O governo de Jair Bolsonaro já editou, desde que tomou posse, em janeiro de 2019, ao menos onze decretos, uma lei e dezesseis portarias do Exército e da Polícia Federal visando a flexibilização das regras para aquisição, posse e porte de armas de fogo e munições no Brasil. Como consequência, de acordo com dados obtidos junto à Polícia Federal pela Coluna do Estadão, entre janeiro de 2019 e agosto de 2020 já foram concedidos 336.492 registros de armas de fogo, sendo que, desses, 199.413 eram referentes a novas armas (cerca de 63% para pessoas não ligadas a instituições de segurança pública e privada do país).
Dito de outra forma, para cada nova arma adquirida, 1,7 registro foi concedido no período, em um indicativo de que, durante a gestão Bolsonaro, as pessoas não estão apenas comprando novas armas, mas estão se armando mais, em uma espiral pouco associada à agenda da segurança pública e fortemente conectada com a subordinação das instituições ao projeto de poder do presidente. Afinal, o número maior de registros mostra que armas antigas estão tendo seus registros renovados e, portanto, é possível supor que quem está comprando novas armas é, preponderantemente, quem já possui outras.
O início do governo Bolsonaro está possibilitando a renovação dos arsenais privados e a compra de armas anteriormente restritas às forças policiais e às Forças Armadas. Porém, os dados da PF não detalham se os registros são para compradores de uma única arma de fogo e/ou são para pessoas que já possuíam outras armas, informação que poderia validar ou refutar tal hipótese.
Essa falta de detalhamento da informação nos registros policiais está longe de ser um problema apenas da Polícia Federal e está, em muito, associada ao apagamento da memória levado a cabo pelo projeto excludente e autoritário de nação louvado pelo presidente em seu pronunciamento no último dia 7 de setembro, dia da Independência do Brasil. Projeto este que tem nas reações sociais ao Decreto 798, de 1851, mudando as regras do Registro Civil do Império (Lei do Cativeiro), a origem de duas das marcas históricas mais perversas da construção da identidade nacional: o apagamento da memória dos efeitos da escravidão e a valorização da ideia da miscigenação como fator constituinte do brasileiro, utilizada para minimizar ou refutar, na esfera pública no país, a discussão racial.
Por tal projeto de nação, contra todas as evidências científicas, que mostram que, em países como o Brasil, quanto mais armas, mais mortes violentas, e que tais mortes estão desigualmente distribuídas de acordo com variáveis como raça/cor e gênero, o atual governo importa o discurso armamentista dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que acusa os que pedem controle e regulação das armas de serem porta-vozes de posições antipatrióticas e exógenas à realidade nacional.
Por este raciocínio, os dados da edição 2020 do Atlas da Violência, parceria do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o Ipea – mostrando que negros são as principais vítimas de homicídios e tiveram, entre 2008 e 2018, risco 74% superior aos não negros (64% no caso das mulheres negras) de serem assassinados, e que 77,1% dos homens e 53,7% das mulheres foram assassinados com armas de fogo – são invisibilizados e perdem-se em meio às fragilidades das estatísticas oficiais da segurança pública brasileira.
Políticas públicas baseadas em evidências são substituídas e/ou têm espaço diminuído para a exploração reducionista e parcial do imaginário social em nome de uma tática para atualizar uma narrativa que busca referência no mito da integração de indígenas, brancos e negros no Brasil; busca um passado idealizado de integração racial e harmonia, porém sem explicitar que nesse passado a violência foi e continua sendo estruturante das relações sociais, mas aceita em nome de um projeto de nação “moderna” e supostamente fundada na ideia de pátria e de tutela militar; no cristianismo, na liberdade e na democracia (entendida quase que exclusivamente, como revelam as propagandas do TSE, no ato de votar).
Ao mencionar o projeto de nação defendido pelo atual governo, é sintomático que, no discurso pronunciado na comemoração do dia da independência, Bolsonaro tenha apresentado um discurso bem próximo daquele defendido pelo general Villas Bôas, ex-comandante do Exército, em julho de 2020, no Estadão. O general afirmou que, atualmente, o país carece de um projeto nacional, reforçando que o bolsonarismo não seduziu os militares e/ou os policiais mas que, em verdade, parcelas significativas de tais segmentos ajudaram a construí-lo e lhe dão suporte político-institucional.
Isso ocorre, entre outras razões, pela possibilidade instrumental de colocar em marcha um forte revisionismo histórico, que inverte os valores da Nova República ao contar a história pela perspectiva dos militares: o golpe. Nesse revisionismo, que lê a história brasileira como sendo um povo integrado sob permanente ameaça de inimigos internos influenciados por estrangeiros, seus porta-vozes não se furtam a retomar velhos “heróis da pátria”, a reabilitar a figura controversa de torturadores como salvadores da nação e a prometer um futuro de plena integração, eliminando as dissidências democráticas e impondo uma “pax” de cemitério, já que banalizam os cerca de 630 mil homicídios entre 2008 e 2018 e as mais de 127 mil mortes por Covid-19 em 2020.
Isso ganha força ao constatarmos que, no pronunciamento de Bolsonaro, o golpe de 1964 aparece como suposta vitória do povo em nome da democracia contra a ameaça comunista. E, no artigo de Villas Bôas, o golpe também surge como ato patriótico e democrático. E, mais explicitamente, o artigo traz a leitura de que a redemocratização iniciada em 1985, com a ativa participação da esquerda e dos novos movimentos sociais (feminista, negro, de diversidade de gênero, etc.), estaria minando nossa unidade e nos dividindo, na medida em que influenciada por interesses e esquemas mentais estrangeiros.
Se, na idealização do passado, Bolsonaro insiste em referências ao Império e sobretudo ao golpe de 1964, Villas Bôas remete em seu artigo, ainda que sem nomeá-lo explicitamente, ao período varguista (os cinquenta anos que antecedem a década de 1980 e a instauração das cisões entre nós). Reaparece assim no discurso militar a ideia de um projeto de Brasil autoritário, modernizante e desenvolvimentista, construído de cima para baixo, incluindo a população de maneira subalterna e tutelada.
Por tal discurso, a participação social é reduzida ao ato de votar, e a sociedade é reduzida à família tradicional, à igreja e aos indivíduos, que, armados, podem proteger a si próprios e seus familiares da ‘tirania’, seja lá o que isso significar. No limite, trata-se um modelo que desresponsabiliza o Estado de prover segurança pública capaz de prevenir medo e violência e controlar o crime de forma mais eficiente e efetiva; de implementar os comandos da Constituição de 1988, que, ainda em 2018, em propaganda eleitoral do PTB, do indefectível Roberto Jefferson, é acusada de ter direitos demais.
Um projeto que escamoteia sua raiz autoritária ao falar em nome da democracia e da liberdade, mas que pretende excluir as demandas de diversos grupos por igualdade, vistos com desconfiança e como inimigos da pátria. Com isso, o conflito social brasileiro e a dissidência democrática não teriam como causa as profundas desigualdades da nossa violenta realidade, mas a ação de inimigos internos que querem rachar a nação. Políticas de controle de armas, fundamentais para esclarecimentos de homicídios, passam a ser vistas como ações que atentam a um pretenso e inalienável direito individual à autotutela (que em outra frente estimula o movimento antivacina, por exemplo, que também passou a fazer parte do repertório de falas do atual governo).
Em síntese, os dados disponíveis sobre armas de fogo vistos à luz não apenas pela ótica da segurança pública mas das estratégias e das táticas que buscam impor uma narrativa autoritária como sinônimo de patriotismo e de democracia ajudam a compor um cenário de reconversão das instituições ao velho projeto de modernização tutelada e conservadora da sociedade brasileira que o general Villas Bôas e Jair Bolsonaro gostariam de retomar, ainda que agora sob um viés ultraliberal, e não mais desenvolvimentista.