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    Ilustração: Carvall

anais da seca

Só o dilúvio salva

Cenário otimista para chuvas prevê reservatórios brasileiros em 2022 ainda mais abaixo do que já estão hoje

Camille Lichotti | 09 set 2021_12h17
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Foi em agosto deste ano, quando a conta de luz começou a subir, que a dona de casa Ana Paula Barbosa anunciou à família: não se liga mais o ventilador. Em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, ventilador em agosto não é luxo. Apesar do inverno, a temperatura na cidade chegou a 36°C – e parece um pouco mais alta dentro da casa onde vivem cinco pessoas. Às vezes a sensação de calor é sufocante. Os dois filhos mais velhos, que agora trabalham e estudam em casa, tiveram que se adaptar. “A nossa qualidade de vida foi para o buraco”, resume a mãe. Ela inaugurou outras medidas para economizar na conta de luz. Passou a lavar a roupa na mão, cortou o ferro de passar e manteve as luzes do quintal desligadas. Para os dois filhos mais velhos, o aperto foi um pouco maior. “É muito ruim pedir para o seu filho, que está estudando o dia todo nesse calor, não ligar o ventilador de teto”, conta Barbosa. “Todo mundo começa a ficar irritado porque está desconfortável. É desconforto para trabalhar, desconforto para estudar e até para dormir. E todos os dias são assim.” O ventilador foi cortado até na hora de dormir. Mesmo com as restrições, a conta de luz do mês ficou em 400 reais, 10% da renda mensal da família, e 120 reais mais cara que a de julho. Parece pouco, mas é quase o preço do botijão de gás, lembra Barbosa.

O jeito foi tirar do orçamento destinado à alimentação. O leite do lanche teve que ser cortado. O queijo e o presunto do sanduíche também. A variedade de legumes foi substituída por angu, e as frutas foram reduzidas. A preocupação é com o futuro. “Como vamos passar o verão no Rio de Janeiro sem ligar o ventilador? Fico pensando o que mais vou ter que cortar para pagar a luz. A única coisa que dá para tirar é a alimentação”, diz Barbosa. Ela vai ter que enxugar ainda mais o orçamento nos próximos meses, porque a crise energética só tende a piorar: as projeções sobre a capacidade dos reservatórios de hidrelétricas do Sudeste e Centro-Oeste indicam que o Brasil caminha para chegar ao ano que vem num cenário de escassez hídrica e energética ainda pior que o de 2021, afirmam especialistas ouvidos pela piauí

A estimativa é de que em fevereiro de 2022 os reservatórios dessas regiões – os mais importantes para a geração de energia elétrica no país – estejam num volume perto de 17% da capacidade total. Esses mesmos reservatórios fecharam o mês de fevereiro de 2021 com 29,7% da capacidade. As previsões são de meteorologistas da consultoria MegaWhat, especializada no setor energético, e levam em conta os mapas de chuva dos próximos seis meses, convertidos em vazão dos rios. No cenário mais pessimista, o nível desses reservatórios pode chegar a 11% em fevereiro do ano que vem – e no mais otimista de todos, a 22,9%, ainda muito abaixo do registrado em 2021. O racionamento está batendo à porta, e não só na casa de Caxias. 

Como toda previsão, essas também contêm incertezas: as condições climáticas do Sudeste e do Centro-Oeste no verão, a oferta de energia e o comportamento da demanda. Mas funcionam como valores de referência para medir uma tendência, e a tendência é de piora. “O nosso valor esperado já pode ser considerado pessimista, porque já aponta uma vazão de rio abaixo da média histórica”, explica a engenheira Ana Carla Petti, CEO da MegaWhat. O cenário considerado mais provável levou em conta a ocorrência do fenômeno La Niña na virada de 2021 para 2022, o que, no Brasil, significa muita chuva na região Norte e seca no Sul e Sudeste, onde se concentram as principais hidrelétricas do país. A previsão é de que o La Niña permaneça ativo até janeiro do ano que vem, trazendo mais um período de seca para o Sudeste no verão, justamente na época em que costuma chover mais. 

O período úmido, de novembro até abril, poderia trazer um pouco de alívio aos reservatórios. Mas mesmo que o La Niña acabe em janeiro, ainda levará um tempo até que a chuva comece novamente a encher os rios. Primeiro a água precisa normalizar a aridez do solo seco, abastecer os lençóis freáticos e só então inundar os leitos dos rios. Ainda que chovesse dentro da média, iria demorar para a afluência dos rios voltar à normalidade”, explica Petti. Ou seja, a crise hídrica e, principalmente, a energética já estão contratadas para o ano de 2022.

O cenário de escassez prolongada calculado pela MegaWhat é confirmado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), responsável por despachar a energia elétrica no Brasil e regular o setor. O órgão estima que os reservatórios do Sudeste e Centro-Oeste chegarão a novembro deste ano com apenas 11,3% do volume total (em 2020, estava em torno de 20%). Isso na melhor das hipóteses, caso o governo consiga gerar mais energia e retire a pressão sobre as hidrelétricas. Na pior das hipóteses, esses reservatórios podem chegar a 8%. Essa é uma média de toda a região, o que significa que algumas reservas poderão estar com volume ainda mais baixo do que esse.

O engenheiro Altino Ventura Filho, ex-presidente da Eletrobras, sabe o que é operar um reservatório com níveis tão críticos – e não recomenda a experiência. Ele era o diretor técnico da usina hidrelétrica de Itaipu em 2000, quando o Brasil também gastou suas reservas de água, e em 2001, quando o país passou pelo racionamento de energia. “Essas coisas que estou vendo hoje me fazem pensar na experiência de 2001”, lembra ele, que assistiu ao caos pela janela do escritório. “Eu vi como era o sistema hidrelétrico com pouco armazenamento para operar e o risco que isso pode trazer. Ficamos sem a tranquilidade para operar as usinas. Eu acho que deveríamos ser um pouco mais prudentes agora.”

Há diferenças entre 2001 e 2021: as hidrelétricas diminuíram sua representatividade na matriz energética do país, e o sistema nacional está mais desenvolvido. Em contrapartida, avaliam os especialistas, hoje há muito mais gente atuando no “mercado livre” da energia e vendendo esse recurso, como fazem as distribuidoras — e esse mosaico de agentes no sistema pode tornar mais difíceis as decisões de coordenação. Guardadas as proporções, diz Ventura, o filme é o mesmo: um desequilíbrio que beira o descontrole. Ele defende uma medida de racionamento organizado, transparente e acordado com a sociedade ainda neste ano, para evitar uma crise maior em 2022. “As pessoas acham que vamos conseguir atravessar este ano com essa situação, mas o mundo não acaba em 31 de dezembro. Quanto mais se demora para tomar uma atitude, mais dura ela tem que ser, porque você perdeu tempo”, diz. 

O maior risco de deixar os reservatórios chegarem a níveis críticos, explica ele, é perder o controle da bacia hidrográfica, quando o nível de água se torna insuficiente até para operar as máquinas. É uma determinação mecânica, que acontece quando os reservatórios chegam a um nível entre 5 e 10%. “Esse é o cenário do caos. Quando acontece, você não consegue operar a hidrelétrica e mandar energia na hora que precisa. Tem que desligar a máquina e deixar que o rio faça energia sozinho. Aí só tem luz quando o rio quiser”, diz. Para Ventura, com as condições atuais aliadas à ocorrência do La Niña, só um racionamento programado poderia evitar que chegássemos a esse cenário. “Em 2001 aconteceu coisa parecida”, avalia Ronaldo Bicalho, pesquisador do Grupo de Economia da Energia da UFRJ. “Eles adiaram o problema, acreditando que ia chover, até se tornar insustentável. A diferença é que o presidente [Fernando Henrique Cardoso], à época, optou por não seguir pelo caminho do caos. Mas o presidente Jair Bolsonaro não tem nenhum problema com o caos. Ele é feito de caos.” 

O Ministério de Minas e Energia evita falar em racionamento de energia e, hoje, descarta a possibilidade de adotá-lo. Em entrevista ao jornal O Globo, na última segunda-feira, o ministro Bento Albuquerque admitiu que o problema se prolongará até 2022 – e muito provavelmente para além disso. Almirante de esquadra, Albuquerque foi para a reserva depois de assumir a pasta de Minas e Energia, em 2019, e tornou-se mais um militar à frente de uma grave crise no governo Bolsonaro. No último pronunciamento público, no fim de agosto, o ministro subiu o tom: reconheceu a gravidade da crise e pediu que as pessoas reduzissem o consumo de energia no dia a dia, de forma voluntária.

Na análise de Altino Ventura, ex-presidente da Eletrobras, um tipo de racionamento de energia elétrica já está em vigor agora, por meio dos preços. Um racionamento com “r” minúsculo, diz ele. É o que está acontecendo com a família de Ana Paula Barbosa, em Duque de Caxias. Todo dia, ela vai ao relógio da casa, que mede o consumo de energia elétrica, e verifica quantos quilowatts a família está gastando. Não dá para passar de 7, senão o orçamento estoura. “Quando passa um pouco eu tenho que pedir para alguém deixar de usar alguma coisa, algum aparelho, para não ultrapassar os quilowatts determinados”, explica a dona de casa. Mas se o preço continuar aumentando, não vai ter de onde tirar, diz ela. Além do ventilador, o microondas já não é mais usado, nem a fritadeira elétrica. “Chegamos ao ponto de ter os aparelhos e não conseguirmos mais usá-los. Se eu cortar mais eu chego na pré-história. Mudar de hábito é legal quando se tem economia, não quando você precisa fazer isso para sobreviver.”

Para Ventura, o racionamento por aumento de preço é o pior que existe, porque penaliza mais quem tem menos condição de pagar e ainda dá um sinal inflacionário. Dados do Ipea mostram que, entre os mais pobres, o peso do aumento de energia elétrica na inflação é três vezes o observado entre os mais ricos. Agora em setembro, começa a valer a bandeira de escassez hídrica, com taxa extra de 14,20 reais para cada 100 kWh consumidos, acima da bandeira vermelha patamar 2 – até então, o máximo de cobrança adicional feita por energia. A bandeira de escassez será aplicada até abril do ano que vem. 

O aumento aconteceu porque as termelétricas começaram a ser acionadas para compensar o déficit de energia diante da baixa dos reservatórios — o menor desde 2001. Hoje, todas as termelétricas do país estão em operação, e o custo dessa fonte energética – mais cara e poluente – foi progressivamente repassado aos consumidores. “O custo [da energia elétrica] vai continuar muito alto porque vamos depender da termelétrica mesmo no período úmido de 2022, pelo menos até maio”, prevê a CEO da MegaWhat, Ana Carla Petti. Ela acredita que ainda é possível terminar 2021 sem um apagão, se a adesão ao “racionamento voluntário” for significativa. Por enquanto, ela calcula uma redução de 1 a 2% da carga entre os consumidores residenciais. 

Para os usuários maiores, como indústrias e grandes comércios, também há uma estimativa de 2% de redução da carga. “Mas, conversando com alguns clientes, recebemos a resposta de que não é possível ofertar essa redução porque eles têm demandas de produtos. Outros dizem que não têm tanta flexibilidade no processo produtivo”, explica Petti. Uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria mostrou que 65% dos empresários consultados afirmaram ser difícil ou muito difícil mudar o horário de operação das suas empresas para reduzir o consumo de energia no horário de pico. 

O dilema, avalia Petti, é limitar o crescimento econômico com um racionamento obrigatório em 2021 ou continuar usando as termelétricas, correndo o risco de um racionamento em 2022 de qualquer forma. “A população tem que ser comunicada de todos esses riscos”, diz. “Isso tudo tem a complicação extra de estarmos num ano pré-eleitoral, que faz a decretação de um racionamento ser complicada.” Ela alerta que existe risco de apagões, principalmente nos horários de “ponta”, que concentram mais demanda. Como todas as termelétricas já estão em uso, se a demanda no fim do dia aumentar além do esperado, terá que ser suprida com energia hidrelétrica – a que está em falta. A diferença entre um apagão e um racionamento é que o primeiro ocorre quando a demanda é maior que a oferta. O sistema não suporta o fornecimento de energia e a luz acaba. No racionamento, há uma limitação imposta nos períodos programados. 

Além de acionar as termelétricas, o governo adotou outras medidas para gerenciar a crise. Um deles é o bônus na conta de luz para quem conseguir poupar energia até dezembro (comparando com o uso de energia do mesmo período de 2020). Essa compensação será paga pelos próprios consumidores, através de impostos. A outra medida é a flexibilização das restrições hidráulicas a quatro usinas do Sudeste, que passarão a reter mais água a partir de agora. “Essas medidas ajudam, mas, na minha opinião, não serão suficientes para segurar essa crise”, alerta Ventura, ex-presidente da Eletrobras. Ele dá o tom da crise: “Se chover um dilúvio e sairmos dessa por um milagre, será a prova final de que Deus existe e é brasileiro. Mas teremos que fazer uma grande corrente de fé.”

A atual crise não é um problema conjuntural. A capacidade dos reservatórios caiu ao longo dos anos. Segundo informações do ONS, a média do nível dos reservatórios do Sudeste entre 2000 e 2010 foi de 66%. Na década seguinte, caiu para 40%. Especialistas ouvidos pela piauí temem que a seca atual seja não um ponto fora da curva mas sim um novo padrão climático do país.

Para a pesquisadora Clarice Ferraz, do Grupo de Economia de Energia da UFRJ, a resposta à crise atual é inadequada. “Não ataca as causas do problema e nos leva a um agravamento da crise para o ano que vem”, resume. “Deveríamos fazer auditoria energética, pensar em motores mais eficientes, ver onde está tendo perda de energia nas indústrias. Isso deveria ter sido feito em maio, quando começaram os alertas. Deslocamento de ponta não é um programa de eficiência. A resposta que está sendo dada é aumentar a geração termelétrica. A gente faz tudo ao contrário: opta pelo caro e poluente”, ela avalia. O texto do projeto de privatização da Eletrobras prevê a construção de mais usinas termelétricas, com capacidade para gerar 8 GigaWatt. 

Ferraz também acredita que um racionamento poderia evitar problemas futuros. “Seria mais responsável e democrático. O racionamento via preço não reduz a carga na quantidade necessária”, afirma. Isso porque quem primeiro reage ao racionamento via preço são os mais pobres, que não são os grandes consumidores de energia. “Se a gente escapar este ano, se o sistema não morrer esse ano, morre ano que vem. Vamos chegar com um reservatório mais vazio do que chegamos no ano passado, não vai ter margem para aumentar tarifa e não tem como aumentar capacidade termelétrica de um ano para o outro. Eu sinceramente não sei no que isso vai dar”, diz. Para ela, o que o Brasil faz hoje, sem racionamento mínimo, é adiar o problema para um ano muito mais complicado. O grupo de pesquisadores da UFRJ calcula que, para cobrir todos os custos, a nova bandeira tarifária deveria subir para 18 reais, e não 14. Isso levaria a 2022 um déficit da bandeira tarifária da ordem de 5 bilhões de reais, diz ela. “Só estamos acumulando os problemas, mas a conta tem que ser paga um dia. E ano que vem tudo vai estar pior”, prevê Ferraz.

Em nota, o Ministério de Minas e Energia disse que adota “diversas medidas para mitigar o impacto no setor elétrico do pior cenário de escassez hídrica da história do país”. O ministro da Economia, Paulo Guedes, questionou, em uma coletiva no último mês, qual seria o problema da conta de luz ficar “um pouco mais cara” porque não choveu. A CEO da MegaWhat explica: “Para 2021, a previsão era de um crescimento de 5% do PIB brasileiro e há alguns meses já prevíamos que a energia poderia segurar esse crescimento.” Estima-se que a crise energética de 2001 provocou uma redução de 1 a 2% do PIB.

Segundo os especialistas, esse efeito pode ser ainda pior agora que o Brasil tem maior dependência energética. A inflação de agosto deste ano já foi a maior desde 2000. Para a família de Ana Paula Barbosa, no Rio de Janeiro, o efeito é no preço das compras diárias. “A gente está empobrecendo muito rápido, perdendo o poder de compra, a qualidade de vida. Estamos nos degradando”, ela desabafa. “Nem dá para fazer projetos futuros. Vivemos para comer e pagar a luz.”

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