Ao analisar os riscos da nova economia liderada por titãs tecnológicos, o consultor americano John Sviokla, que foi professor da Escola de Negócios de Harvard, evoca um cultuado filme de ficção científica de 1985. Intitulada Brazil, a obra de Terry Gilliam, com Robert de Niro, engana os desavisados – a única referência ao país são os acordes de Aquarela do Brasil, que embalam um futuro distópico. Ambientado “em algum lugar do século XX”, o enredo tem como ponto de partida um erro de digitação que leva à prisão do sujeito errado, expondo as armadilhas de um sistema que se orgulha da própria precisão. “Em uma sociedade livre, informação é o nome do jogo”, sintetiza um dos personagens, nos primeiros minutos da trama.
A fala soa profética na era do império digital, que hoje domina o ranking das mais valiosas empresas do planeta. Alinhadas nas cinco primeiras posições, as gigantes americanas Apple, Amazon, Alphabet (Google), Microsoft e Facebook ostentam juntas um valor de mercado de 3,7 trilhões de dólares no ranking global da Forbes, divulgado em junho – montante bem superior ao PIB brasileiro, de 2,055 trilhões de dólares. Se fossem um país, seriam o quarto mais rico do globo, à frente da Alemanha. Em ritmo acelerado, o mercado da tecnologia já desbancou a indústria do petróleo, que há dez anos reinava no topo das mais valiosas. E promete revolucionar o mundo nas próximas décadas com outras inovações, como micro-robôs capazes de produzir células-tronco, o que abriria caminho para a cura do câncer.
Tamanho potencial é acompanhado com expectativa pelos investidores, e os deslizes cobram seu preço na mesma escala gigantesca. A queda recorde de 120 bilhões de dólares nas ações do Facebook na quinta-feira, após a divulgação do balanço trimestral da companhia, que reflete as consequências do escândalo da Cambridge Analytica, mostra que a cotação das superpoderosas digitais não é intocável. Mas, como predizia o filme Brazil, o jogo da informação está apenas no começo. E vai muito além das redes sociais.
“Minha maior preocupação é que tenhamos garantias para evitar muita invasão nas nossas vidas por governos e empresas, porque já temos ferramentas para vigilância massiva. É como no filme: se você é mal identificado, se o algoritmo está errado, se o dado não é verdade, se alguém cria alguma acusação falsa contra você, é difícil se livrar daquilo”, diz Sviokla.
O consultor destaca a crescente competitividade oriental nesse mercado, lembrando que as chinesas Tencent e Alibaba vêm logo atrás do quinteto tecnológico americano. Como a China adota políticas controversas, como o anunciado sistema de “crédito social”, que pretende atribuir uma nota a cada um de seus cidadãos, com base em critérios como o que compram ou postam na internet, Sviokla teme o alastramento de valores antidemocráticos. “Em geral não se está prestando muita atenção nas companhias chinesas, elas têm muito poder e estão crescendo rápido”, salienta.
Uma das características do novo império é que seu valor não está mais ligado a um produto físico, mas à oferta de serviços. Para Joe Kennedy, economista sênior da Fundação de Tecnologia da Informação e Inovação (ITIF, em inglês), com sede em Washington, a mudança traz vantagens competitivas. Enquanto na velha economia as empresas precisavam de grandes plantas industriais e alto capital para produzir um único carro, por exemplo, na era high-tech a coleta de dados tem papel central para a criação de receitas – e o uso dessa informação em tempo real para aprimorar serviços multiplica os ganhos.
Ainda que a economia digital seja aparentemente mais volátil, por desbravar novos modelos de negócio, Kennedy não vê nisso uma potencial ameaça, como a bolha imobiliária que estourou em 2008. “O valor de algumas dessas companhias pode até estar superestimado, mas a tecnologia que elas produzem é real, é sólida”, justifica.
Refletindo o otimismo dos investidores, as ações da gigantes tecnológicas têm se valorizado em ritmo mais veloz do que o incremento de receitas. Isso explica por que a rede varejista Walmart, por exemplo, que é líder global em vendas, tem um valor de mercado quase três vezes menor do que o da fábrica do iPhone. Mesmo com 500,3 bilhões de dólares em receitas no último ano, a Walmart é avaliada em 263,6 bilhões de dólares, enquanto a Apple faturou 229 bilhões de dólares e vale 921 bilhões de dólares, segundo dados do ranking Fortune 500.
Por outro lado, as imperatrizes da tecnologia sofrem pressão pela inovação contínua, sob o risco de serem destronadas pelo próximo gênio criativo. Não por acaso, observa Kennedy, Google e Facebook estão investindo em novos campos, que incluem até satélites para a conquista espacial. A aposta nesse futuro em construção está embutida na sua valorização de mercado. Em sua apresentação no festival de inovação SXSW, em Austin, em março deste ano, o diretor de engenharia do Google, Ray Kurzweil, previu que, até 2029, a inteligência artificial deverá alcançar a inteligência humana em todas as áreas. E, em menos de cinco anos, o tão imaginado cenário de ficção científica deve começar a ganhar as ruas, com carros voadores pelos ares e impressoras de roupas 3D em nossas casas.
“Essas empresas precisam inovar constantemente para se manterem no topo. Elas não são tão inabaláveis, porque a pressão é constante. Lembra quando se falava do domínio do MySpace? Quem se lembra da Nokia e do Blackberry?”, relativiza o economista do ITIF.
Diante desse cenário, o economista líder de Práticas Globais de Macroeconomia, Comércio e Investimento do Banco Mundial, Mark Dutz, acredita que países como o Brasil precisam aprender a tirar proveito das plataformas globais. No livro Emprego e Crescimento – A Agenda da Produtividade, publicado neste ano pelo Banco Mundial, Dutz estima que, com a eliminação de taxas sobre a tecnologia, o Brasil poderia aumentar seu PIB per capita em 1,5% ao ano.
“A Argentina e o Brasil hoje são os lugares mais caros do mundo para comprar iPhone e iPad, quase o dobro do valor na Califórnia e Hong Kong. Em vez de premiar os amigos dos governantes e proteger o mercado interno, seria melhor se abrir para gerar empregos e crescimento, a preços competitivos”, defende.
Nem todos acreditam em autorregulação do mercado. Autor do livro Move Fast and Break Things – How Facebook, Google and Amazon Cornered Culture and Undermined Democracy [Mova-se rápido e quebre coisas: Como Facebook, Google and Amazon encurralaram a cultura e minaram a democracia, em tradução livre], Jonathan Taplin classifica como perigosa a concentração de poder nas mãos de um punhado de gigantes, não só pelo risco de invasão de privacidade, mas também pela manipulação de dados por interesses comerciais.
“O Google tem 90% da propaganda na pesquisa digital. E o Facebook cerca de 75% das redes sociais móveis. É uma situação única, ninguém tem isso. Nem a Coca-Cola, que ainda tem que dividir o mercado com a Pepsi”, compara.
Diretor emérito do Laboratório de Inovação Annenberg da Universidade do Sul da Califórnia (USC), em Los Angeles, Taplin já gerenciou turnês de Bob Dylan e produziu filmes de Martin Scorsese. E se ressente pelo modelo econômico que premia a plataforma em detrimento dos produtores de conteúdo. Classificando o YouTube como “câncer do mercado da música”, defende a quebra de monopólios.
“As empresas poderiam fazer muito para melhorar a situação, mas se querem fazer é diferente, porque afetaria a margem de lucro”, raciocina. Apesar de crer que a sociedade continua “dormindo no meio da revolução”, Taplin comemora sinais de um despertar, como a multa recorde de 4,34 bilhões de euros (19,3 bilhões de reais) aplicada pela União Europeia ao Google neste mês, por violação de regras de livre-concorrência envolvendo o Android.
Em meio aos escândalos de vazamentos de dados e a enxurrada de fake news para uso político, cresce também nos Estados Unidos a pressão para que as líderes da tecnologia se assumam como companhias de mídia, o que aumentaria o compromisso pelo que divulgam.
“Hoje elas têm todos os direitos, e não as responsabilidades”, observa Philip Napoli, professor de políticas públicas na Duke University. Os antigos argumentos dos executivos do Vale do Silício para negar esse papel – como “não produzimos conteúdo”, “somos cientistas da computação”, ou “nossa missão é tornar o mundo melhor” – não convencem mais, e a revisão de políticas de combate às fake news pelo Facebook mostra que a empresa já se deu conta disso. “O irônico é que por um tempo esse discurso funcionou”, ri Napoli. No jogo da informação, o blefe também rende dividendos.