No romance Becos da memória (2006), Conceição Evaristo narra sua infância na favela em que ela e sua família viveram, em Belo Horizonte, nos anos 1950. Um dos mais contundentes exemplares da literatura memorialística contemporânea brasileira, o livro registra o processo que a autora chama de “escrevivência”: uma escrita que nasce das experiências da vida cotidiana e das lembranças. Trata-se de um carrossel de fina artesania em que atua uma profusão de personagens, todos marcados pela vivência “que foi minha e dos meus”, segundo nos conta a autora na introdução do livro. É assim que Conceição Evaristo reconstruiu a memória de um lugar e de pessoas que raramente tiveram espaço relevante nas artes ou na historiografia nacionais, mas que, por meio de suas palavras, continuam a existir, resistem.
Nas artes plásticas, Ana Paula Sirino, uma jovem de 27 anos, vem desenvolvendo um trabalho que tem esse espírito. Por meio de seus quadros, em tinta a óleo sobre tela, a artista registra a vida dos moradores do quilombo do Torra, em Sabinópolis, cidade mineira de pouco mais de 14 mil habitantes localizada no Vale do Rio Doce, a pouco mais de 270 km de Belo Horizonte e a 120 km de Governador Valadares. Assim como os personagens descritos por Evaristo, os retratados por Ana Paula são os descendentes da diáspora africana, todos marcados pelo sistema racista e de fortes resquícios escravocratas que ainda vigora no Brasil.
Nas telas de Ana Paula, no entanto, o eixo de representação dessas pessoas se inclina em direção ao sol: elas estão vivendo plenamente a vida, de forma simples, realizando tarefas do dia a dia, festejando, bebendo café, compartilhando a mesa, lixando as unhas dos pés, fumando na praia, lendo o jornal, colhendo milho, dançando forró. Vale destacar as cenas com crianças, de grande beleza lírica: estão ali os jogos e brincadeiras, a matreirice, a intimidade com os animais, a alegria da infância, os cuidados parentais. São cenas cotidianas, ao ar livre e dentro das casas, que evidenciam que o quilombo existe de forma vívida; cenas emolduradas a partir de uma luz que chama a atenção de leigos e especialistas.
“O estudo de iluminação da Ana é um feito extraordinário”, aponta Flaviana Lasan, educadora, artista visual e curadora da exposição Quero amar quem acenda uma fogueira comigo às 7 da manhã, realizada no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, entre outubro de 2023 e janeiro de 2024, e que exibiu Tabatinga, de Ana Paula. “Quem conhece as cidades do interior de Minas Gerais sabe que lá a luz é do jeito que ela pinta: tem a luz própria da hora das galinhas no poleiro e tem a luz própria das crianças perto do rio, indo pra escola. Não é sobre a hora que está nos relógios, e sim na coexistência”, completa. “Quando vemos fotos do lugar onde Ana Paula cresceu, conseguimos entender de onde ela tira essa luz, essa saturação das cores”, comenta Lorraine Mendes, pesquisadora e uma das curadoras da exposição Dos Brasis: arte e pensamento negro, inaugurada em 2023 no Sesc Belenzinho, em São Paulo, e que irá circular pelos Sescs de todo o Brasil pelos próximos nove anos.
Flaviana e Lorraine desempenham um trabalho contínuo de busca por artistas negras ao redor do país, identificando a variedade de suas linguagens e das representações de corpos e experiências. “Existe uma distância entre a representação de mulheres negras e sua presença oficial nos espaços ou nas dinâmicas oficiais da arte. Quantas delas você vê em posições de comando?”, questiona Flaviana. Para ela, Ana Paula recusa o imaginário da população negra socialmente aceito, especialmente quando se pensa em um quilombo, algo ainda obtuso para a maior parte da sociedade e que remete a um passado longínquo e, sobretudo, superado. “Vejo [na obra da Ana Paula] mulheres negras como individualidades. A primeira tela com a qual me encantei foi uma em que há uma senhora dirigindo um fusquinha [Alguém vai pra panela!]. Em 36 anos de vida, foi a primeira vez que vi essa cena, dentro e fora dos quadros”, conta a curadora.
Ao conhecer a tela Elenice, que retrata uma mulher negra sentada num sofá, lixando as unhas do pé, Lorraine sentiu o mesmo encantamento, o de estar diante de “um momento de descanso, em que ela não está fazendo nada, a não ser cuidando de si mesma. Fiquei completamente obcecada pelo quadro”. Elenice foi, então, imediatamente selecionado para a mostra Dos Brasis: arte e pensamento negro. “Há ali a construção de uma vida negra através da imagem, que é a vida que a gente leva de fato, com sua beleza e suas especificidades”, analisa Lorraine “Não é mais concebível assistirmos a uma exposição em que se exclua a presença negra. Vemos esse movimento tanto no mercado quanto nas instituições, mas precisamos ficar atentos às direções que ele toma”, afirma, alertando para a importância de se recusar a ideia de que artistas afrodescendentes têm o “dever” de retratar a negritude. Nesse sentido, Lorraine menciona a arte figurativa como outro modo de se compreender identidades.
Já Tabatinga enquadra pés femininos descalços pisando a argila mole e esbranquiçada encontrada nas margens de rios e córregos, muito usada nas zonas rurais de Minas para revestir as paredes das casas e fogões a lenha. A inspiração para criar a tela, segundo conta Ana Paula, veio das incontáveis vezes em que viu a avó fazer e refazer fornalhas. Para além desses usos, “o barro está na estrutura dos quilombos, mesmo para quem vive e nasceu em casa revestida de cimento. Está em nossa estrutura, em nossa memória”, escreveu a artista na ocasião da exposição, em 2023. Ela se lembra de ver a mãe e a avó Didita amassando barro para construir os fornos. “Vó Didita vira e mexe constrói uma fornalha, depois desfaz. Quando sente falta, volta a amassar barro para fazer outra, com calma e firmeza, quase como um ritual muito íntimo entre ela e o barro. Acho que essa obra para mim foi um pouco assim, uma necessidade urgente de lembrar do início.” “Veja quanta poesia há nessa imagem. Vida digna também é poesia. Sobreviver não é viver, nem olhos marejados sobre pele negra é ‘a’ vida de negro”, ressalta Flaviana.
No Brasil, ainda são poucos os territórios quilombolas que integram a história oficial do país. No passado colonial, os quilombos se constituíram como espaços onde as pessoas escravizadas conseguiam se proteger após as fugas dos cativeiros. Muitas dessas comunidades se organizaram como importantes pontos de resistência, chegando a criar suas próprias leis, além de desenvolver uma rica vida econômica, cultural e religiosa. Ao longo dos séculos, esses espaços foram sendo dizimados pelo poder político e econômico, mas vários deles sobreviveram, por vezes integrando-se às cidades vizinhas, não sem poder abandonar a luta pelos direitos das populações quilombolas, inclusive o direito à própria terra. A Constituição de 1988 é a primeira do país que traz em seu texto o termo “quilombo”, indicando o direito à propriedade para os descendentes de escravizados por meio do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). E, para que a posse da terra lhes seja garantida, é preciso atravessar um considerável processo burocrático, em que o primeiro passo é a certificação do território, conferida pela Fundação Cultural Palmares.
A certificação do Torra ocorreu em 15 de maio de 2024, estabelecida pela portaria 119/2024, que agora o protege legalmente de tentativas de invasão, expulsão de moradores, especulação imobiliária e turística, comercialização ilegal de terrenos, desmatamento e todo tipo de uso impróprio da área. Além disso, uma vez reconhecidas como remanescentes de quilombo, as comunidades passam a ter direito a programas públicos, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Minha Casa Minha Vida Rural e o Programa de Bolsa Permanência, que oferece auxílio financeiro a estudantes de instituições federais de ensino superior. Mas até a titulação definitiva no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), exige-se mais uma dezena de etapas, com subdivisões.
Jani de Oliveira Silva, 45 anos, uma das líderes comunitárias do Torra, nasceu no quilombo e acompanha esse processo de perto. Ela afirma que seus moradores são compostos, em sua maioria, de afrodescendentes, mas também há indígenas e ciganos. Do pouco que se conhece sobre sua ascendência, uma vez que em geral, no Brasil, houve um apagamento da origem desses povos, Jani diz que grande parte veio da Guiné-Bissau, mas não há comprovação disso.
Os descendentes dos escravizados do Vale do Rio Doce – como, de resto, em todo o país –, por muitos anos continuaram sem ter direito à terra, e, mesmo atualmente, há muitas famílias que só podem morar num determinado território, “cedido” pelo dono, enquanto trabalharem em suas lavouras. Ainda hoje, muitos moradores do Torra trabalham nas fazendas ao redor de Sabinópolis ou nas casas de brancos do Centro da cidade.
Carlos Roberto Nunes dos Santos, o Betinho, 59 anos, foi um desses trabalhadores. “Quando eu era criança, lidava na roça. Não era uma vida fácil. Estudei só até o quarto ano do grupo”, conta Santos, pai de Ana Paula Sirino (a artista adotou o sobrenome materno). Betinho trabalhou por anos como “auxiliar de viagem” na Expresso Tereza Cristina, empresa de ônibus mineira fundada em 1972 e que leva o nome da última Imperatriz Consorte do Brasil, esposa de Dom Pedro II. Para aumentar a renda familiar, já que o salário era baixo, Betinho vendia, durante as viagens, todo tipo de mercadoria, como bateria para relógio e panelas. Mas, casado e com duas filhas pequenas, as coisas continuaram difíceis, e ele decidiu, então, imigrar. “Eu olhava para elas pequenininhas e pensava: O que é que eu vou fazer? Decidi tentar.” Com a ajuda de um irmão, foi, em 2000, primeiro para Portugal.
Betinho nunca tinha pisado num aeroporto, experiência que ele relata como angustiante, de “uma adrenalina pesada”. O percurso foi longo: de Belo Horizonte para o Galeão, no Rio de Janeiro; depois, para a Espanha, “num avião da Varig, velho pra caramba, que se batia todo”. Em seguida, por fim, um voo para a cidade portuguesa de Faro. Sem conseguir pregar o olho desde o Brasil, ele não se esquece do ogro verde que o acompanhou em boa parte da viagem. “Era o Shrek. Tomei até trauma desse filme.” Betinho voltou rapidamente ao Brasil e, em 2002, rumou aos Estados Unidos, “mas só depois que a Copa do Mundo acabou, com o Brasil campeão”. A experiência americana foi mais dura: envolveu acertos com coiotes e a travessia da fronteira com o México, durante a qual ele via espalhadas roupas dos que não tinham conseguido alcançar o outro lado em segurança, além de cartuchos de balas aqui e ali.
Os serviços de carpintaria e construção civil que ele realizou em ambos os países, ao longo de sete anos, lhe renderam, na volta, a compra de um golzinho 2000 – que ele tem até hoje – e algum respiro financeiro para a família. Mas o que mudou a vida da filha Ana Paula foi mesmo a máquina fotográfica analógica que o pai lhe enviara de Portugal. Ainda bem nova, Ana já havia se encantado com uma filmadora que os primos tinham, também enviada do exterior. Mas ter à disposição uma máquina fotográfica, que ela podia usar a qualquer hora, foi fundamental para despertar na futura artista a paixão pelas imagens. Era, aliás, com essa câmera que a mãe, Maria Elisabete, tirava fotos das filhas e as enviava dentro de cartas ao marido, para que ele visse as meninas crescerem. Além das missivas, o contato de Betinho com a família acontecia por meio de telefonemas de orelhão, com dia e hora marcados.
A máquina fotográfica ficava livremente nas mãos da molecada do quilombo, não só das filhas de Betinho. A prática era comum: Ana Paula conta que os brinquedos eram “comunitários”, ou seja, as crianças do Torra entravam e saíam da casa uma das outras e pegavam – e depois devolviam – bambolês, bonecas, bicicleta, sem que necessariamente os donos dos objetos estivessem presentes. Com a máquina fotográfica, a meninada fazia registros das brincadeiras, da lida dos mais velhos, das despedidas de parentes que se mudavam para outras cidades, dos animais e tudo que acontecia por ali. De temperamento observador desde menina, Ana Paula, sem saber, começou aí as investigações imagéticas que a levaram à pintura, arte que ela nunca estudou formalmente. Além de fotografar, ela conta que “ficava ali, um tempão brincando, desenhando. Às vezes brincava de extrair a cor das plantas e testava no papel”, recorda.
A grande incentivadora da arte na vida da menina Ana Paula foi sua mãe, Maria Elisabete, 52 anos. Bete escancarava a porta da casa para as crianças de toda a vizinhança e propunha brincadeiras, peças de teatro, desenhos. “Acho que se ela tivesse tido oportunidade, também seria artista”, diz a filha. “Eu me envolvia muito. Fazia pipa, piorra, peteca, pulava corda, fazia tamanca de lata, de bambu, amarelinha, bambolê”, recorda a hoje dona de casa, que já trabalhou na lavoura e com serviços domésticos. Mas a paixão de Bete é mesmo a dança. “Acho muito lindo ver as pessoas dançando balé. Me arrepio, me emociono. Meu corpo pula quando ouço música”, revela. Quando percebeu que a filha mais nova se direcionava para o desenho e a pintura, se encheu de orgulho. “Agradeço por minha filha estar trabalhando com pintura. Isso, para mim, é a realização de muitas coisas que eu não pude fazer”, ela afirma, lembrando-se de que era Ana Paula, com pouco mais de 4 anos, quem fazia os desenhos pedidos pela professora da irmã Eliza, quatro anos mais velha.
A noção de que vivia num quilombo só chegou a Ana Paula anos mais tarde. “Em casa, a gente não conversava sobre raça, sobre nada disso. Só vivia ali. Mas lógico que a gente experimentava alguns sentimentos, como o de chegar no Centro da cidade [de Sabinópolis] e se sentir inadequado. São experiências que não são só individuais. Acontece o mesmo com quem vive em favelas, por exemplo”, diz. De alguma forma, o quilombo do Torra era um território seguro para Ana Paula: ali, sua negritude não era questionada e, por algum tempo, ela esteve protegida do racismo. “Mas sempre fui curiosa, né? Passei a fazer perguntas, ainda mais quando comecei a desenhar. Fui desenhando a minha família e os vizinhos a partir das fotografias, e aí foi crescendo o meu interesse, tipo ‘meu Deus, qual é a história de fulano?´”, lembra. “Ninguém tinha o costume de contar a própria história. Acho que é porque eles nunca sentiram que as histórias deles eram importantes.”
Aos 13 anos, com a melhora da condição financeira da família, Ana passou a morar em Populares Novas, um bairro do outro lado de Sabinópolis, considerado “mais chiquezinho” e que tinha mais pessoas brancas. “No Torra, eu me sentia bem comigo mesma, com as pessoas que estavam perto de mim, pessoas que tinham experiências parecidas com a minha”, diz ela. Evitar tomar muito sol e alisar os cabelos foram formas que a adolescente encontrou de se adaptar ao novo local, mas que lhe deixaram feridas. “E minha mãe era trancista!, trançava os cabelos das mulheres e das crianças”, conta. Ela se lembra de uma vez que foi à praia e acabou se bronzeando. “Na volta, uma amiga, que era branca, me deu um talco e disse que isso ia me ajudar a clarear a pele.”
No fim da adolescência, um forte desejo de conhecer cidades maiores e expandir seu conhecimento de mundo começou a crescer em Ana e, em 2019, aos 22 anos, com a ajuda dos pais, ela partiu para Belo Horizonte. Ali quis se aprofundar em pautas de gênero, raça e racismo ambiental, temas que circulavam entre os amigos artistas e estudantes que frequentavam o apartamento, agora dividido com a irmã Eliza e duas amigas. “Fui resgatando as memórias de como eu era, o meu jeito e o meu cabelo.” Esse resgate íntimo se conecta diretamente com a ampliação do repertório de interesses de Ana Paula por artistas e pensadores que se transformaram em forte estímulo para seu trabalho. Entre eles, está sobretudo Milton Nascimento, cujas canções “me fazem sentir que é possível traduzir emoções de diferentes maneiras”, explica. Nas estantes de Ana figuram com destaque o escritor Itamar Vieira Jr., o multiartista e ativista Abdias Nascimento e a poeta feminista norte-americana Alice Walker. As fotografias do norte-americano Gordon Parks e as obras da pintora e ceramista mineira Maria Lira Marques também instigam a imaginação da jovem artista, que completa sua lista de inspirações com o nome da amiga Andreza Neves Vieira, fotógrafa, bordadeira e pesquisadora informal das festas tradicionais mineiras de matriz africana. “A forma honesta e impecável que ela tem de dialogar com a essência e a beleza das coisas é inspiradora para mim”, revela.
Depois de um breve período trabalhando com tatuagem ainda em Sabinópolis, foi na capital mineira que Ana começou, sozinha, a testar outras linguagens, primeiro desenhando com giz, depois pintando com tinta acrílica, para só depois chegar à tinta a óleo. Passou, então, a postar seus trabalhos nas redes sociais, e um deles foi compartilhado pelo amigo Pedro Neves, artista plástico maranhense radicado em Minas. A postagem de Pedro foi notada pela galeria mineira Rodrigo Ratton, que, em 2021, propôs a Ana fazer a representação de suas obras. Em 2022, Ana Paula Sirino ganhou uma individual, Nos Olhos do Começo, com a apresentação de treze telas. O contrato com a Rodrigo Ratton durou até meados de 2023; desde então, ela segue sem galeria.
As vivências numa cidade maior e o contato com artistas urbanos poderiam facilmente ter afastado Ana Paula de seu lugar de origem, levando-a cada vez mais a novas paisagens, incitando outros desejos. Mas o efeito parece ter sido o contrário: quanto mais a artista refinava sua técnica, mais ligada ao Torra se sentia. Ana intensificou suas visitas ao quilombo, onde permaneceram muitos parentes, e, mesmo vivendo em São Paulo desde novembro de 2022, se reconectou com o lugar de forma intensa, a ponto de pedir para a moradora de sua antiga casa deixá-la entrar lá de vez em quando, para subir na árvore do quintal e rever o córrego que passa ao lado. As conversas com os moradores, sobretudo os mais antigos, se tornaram mais frequentes e fundamentais para o trabalho da artista: ela voltou a retratar em foto as pessoas, agora pela lente do celular. Também empreendeu uma pesquisa nos arquivos de imagens da Igreja Evangélica Missionária Pentecostal, fundada por holandeses e que atua na região desde 1967. Passou a registrar as festas tradicionais de Sabinópolis: a Caboclada e a Marujada, ambas parte dos festejos de Nossa Senhora do Rosário e celebradas pela população preta desde o século XVIII, sendo uma das manifestações mais antigas do Congado de Minas Gerais.
Mas um acervo de imagens ainda mais rico está guardado na cabeça da artista e das pessoas por ela retratadas: é na memória vivida e ouvida que ela busca muitas das cenas que transforma em tela. “Quando tento voltar [ao passado] e não consigo, peço ajuda dos amigos para tentar recriar esses momentos. A gente vai lembrando enquanto refaz”, ela conta. Num verdadeiro jogo de espelhamento, Ana fotografa a encenação e, a partir disso, pinta. “Acho que assim estou praticando um tipo de memória ativa. Meu movimento é, o tempo todo, o de tentar lembrar”, ela explica. E, como nenhuma memória é pura, é no encontro do passado com o presente que se abrem as brechas para a imaginação da artista. “Cresci num lugar em que a fantasia estava em tudo”, continua ela. “Existia um sentimento de estar isolado, longe de tudo, de todas as coisas que a gente via na televisão ou escutava no rádio. A fantasia era o que a gente tinha para poder viver.”
Daiane Aparecida Lucas dos Santos, 27 anos, que aparece nas telas Alguém vai pra panela! (segurando uma galinha) e Anterior às mãos, é amiga de infância de Ana Paula e uma das pessoas que a ajudam a restaurar momentos passados. São os filhos gêmeos de Daiane que aparecem em Eu vim correndo à frente do Sol, em que duas crianças risonhas são empurradas num carrinho de mão, brincadeira que as amigas experimentaram muitas vezes na infância, mas que “as crianças de hoje em dia não fazem mais”, acredita Daiane. Sobre como se sentiu ao ser retratada pela amiga artista, ela diz: “Fiquei lisonjeada. Acho importante as pessoas negras serem retratadas. A gente se sente meio invisível, né? Quando a Ana Paula quis me retratar, comecei a me ver com olhos diferentes, parei de ter medo do que as pessoas iam achar de mim.”
“Me senti uma diva”, proclama a retratada Maria Salomé Lessa Miranda, 63 anos, trabalhadora rural aposentada, a mesma que dirige o fusquinha em Alguém vai pra panela!. Maria é filha de seu Joaquim, 88 anos, que aparece com os trajes típicos da Marujada em Era dia de festejo. Conheceu Ana Paula ainda criança e, assim como Daiane, enxerga no trabalho da artista um modo de se manter viva a história do quilombo e de enaltecer seus habitantes. “Às vezes a gente fica triste, porque não se valoriza por ser negra, por ser escrava. A gente tem que mostrar que tem valor”, afirma. Neta de escravizados, Maria começou a trabalhar aos 7 anos, “varrendo terreiro de fazenda para poder ganhar uma rapadura”.
Nutrir-se do passado e do presente, das vivências individuais e coletivas do quilombo do Torra tem sido determinante não apenas para a obra plástica que Ana Paula Sirino está desenvolvendo – espécie de escrevivência visual –, mas também para a forma como a artista se coloca no mundo. “Quando estou longe do Torra, tenho a sensação de que estou sempre perdendo alguma coisa, coisas que estão deixando de existir”, conta. Por isso, segundo ela explica, sua filosofia de criação inclui pôr tudo o que vê “sob a luz mais bonita, para poder olhar para aquilo por mais tempo”. Sem apagar as ambivalências daquilo que enxerga, Ana gosta de pensar na imagem solar: “Capto as experiências e coloco debaixo do sol. O sol, de vez em quando, faz arder a vista, mas ele também torna mais fácil olhar para as coisas, para nós mesmos, inclusive pra gente se reconhecer e gostar do que vê.” “Quando vejo as pinturas da Ana Paula, penso no que a [escritora norte-americana, pesquisadora em estudos de raça, gênero e classe] Christina Sharpe fala sobre a beleza como método, essa beleza que acontece apesar de qualquer outra coisa e que está no cotidiano. Isso tem muito a ver com a luz de suas pinturas”, analisa Lorraine Mendes.