De bermudas azul marinho na altura do joelho, meias brancas estendidas além da canela, camisa estampada com folhagens e cabelo sem gel, o próprio Silvio Santos atendeu a campainha de sua casa, no condomínio Celebration, em Orlando, na Flórida. O tempo parou. Estava diante de um personagem que sonhei (e tentei de diferentes formas) entrevistar por anos. Me preparei para medir cada palavra e cada movimento, mas o silêncio naquela fração de segundo foi interrompido com seus dois cachorros, um poodle e um lhasa-apso, correndo em minha direção. Tito, o poodle, pulou nas minhas pernas. Silvio me disse:
– Esse cachorro é viado.
Olhei para o cachorro, sem saber bem o que dizer, e perguntei como era possível fazer essa constatação.
– Eu sou dono do SBT. De viado eu entendo.
Caímos na risada e a tensão ali se dissipou.
Entrevistar Silvio Santos era um sonho coletivo da redação da revista Veja São Paulo, da Editora Abril, onde eu trabalhava – e na maior parte das redações do país. O apresentador e empresário havia se fechado havia tempos, e negado todo pedido para atender jornalistas. A cada três meses, eu fazia uma rodada de pedido de entrevistas com ele, por telefone, e-mail e em cafés com Maísa Alves, a assessora de longa data da emissora. A resposta era sempre a mesma.
A diretora de redação da revista, Alecsandra Zapparoli, bolou então outro plano. Ela pediu para eu descobrir o endereço da casa de Silvio Santos em Orlando, onde ele e sua mulher, a dramaturga Íris Abravanel, costumavam passar os dois primeiros meses do ano. Liguei para uma fonte, um economista judeu com quem Silvio Santos já fez muitos negócios na vida, que também tinha casa por lá. Ele me deu o endereço do imóvel. Chequei com a Maísa se de fato Silvio estava na Flórida. Ela me disse que poderia garantir que estava nos Estados Unidos, mas não em sua residência – ele costumava ir a Las Vegas e outros lugares em seu tempo de férias. Ir para lá seria, como diria Silvio, por nossa conta e risco.
Mesmo com essas ressalvas, a viagem foi aprovada. Eu e o fotógrafo Fernando Moraes embarcamos em um voo diurno, mais barato. Depois de chegarmos ao aeroporto, passamos de carro em frente ao endereço que seria da casa de Silvio Santos. As luzes estavam acesas e ficamos ligeiramente aliviados. O objetivo era ficar de prontidão em frente à casa dele e, nas vezes em que o apresentador saísse para atividades corriqueiras, como ir fazer compras no Walmart, conseguirmos declarações e consolidar a reportagem.
Deu tudo errado.
No dia seguinte, por volta das 8 da manhã, eu, Fernando e o motorista brasileiro estacionamos o carro a uns 50 metros da casa. Em menos de 20 minutos, a porta da residência ao lado se abriu e, de dentro, saíram Silvio e os dois cachorros. A casa que a fonte indicou pertencia, na verdade, ao cantor Jorge Ben, vizinho do dono do Baú. Silvio estava com a raiz do cabelo branca (ele não usava peruca). Vestia camisa, bermuda e chinelo. Enquanto Silvio esperava os seus cachorros urinarem, Fernando fez as primeiras fotos de dentro do carro, ao estilo paparazzi.
Quando o apresentador entrou de volta em sua casa, espiamos pelo visor da câmera uma prévia das imagens feitas. Estavam boas. Ficamos animados. Em poucos minutos já demos de cara com o homem.
Então chegou a primeira viatura com a palavra Sheriff na lataria. Dois policiais educadíssimos queriam saber o que três homens faziam dentro de um veículo por mais de uma hora. Expliquei sermos jornalista do Brasil, mostrei um exemplar da Veja São Paulo para explicar como era o veículo e disse que na casa de dois andares logo à frente morava uma das maiores personalidades do país. Contei sobre a pauta e ele me desejou: Good luck!
Meia hora depois, veio um segundo carro da polícia. Os moradores do bairro estavam incomodados com um automóvel parado ali, com três marmanjos. O policial dessa vez pediu os nossos documentos. Ao terminar, ele afirmou torcer para que o “the famous man” saísse logo para que a vizinhança não ficasse incomodada. Ficamos apreensivos, mas sair dali não era uma opção. Ainda.
Perto das 10h da manhã, um terceiro carro de polícia chegou. Dessa vez, sem muito papo. O oficial falou que iria bater na porta da casa de Silvio Santos e perguntar se ele queria nos receber. Se não quisesse, teríamos de deixar o lugar sob o risco de sermos enquadrados pelo crime de stalking. Eu expliquei que, ao bater na porta da casa dele, a nossa pauta poderia dissipar – Silvio Santos não apenas negaria como não sairia mais de lá, inviabilizando os planos de testemunhar a sua rotina pela cidade. O policial não quis nem saber. E eu não quis insistir na argumentação por uma questão bem concreta. Estávamos eu e Fernando com visto de turista, não de trabalho, o que poderia ser um agravante caso quisesse nos enquadrar. Naquele fevereiro de 2014, era auge da série Orange is the New Black, da Netflix, e por um momento já me vi usando aquele uniforme laranja numa prisão americana.
O policial voltou dizendo o que esperávamos. “Ele não quer falar, agora saiam daqui”.
Liguei para redação em São Paulo e expliquei o desenrolar de tudo. Disse que não voltaria nunca mais à região da casa dele. Mas pensamos em uma última alternativa.
Eu havia levado para Orlando alguns exemplares de capas de Vejinha (como a Veja São Paulo é conhecida na capital paulista) sobre o universo do SBT. Uma delas tinha o perfil de Íris Abravanel, quando se tornou autora de novelas. Outra mostrava Patrícia Abravanel em sua estreia como apresentadora. Uma terceira estampava o executivo Lásaro do Carmo Júnior, então presidente da Jequiti Cosméticos, empresa de Silvio Santos que de 2007 para 2012 saltou de uma receita de 20 milhões de reais para 450 milhões de reais.
Silvio Santos se recusou a dar entrevistas para essas três reportagens. Mas houve uma novidade. Após sair a capa sobre o fenômeno Jequiti, Silvio mandou um cartão escrito à mão para Daniel Bergamasco, então editor da Vejinha e autor da reportagem, em agradecimento. Lá pelas tantas, ele escreveu “conte comigo”. O Daniel, hoje um dos editores-executivos da piauí, me emprestou esse cartão para eu levar para Orlando. “Pode ser útil.” Era um papel branco com a borda verde escura, e a assinatura era de Senor Abravanel, o nome de batismo do apresentador.
Então eu peguei os três exemplares de Vejinha mais o cartão e mandei à casa de Silvio Santos, junto com um buquê de flores e um cartão em que falei estar na cidade exclusivamente para tentar viabilizar o sonho de fazer uma reportagem com ele – e esvaziei a bolsa de argumentações, de maneira franca. Disse que a revista havia investido com passagem e hospedagem em tempos de vacas magras para a editora e que temos a tradição de cobrir com atenção as novidades do SBT, como mostravam os exemplares. Paguei um entregador para deixar a encomenda em sua porta.
E esperamos. Não havia muito mais o que fazer. Mas como estávamos em Orlando e eu não conhecia ainda o parque do Harry Potter, no complexo da Universal Studios, decidimos espairecer em alguma montanha-russa. Chegando no estacionamento da Universal, o meu celular tocou. No identificador, apareceu “número desconhecido”. “Alô, Zappa”, atendi, pensando ser a minha editora Alecsandra Zapparoli. “Oi, João, aqui é a Íris.” Meu coração congelou.
“Recebemos aqui o seu cartão e as revistas, tá tudo bem?” Repórter em busca de uma pauta tem as suas artimanhas, então no cartão coloquei que quase fomos presos em busca da reportagem. Respondi que sim, que estava tudo bem, que por sorte havia sido apenas um susto. Ela me disse então: “Vou passar o telefone para o Silvio.”
O marido dela começou a conversa “rárraii!!!”, a sua risada que virou marca-registrada. Fiquei paralisado. “Então quer dizer que vocês vieram para os Estados Unidos só para fazer a matéria?” Eu expliquei que sim, que o esforço todo era porque por muitos anos a redação nutria esse sonho. “As perguntas estão prontas?” Eu expliquei que sim. “Vocês estão perto de casa?” Eu confirmei – mas na verdade estávamos do outro lado da cidade. “Então venham para cá em trinta minutos, vou pedir para a Íris passar um café para vocês.”
Gritamos de alegria no carro. Fomos ao hotel pegar câmera e mochila, e chegamos um pouco atrasados. Fiquei no carro revisando as perguntas, tentando estar afiado para tirar o melhor de alguém de quem supostamente sabemos muito, mas que na verdade nunca se revelava.
O café estava pronto, como prometido. Nos acomodamos no sofá de tecido de algodão da sala principal da casa, de pé direito bem alto, avaliada na época em 1 milhão de dólares. O piso era de carpete de madeira. Na cozinha, havia um lustre no qual os suportes das lâmpadas tinham forma de abacaxi.
Na conversa, aquela impressão de que sabemos muito sobre Silvio se dissipou. Me contou que havia retirado um câncer de pele da perna direita. Que tomou uma multa de trânsito na Flórida e alegou na delegacia que os 25 dólares abalariam sua situação financeira (recebeu 10 dólares de volta). Que a filha Patricia estava grávida, e que o bebê havia sido “feito aqui na Flórida”. E revelou, orgulhoso, que era o encarregado por lavar a louça do jantar — Erika, a empregada brasileira, só dava expediente até o almoço e ele e a mulher gostavam de ficar o resto do dia e da noite sozinhos. Descreveu o nome de utensílios e produtos de limpeza, que ele mesmo comprava no Walmart (me disse que nem sabia onde ficavam a Gucci e a Prada). Ao fim da entrevista, meio atrevido, perguntei se ele toparia fazer a foto lavando a louça, como mencionou. Ele aceitou de imediato. E de fato sabia onde estavam os detergentes usados na máquina de lavar louça.
Enquanto era fotografado pelo Fernando Moraes, eu, como quase um assumido caipira do interior mineiro que sou, peguei na mão da Íris e pedi para me mostrar a casa. A piscina (aquecida) estava coberta por uma lona. Os móveis eram simples, sem nada assinado por designer famosos. Não havia obras de arte. Na sala principal, havia uma palmeira de plástico (como todas as flores da casa), uma praticidade dado o fato de passarem a maior parte do ano no Brasil. No andar de cima, havia um quadro do casal caracterizado como Shrek e princesa Fiona.
Deu tudo certo com a entrevista. Quando saiu a reportagem, Alecsandra mandou um exemplar aos Estados Unidos. Fui pela última vez à casa dele para levar a revista – e um pacote de quinoa (ele havia dito na entrevista que a sua mulher queria que comesse esse “arroz de pobre” por ser mais saudável, mas ele gostava mesmo de arroz branco). Quando cheguei sem avisar, ele lia na varanda de sua casa a biografia Antônio Ermírio de Moraes: Memórias de um Diário Confidencial, de José Pastore. E me perguntou como andava a situação da Editora Abril com a morte de Roberto Civita, menos de um ano antes, em maio de 2013. Quis saber o papel de seus filhos dentro na empresa. O assunto sucessão já parecia rondar a sua cabeça. A rede do Wi-Fi da residência era “4 sisters” (4 irmãs). Silvio Santos teve seis filhas, duas do primeiro casamento com Maria Aparecida Vieira (Cintia e Silvia) e quatro com Íris (Daniela, Rebeca, Patrícia e Renata).
Sem nos avisar, ele pediu que Maísa solicitasse ao departamento de criação do SBT uma propaganda de 30 segundos mostrando a revista feita pelo repórter que “quase foi preso”. A Vejinha era distribuída na Grande São Paulo, mas o comercial entrou na grade nacional do SBT. A redação passou a receber ligações de mulheres de diferentes estados, de Goiás ao Pará, perguntando como adquirir a revista, que precisou ser enviada para diferentes parte do país.