São omissões difíceis de entender, por mais que os jornalistas não passem de figurantes secundários da trama.

 

Os Arrependidos atinge seu clímax com a entrevista de Graça Lago, viúva de Manuel Henrique Ferreira, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8). Ele participou do sequestro do embaixador alemão, Ehrenfried von Holleben, em 1970, e de outras ações armadas. Condenado a 57 anos e 3 meses de reclusão, obteve liberdade condicional em 1979, após a Lei de Segurança Nacional ter sido reformulada no final do ano anterior. Faleceu em 2014.

Manuela Werneck Ferreira e Graça Lago em “Os Arrependidos” – Foto: Divulgação

 

Em 1976, ainda preso, Manuel escreve carta a D. Paulo Evaristo Arns, levada para fora da prisão aos pedaços, escondidos na roupa de visitas. Graça lê um trecho, aqui resumido, junto com Manuela Werneck Ferreira, filha de Manuel: “Desde o momento em que fui preso, vi-me tomado de verdadeiro pânico que a cada instante aumentava. E principalmente quando eu me vi rodeado de policiais que me espancavam, xingavam e ameaçavam-me todo o tempo. Se antes estava apavorado, agora via-me em verdadeiro desespero. E esse tipo de recepção inicial, não tem outro adjetivo [sic], é o de levar o preso ao desespero, não lhe dando tempo de qualquer raciocínio. Esse espancamento no Dops da Guanabara foi até a noite, sendo que naquele estabelecimento entrei em contato pela primeira vez com o pau de arara e choques elétricos… Para a repressão não importava o fato de que eu estivesse arrependido ou não. O que interessava era que, arrependido ou não, eu me mostrava utilizável, e nesse sentido serviria como uma arma a mais para ser utilizada na propaganda antissubversiva…”

Antes dessa leitura, Graça relata nas suas próprias palavras o sofrimento de Manuel na prisão e comenta a carta a D. Paulo. O desespero que ele vai sentindo na tortura o leva a participar do engodo na televisão. Às perguntas feitas respondeu seguindo as instruções recebidas do que deveria dizer e havia decorado, mas se recusou a declarar que não havia tortura na prisão. Anos depois, na carta, “ele denuncia todo o processo de arrependimento como se dá. O dele e de outros… Ele diz ao mundo, não diz só aqui, não, ele diz ao mundo o que estava se passando nos porões da ditadura, o que eram esses arrependimentos, grandes farsas montadas pela comunicação do governo…”. Parecendo comovida, Graça faz uma digressão sobre o que chama de “o momento muito triste” que a gente está vivendo no Brasil: “Você tem gente pedindo a volta da tortura, gente pedindo a volta da ditadura… a tortura não acaba, ela não acaba nunca. Você saber que no Brasil de hoje, nas polícias civis e militares, está ocorrendo, isso está ocorrendo, não acabou… a tortura ao preso comum continua com a mesma brutalidade. As mulheres presas continuam sendo violentadas… isso é um horror. Ler essa carta traz isso. Ela tem a dor do Manuel e a dor do Brasil.”

O desabafo de Graça em si é um extravasamento pessoal que não carece de reparo algum. Porém, ao ser usado para concluir Os Arrependidos, adquire feição de lance dramático banal com o propósito de causar impacto no final do filme, fruto da insistência em estabelecer relação entre barbaridades praticadas com motivações diferentes em épocas distintas.

 

A última legenda de Os Arrependidos, antes dos créditos rotativos finais, informa que “A equipe deste filme localizou outros dez militantes que, depois de torturados, declararam em público seu ‘arrependimento’ [sic]. Eles não quiseram dar entrevistas, argumentando que a lembrança do episódio ainda é muito dolorosa.”

A opção pelo silêncio é louvável. Se a missão do historiador, do procurador ou do jornalista tem abrangência maior, no caso do documentarista há uma barreira além da qual não se deve ir. Foi essa restrição que levou Krzysztof Kieslowski a abandonar o cinema documentário:

“Nem tudo pode ser descrito… Quanto mais perto [o documentário] quer chegar de alguém, mais essa pessoa se fecha… Se estou fazendo um filme sobre o amor, não posso entrar em um quarto se pessoas reais estiverem fazendo amor. Se estou fazendo um filme sobre a morte, não posso filmar alguém que está morrendo, porque é uma experiência tão íntima que a pessoa não deve ser perturbada. E percebi, ao fazer documentários, que quanto mais perto eu queria chegar de um indivíduo, mais os assuntos que me interessavam se restringiam… Provavelmente por isso mudei para longas-metragens de ficção… Não há nenhum problema aí… Posso até comprar um pouco de glicerina, pingar algumas gotas nos olhos da atriz e ela vai chorar. Várias vezes consegui filmar algumas lágrimas reais. É algo completamente diferente. Mas agora tenho glicerina. Tenho medo dessas lágrimas verdadeiras. Na verdade, não sei se tenho o direito de filmá-las. Nessas horas, me sinto como alguém que se encontrou em um domínio que está, na verdade, além dos limites. Essa é a principal razão pela qual eu escapei dos documentários.” (Entrevista em Kieslowski on Kieslowski, 1993, sem edição em português.)

Os dez ex-militantes que não quiseram ser entrevistados mantiveram reservado o que pertence ao domínio privado – experiências pessoais traumáticas que Antenore e Calil pretendiam trazer a público. Já os cinco que concordaram em participar terão ficado satisfeitos ao assistirem a Os Arrependidos? Ou lamentaram ter dado entrevista para o filme? Seria interessante saber.

 

Domingo passado, dia 25 de abril, depois de acabar de escrever esta coluna, várias das questões levantadas foram comentadas por Antenore e Calil no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena – discordamos cordialmente sobre quase tudo. A gravação integral do programa está disponível em https://youtu.be/cgvx0F3ccv4. Quanto à reação dos entrevistados ao documentário, Calil disse que tem sido favorável e teve a gentileza de mandar alguns exemplos que vão resumidos a seguir. Agradeço a todos pela autorização dada para publicá-las aqui:

Lindo filme, emocionante, instigante, revelador. Te agradeço o carinho e a profunda sensibilidade na edição das falas… É curioso como certas questões, que parecem incômodas no momento em que surgem, acabam revelando novos ângulos em nossa visão da realidade. Esse filme chegou numa hora difícil, e mostra pelo lado da direita uma campanha de comunicação matadora (em todos os sentidos da palavra, desde “eficaz” até “assassina”), e à esquerda uma opção imatura, equivocada, porra louca, mas que foi fruto daquele momento (Gustavo Guimarães Barbosa).

Resolvi [esperar] que a poeira das emoções baixasse um pouco pra enviar a você meu mais profundo agradecimento. Há muito o que se comentar sobre o documentário, mas o primeiro que fiz, assim que passavam os créditos, foi: honesto. E o segundo: bela homenagem ao Massafumi. Pra mim é como se uma dívida com a memória dele tenha sido finalmente acertada… há muito ainda o que se refletir a partir do trabalho sensível, honesto, comprometido com a verdade que vocês fizeram… agradeço mais uma vez por tudo, e pela contribuição que ele dá [ao] momento terrível que vivemos. Obrigada a você e à equipe (Márcia Fernandes, irmã de Marcos Vinício).

Torci muito pelo filmaço e pelo resgate histórico de um episódio da nossa História recente. Muito feliz por ter contribuído para este projeto, dando voz a Manuel Henrique, meu eternamente querido companheiro. Obrigado! (Graça Lago, publicado em sua página no Facebook).

Honestamente, estava muito apreensiva. Mas, nesse contexto que estamos passando, político, pessoal, achei muito prudente e bem equilibrado. Realmente ali foi falado o que é o meu pai e o Marcos… assistindo ontem ao documentário muita coisa se fez luz aos traumas que os dois passaram e eu achava que era tudo uma grande teoria da conspiração. Mas enfim, o documentário foi extraordinário!… pouco sabíamos desse passado dele. E ao juntar com os comentários do Marcos (que amamos de paixão) fechamos um ciclo. E desvendamos um passado todo. Só tenho a agradecer (Vladia Fontes Violante, filha de Rômulo Romero Fontes).

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Em 2 de maio, domingo próximo, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Vanessa Oliveira, Juca Badaró e este colunista conversam com Lucas Weglinski e Joaquim Castro no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. Weglinski e Castro são codiretores do documentário Máquina do Desejo – 60 anos do Teatro Oficina (2021) que recebeu Menção Honrosa no 26º Festival É Tudo Verdade, encerrado em 18 de abril. No texto de apresentação, publicado no catálogo do Festival, é indicado que o filme “aproxima arte cênica, ecologia, arquitetura e sexualidade, e mistura arte e vida na busca de uma linguagem verdadeiramente brasileira”. Como se vê, é um documentário ambicioso. O acesso à conversa com Lucas Weglinski e Joaquim Castro, no próximo domingo, 2 de maio, no programa #DomingoAoVivo, pode ser feito através do link https://youtu.be/wLNV7t4pEmE .

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Nota: Armando Antenore é editor da piauí.

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