Ao apreciar Confiança Total na coluna publicada há duas semanas, mencionei o fato de não haver na China confiança total da população no governo, o que contradiz um slogan do regime. Afinal, são mais de 1,4 bilhão de chineses e, embora reduzido, há um percentual de dissidentes. Por outro lado, é difícil imaginar, mesmo no âmbito restrito de uma pequena família brasileira, que possa prevalecer sinceridade total, sobretudo diante da câmera, na relação entre os pais nisseis e os filhos sanseis de Bem-Vindos de Novo.
É essa, porém, a impressão que resulta ao assistir o sensível documentário autobiográfico do diretor estreante Marcos Yoshi. Em estilo simples, as gravações da relação dele com sua mãe e seu pai, Yayoko Furukawa Yoshisaki e Roberto Shinhti Yoshisaki, parecem baseadas quase em absoluta franqueza. Impressão cujos méritos sobressaem à medida que vão sendo revelados os traumas que marcaram a infância e adolescência de Yoshi e suas duas irmãs.
A narração, feita na primeira pessoa em off pelo próprio diretor, relata que sua “infância ficou marcada por esperar pelos” pais. “Eles tinham uma loja de cosméticos em Cidade do Leste, no Paraguai. Saiam às sete da manhã e só voltavam depois das oito da noite. Abasteciam com cremes, loções e perfumes, sacoleiros de todo o Brasil.” Isso, em meados da década de 1990, no auge do Plano Real. A essa primeira carência afetiva se seguiu o trauma causado na adolescência pela decisão dos pais, tomada em 1999. Yoshi tinha 14 anos e “não entendeu por que” eles resolveram deixar os filhos no Brasil, com os avós maternos, e ir trabalhar como operários em uma fábrica no Japão. Foram para ficar dois anos, mas só voltaram em 2013, treze anos depois. No início, toda semana os pais ligavam do Japão para falar com os filhos. Mas “pouco a pouco, e com o passar dos anos, a distância foi só aumentando…”.
Bem-Vindos de Novo procura resgatar o que foi esquecido e tenta compreender o que aconteceu. Para tanto, recorre a gravações e fotografias antigas de família, das quais Yoshi não lembrava, além de registros atuais do cotidiano dos pais e de entrevistas feitas para o documentário.
No Réveillon de 2014, a família Yoshisaki voltou a se reunir pela primeira vez em Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul, “onde os pais tinham virado sócios do tio em um restaurante de um hotel”. Completam-se aí os cerca de 11 minutos da introdução, depois da qual a mãe e o pai de Yoshi são entrevistados em pé, lado a lado, à noite, no que parece ser o balcão estreito de um apartamento.
Yayoko fala da volta ao Brasil ter sido “de uma maneira tão fechada, com a visão tão fechada assim, focado só numa coisa só, por que nós só fazíamos aquilo lá [no Japão], né? Só trabalho manual, trabalho manual … então você não acompanhou a evolução da tecnologia, as novas… as ideias de ser empresário, entende? Então, a gente não acompanhou durante esse tempo todo, porque éramos simplesmente um operário. Você fazia só aquilo lá todo dia, só pensava naquilo e somente ficou estagnada naquilo, entende?…”.
Roberto, de seu lado, após breve referência à “nova realidade” existente ao voltarem, vai direto ao ponto: “… e mesmo assim, quando nós falamos que nossos queridos e amados filhos estão todos aqui, nosso sonho era realmente falar: não, eu quero retornar e estar junto dos meus filhos que eu amo tanto. Era essa nossa visão quando a gente tá lá. Certo? Aí, quando eu falo o choque de realidade é quando você chega aqui cê percebe uma coisa: que, na verdade, você não acompanhou, você não sabe, você não conhece seus filhos. Apenas, nós temos uma ligação consanguínea. Eu sei que você é, eu sei que a Nathi é, eu sei que a Thay é minha filha, entende? Mas eu não conheço nenhum dos três hoje.”
Yoshi dizia aos seus colegas, no colégio, “ser órfão de pais vivos”. Agora, ao fazer Bem-Vindos de Novo, diz: “Meus pais não me conhecem e eu não conheço eles” e põem em dúvida “se fazer o filme é o melhor jeito de a gente se reaproximar… Fico pensando nos dois problemas que arranjei pra a cabeça: ser um bom filho e fazer um bom filme.”
Ao explicitar esse dilema, Yoshi amplia a dimensão de seu documentário. Evita dessa maneira, ao menos em parte, as armadilhas de um gênero documental desgastado – o da narrativa na primeira pessoa em que diretor e personagem se sobrepõem e se confundem.
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Após ter participado, entre outros do 10º Tokyo Documentary Film Festival e da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes, dois anos depois de ter sido finalizado em 2021, Bem-Vindos de Novo estreou há duas semanas no circuito, com uma sessão por dia, em dezenove salas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília, entre outras cidades. A partir de 22 de junho, passou a ser exibido em dezesseis cinemas, incluindo agora Recife e Manaus, também com uma sessão por dia. Esse é o modelo vigente de lançamento que condena filmes brasileiros por antecipação ao fracasso comercial. Situação que configura “o cinema que não se vê”, assim definido no título do livro de Ana Paula Sousa que vem de ser lançado. Leitura essencial, não apenas para conhecer a estrutura institucional e a legislação que rege a atividade cinematográfica no Brasil desde o início do século XXI, mas sobretudo para entender os meandros de processos decisórios que levaram aos impasses atuais do setor. Se estamos fazendo filmes invisíveis sobre os quais livros são escritos, só nos resta admitir que vivemos no mundo da fantasia.