Parece haver uma tendência “natural” para que as notas musicais se encadeiem por intervalos de quinta. Tais intervalos formam relações harmoniosas entre as notas, que não seriam fruto de um gosto adquirido, mas de uma resposta espontânea do ouvido a propriedades físicas do som. O ouvido sente de forma intuitiva que a relação entre dois sons (simultâneos ou consecutivos) separados por um intervalo de quinta é harmoniosa. Aquilo que concebemos como tradição musical do Ocidente tem sido, em grande parte, a exploração minuciosa dos desdobramentos dessa tendência em sua versão progressiva, em que uma quinta puxa para outra, que puxa para outra, e para outra, e assim por diante, num irresistível movimento deslizante. Explora-se, assim, o jogo de forças que se desdobra em efeito cascata até retornar ao centro estável e conclusivo da tônica – a nota que polariza e fornece a definição do posicionamento e hierarquia de todas as outras. Mas uma vez que chegamos à tônica podemos recomeçar novamente o circuito. Não é um caminho reto, mas circular, se afastando e ao mesmo tempo nos levando eternamente na direção da tônica (nosso pouso, nossa casa). A este campo de forças que impulsionam um movimento circular e infinito damos o nome de Ciclo de Quintas.
O Ciclo de Quintas invariavelmente “funciona” por causa da dinâmica de tensão e repouso que está naturalmente embutida nele – com a penúltima nota consolidando seu fluxo de quintas ao cadenciar na tônica. Aplicável tanto ao jazz quanto à música clássica ou ao pop, o Ciclo é um sistema que permite explorar a tendência natural dos acordes (agregados de notas que formam um ambiente sonoro, e que são espécies de “paradas”) a seguir determinado caminho. Trata-se de um dispositivo que pode ser ligado e desligado. Uma canção pode literalmente girar continuamente ao redor do Ciclo ou usá-lo como circuito temporário, uma espécie de “carrossel” musical, pulando para dentro ou para fora dele quando bem entender, aproveitando seu potencial por talvez alguns compassos, antes de seguir por outros caminhos – caminhos menos diretos e seguros, mais inusitados.
Por contar com propriedades tão marcantes, poeticamente tão sugestivas, o Ciclo tornou-se uma ferramenta valiosa na mão dos compositores de canção. Um dos usos mais marcantes que se fez dele pode ser ouvido na clássica “Windmills of your mind”, trilha do filme “The Thomas Crown Affair”. Os temas de “moinhos” e “espirais” dos versos, de “círculos dentro de círculos” espelham com exatidão não apenas o caminho hipnótico seguido pela música, mas parecem descrever a própria natureza do Ciclo de Quintas.
Outras jornadas extremas ao redor do Ciclo (aquelas que deslizam sequencialmente por pelo menos cinco, dos sete acordes diatônicos, até pousar na tônica) podem ser encontradas em grandes standards como “Fly me to the moon” e “Moon river”. Os Beatles encarregaram-se de difundir o seu uso no ambiente da música pop, criando contrastes com a estrutura harmônica mais tradicional e estática do blues e do rock’n roll, abrindo, em meio à energia concentrada do ambiente modal, macias curvas de movimento tonal. O coral do início de “Can’t buy me love” é um bom exemplo: nada menos do que cinco acordes, dos sete diatônicos da escala maior, abrem, em macio andamento, seu caminho inexorável rumo à tônica.
McCartney usaria a fórmula com grande consciência em momentos distintos ao longo da trajetória dos Beatles. Ela aparece em “Golden Slumber”, a partir dos versos “Sleep pretty darling / do not cry / and I will sing a lullaby” (o “lullaby” repousando serenamente sobre a tônica); aparece também como padrão construtivo em “The long and winding road”, na qual o próprio título casa maravilhosamente com o itinerário musical em torno do Ciclo de Quintas.
Tais exemplos configuram casos extremos, mas “sub-sequências” do ciclo, ou “mini-ciclos” aparecem milhares de vezes em diversos outros momentos. Um dos mais decisivos acontece em “Yesterday”, na qual McCartney embarca no carrossel das quintas por um caminho até então raramente utilizado no pop, o do acorde menor do sétimo grau (um acorde construído sobre a nota do sétimo grau). Trata-se do movimento harmônico mais famoso da carreira de Paul. A impressão é a de uma harmonia cíclica que vai, ao mesmo tempo, se distanciando da tônica. O mais impressionante é que o dispositivo de movimento é colocado em andamento logo após a primeira palavra cantada – logo após o primeiro “yesterday”. É possível sentir na pele o modo como a canção subitamente se aventura por territórios “afastados”.
Outras canções já haviam feito tal movimento de embarcar no Ciclo pelo instável acorde de sétima. Canções como “Breakin up is hard to do”, de Neil Sedaka, já o haviam utilizado em meados de 1962. Mas o próprio Paul mencionou sua vibração diante de outra canção que também usou este dispositivo para capturar a imaginação dos ouvintes alguns anos antes: “Foi incrível conhecer Hank Mancini, porque como a maioria das pessoas, nós amávamos ‘Moon river’”. A obra-prima de Mancini é de 1961, e conta com a mesma nuança harmônica que McCartney trouxe para “Yesterday”. Ela ocorre após a palavra “someday”.
Um único movimento harmônico e o que era para ser apenas uma canção agradável se torna um clássico eterno. O acorde que aparece (VIIm7b5), seguido por uma dominante secundária no terceiro grau (III7), traz uma ambigüidade para a seqüência, colocando a progressão em relação com duas tônicas(o I e o relativo menor, VIm), criando assim uma indefinição tonal, um enfraquecimento do nosso senso de direção. Cria, por assim dizer, um momento de relativa indecisão no seguro Ciclo de Quintas. Trata-se de um “pacote” harmônico que sugere ao ouvinte um sentimento genuíno de movimento que se distancia da tonalidade original, e que é, portanto, receptivo a tratamentos líricos que reflitam esse mesmo sentido. McCartney o utilizaria posteriormente em “Here, there and everywhere”, fazendo o movimento harmônico casar perfeitamente com o verso “wave of her hand” – movimento descrito pelo crítico musical americano Ned Rorem como “tão satisfatoriamente correto quanto aquele de um madrigal de Monteverdi…”. Em Yesterday, ele espelha perfeitamente o sentido de distorção temporal evocado pelas linhas iniciais, convidando-nos a partilhar da nostalgia do narrador diante de um “ontem” subitamente já tão distante (agora há pouco estávamos no aconchego do I, e agora estamos no VII, uma das paradas mais distantes da tônica no longo Ciclo de Quintas). Ironicamente, essa mesma distorção temporal aparecia também em “Moon river”, no verso que projeta um “someday” hipotético, momento indefinido de reencontro de amantes erráticos (“two drifters”), e que coincide perfeitamente com o sentido da seqüência harmônica.