“Não peço favores para o meu sexo. Não renuncio à nossa reivindicação por equidade. Tudo o que peço de nossos irmãos é que tirem os pés de nossos pescoços, e nos permitam ficar de pé no chão que Deus designou para ocuparmos.”As palavras são da abolicionista Sarah Grimké (1792-1873), pensadora que pavimentou caminho para o movimento sufragista e pelos direitos das mulheres. Em 1973, Ruth Bader Ginsburg citou a passagem numa audiência do primeiro dos seis casos de discriminação de gênero que apresentou à Suprema Corte Americana (ela venceu em cinco deles), muito antes de tornar-se integrante do tribunal, nos anos 1990.
A frase é daquelas que constroem a imagem de um país. É provável que a mais forte imagem política dos Estados Unidos gire em torno da ideia de uma terra de liberdade e oportunidade. Para acessar uma e outra, convém que não se tenha ninguém colocando os pés em nossos pescoços – coisa que só tem sido possível para uma parte dos americanos.
Freedom (Liberdade) é o título da canção de Beyoncé Knowles escolhida como jingle oficial da campanha de Kamala Harris. A palavra esteve no centro dos principais discursos da Convenção do Partido Democrata, que se encerrou no último dia 22, com o pronunciamento da vice-presidente e agora candidata oficial à sucessão de Biden. Nele, Harris consagrou uma expressão que vinha testando ao longo das últimas semanas: “economia da oportunidade” – um slogan tipicamente liberal.
A chamada crise das democracias já tem cerca de dez anos – e a tentativa de responder à escalada do populismo autoritário por parte dos políticos tradicionais (leia-se, dos homens brancos), nos Estados Unidos como no Brasil, vem se mostrando insuficiente. Tanto a eleição de Biden, em 2020, como a de Lula em 2022, devem-se muito mais à recusa a Trump e Bolsonaro do que à capacidade dos democratas de lá e daqui de formular uma leitura do presente e uma proposta de futuro.
Devemos à jornalista Flávia Oliveira o melhor comentário já feito na imprensa brasileira sobre o fenômeno Kamala Harris: “Da campanha democrata à Casa Branca emerge um jeito de fazer política que os Estados Unidos devem não só ao eleitorado feminino, mas à população há muito tempo.”
O objetivo deste artigo é procurar entender que “jeito” é esse. Antes disso, é preciso recuperar rapidamente o histórico que levou Harris à nomeação.
Em junho, as pesquisas eleitorais indicavam um cenário favorável a Donald Trump na disputa contra Joe Biden. Já nos primeiros minutos do debate promovido pela CNN no dia 27 daquele mês, a inviabilidade da candidatura do atual presidente se tornou evidente, e os clamores para que ele cedesse a vaga não cessaram de aumentar. No entanto, a discussão sobre quem o substituiria parecia aberta, e nomes como Gretchen Whitmer, Gavin Newsom, Josh Shapiro e Mark Kelly pareciam tão ou mais competitivos que o da vice-presidente Kamala Harris – em tese, candidata natural à sucessão. Historicamente, os democratas promovem prévias em que o vice-presidente costuma se apresentar ao lado de outros postulantes. Ainda assim, por que até poucas semanas atrás a posição de Harris parecia ser tão frágil?
Já em maio de 2021, quando o governo Biden completava 100 dias, a revista The Economist revelou que a perspectiva de Harris como candidata à sucessão era motivo de nervosismo entre muitos dos principais líderes democratas. Na campanha de 2020, Biden prometeu que seu eventual governo seria “uma ponte para uma nova geração de líderes”. Em abril de 2023, ele reviu sua promessa de não concorrer à reeleição e lançou-se novamente candidato. Na ocasião, muito se especulou a respeito da possibilidade de manter ou não Harris como sua parceira na corrida.
Com tudo isso, consolidou-se na opinião pública a impressão de que Harris era uma vice-presidente insossa, sem brilho. Kate Andersen Brower, jornalista especializada na cobertura da Casa Branca, defende que Biden armou o fracasso de Harris como vice ao encarregá-la de missões quase impossíveis de serem cumpridas. Apoiadores se queixam de que Biden encarregou Harris de missões praticamente impossíveis de serem cumpridas. O exemplo mais evidente é tê-la nomeado responsável pelos esforços relacionados a conter a imigração na fronteira mexicana – um dos maiores abacaxis da política americana hoje, ao lado do custo de vida.
Com a reversão da decisão Roe X Wade pela Suprema Corte Americana, em junho de 2022, o aborto deixou de ser um direito constitucional. A reação na sociedade civil foi enorme e o tema dominou as eleições legislativas (midterms), momento que costuma funcionar também como termômetro sobre a popularidade do governo. Harris se destacou na defesa do direito ao aborto na campanha das midterms e contribuiu para a surpreendente vitória democrata. Seu momento de protagonismo não veio sem custos: nos meses seguintes, as redes sociais foram inundadas de memes a respeito de sua risada fácil, de sua maneira de falar com expressões inusitadas e mesmo de seus registros dançando com espontaneidade.
Muito se falou também sobre o fracasso de Harris quando disputou a candidatura presidencial democrata. Após ter despontado como um dos nomes mais promissores, Harris rapidamente derreteu nas pesquisas e acabou sendo uma das primeiras postulantes a se retirar da corrida, em dezembro de 2019, antes mesmo do início das prévias. As interpretações sobre o colapso de sua candidatura costumam enfatizar sua inconsistência ideológica.
O repórter Astead Herndon, responsável pelo podcast The Run-up, apresentou recentemente uma interpretação alternativa. Esqueçamos “todas as caixinhas em que tentam colocá-la, seja sobre identidade ou comparando-a a políticos anteriores, sobretudo Barack Obama”, defende ele. Sim, é mais que razoável dizer que o discurso de Harris não estava maduro em 2019. Mas vale a pena tentar entender o que constitui essa ideologia que Herndon prefere chamar de fluida, e por que a essa fluidez que então foi tachada de inconsistente hoje pode ser uma força.
“Fui criada para acreditar que pertenço a qualquer lugar em que eu esteja”, disse Harris a Herndon. Filha de mãe indiana e pai jamaicano, ela morava a poucas quadras da sede dos Panteras Negras e participou do movimento por direitos civis ainda no carrinho de bebê. Ativistas, seus pais a matricularam num curso de história negra que se chamava “Clube do cactus” – e levava esse nome porque era sobre como pessoas negras são capazes de crescer em qualquer ambiente.
Harris sempre teve desempenho escolar extraordinário e optou por estudar direito na Universidade Howard, a mais célebre das chamadas HBCU (History Black Colleges and Universities). Ao se formar, decidiu pela carreira de promotora – para espanto da família e dos amigos, diante de quem teve que “defender sua opção como alguém defenderia uma tese de doutorado”, como revelou a Herndon. “Acredito que segurança é um direito civil, que deve ser acessível a qualquer um.” Mesmo sabendo que o sistema penal americano é enviesado e problemático, Harris apostou na possibilidade de transformar as instituições por dentro.
Sua longa carreira, antes e depois de se eleger procuradora-geral da Califórnia, em 2010, traz experiências interessantes – e cheias de contradição – sobre a luta por justiça por dentro do sistema. É provavelmente uma das razões principais de sua dificuldade na campanha de 2019 e um dos exemplos da tal fluidez ideológica que a define de maneira singular. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, o discurso sobre segurança foi sequestrado pela direita, e os progressistas patinam há anos sem conseguir apresentar qualquer ideia minimamente convincente. Harris está longe de ter a solução, mas a mera discussão que sua pré-candidatura provocou em 2019 contribui mais para o avanço da agenda progressista do que o espaço vazio que lideranças do campo costumam deixar – e que é imediatamente ocupado pela direita mais truculenta.
Vai sem dizer que qualquer política – ou qualquer discurso – sobre segurança pública recobre o racismo que esteve na origem e até hoje sustenta as estruturas jurídicas e repressivas de nossos aparelhos estatais. Por isso, muitos dos projetos propostos por progressistas como Kamala, se geram avanços incrementais, frequentemente acabam por repetir a penalização dos alvos habituais – negros e pobres.
A complexidade ideológica de Harris não é uma equação simples. Mas se a olharmos em chave positiva, podemos dizer que sua defesa por liberdade e oportunidade não é a mera repetição dos valores liberais clássicos, baseados numa ideia iluminista de universal. Ela engloba o entendimento de que é preciso avaliar como a democracia liberal atendeu de maneira desigual seus participantes, a depender de seu gênero e raça. E que é indispensável reformá-la para que sua promessa universalista volte a ser crível, sem o que nenhuma barreira conterá os populismos extremistas. Não podemos depositar todas as fichas no que Harris pode entregar – mas tampouco podemos desperdiçar a oportunidade de avançar na brecha que sua candidatura abre.
Em março de 2020, dias depois de vencer as prévias de seu partido, Joe Biden declarou que indicaria uma mulher para compor com ele a chapa democrata. Menos de cinco meses se passaram entre essa declaração e o anúncio da vice escolhida, mas nesse ínterim nada menos do que dois furacões sacudiram o mundo: a pandemia de Covid e a onda de protestos por justiça racial que irromperam após um policial branco firmar os joelhos sobre o pescoço de um homem chamado George Floyd até levá-lo à morte.
Em 14 de agosto daquele ano, quando Harris foi anunciada vice de Biden, a campanha democrata arrecadou mais doações do que em qualquer outro dia. Naquele contexto, era evidente que o custo político de escolher alguém que não Harris havia se tornado alto demais, e em muitos círculos pairou a sensação que ela havia sido indicada “apenas por ser uma mulher negra”. Desde então, a ideia de uma indicação DEI (referência à sigla Diversidade, Equidade e Inclusão, jargão do mundo corporativo que vem sendo objeto de muita discussão) foi repetida por republicanos, independentes e democratas – além, claro, de jornalistas. Harris sempre se recusou a comentar essa afirmação.
Recentemente, Trump arriscou um caminho alternativo na tentativa de atacar sua nova oponente. Instado a comentar o fato de que apoiadores seus descreviam Harris como “candidata DEI”, diante de uma plateia de jornalistas negros, o republicano arriscou: “Ela sempre teve origem indiana e apenas promovia a origem indiana. Eu não sabia que ela era negra até alguns anos atrás, quando ela por acaso se tornou negra, e agora quer ser conhecida como negra. Então eu não sei, ela é indiana ou é negra?”
À esquerda, ao centro e à direita, as tentativas de enquadrá-la num rótulo identitário são indicativas de uma incapacidade de imaginar que é possível ser uma candidata negra e mulher e ao mesmo tempo representar o conjunto da sociedade. Igualmente limitadas – e talvez perniciosas – são as análises que procuram tirar importância de sua condição de gênero e raça. Nunca foi só porque Kamala é uma mulher negra que ela conquistou qualquer uma das muitas vitórias em sua trajetória – como, por exemplo, o pioneirismo que representa ao ter se tornado, na semana passada, candidata do Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos. Mas querer fechar os olhos para seu gênero e sua raça é tão ou mais absurdo.
A reviravolta no cenário eleitoral desde que Biden abdicou de concorrer e indicou sua vice vem sendo objeto de muita discussão. O caminho tortuoso que levou Harris à nomeação diz muito sobre as inúmeras disputas e contradições dos democratas, bem como sobre as possibilidades e os limites da democracia americana tal como ela funciona hoje. De todo modo, em poucos dias, Harris bateu recordes de arrecadação, dominou a grande mídia e as redes sociais, mobilizou com fervor o eleitorado até então adormecido, fez girar o ponteiro de pesquisas em diversos estados. Como num passe de mágica, tornou-se favorita num pleito que, tudo indicava, levaria a uma fragorosa derrota dos democratas e da democracia.
As eleições americanas são uma Disneylândia para cientistas políticos, tamanha a abundância de pesquisas e o acúmulo das experiências passadas, fartamente documentadas e parametrizadas. Diversos analistas buscaram entender o desempenho surpreendente da candidata – e convém que sigamos tentando fazer isso. Afinal, em política não há magia.
Michelle Obama, na abertura de seu discurso durante a Convenção Democrata, é quem nos oferece as melhores pistas. Ela começa identificando o que chama de poder contagiante da esperança: “A antecipação, a energia, a alegria de mais uma vez estar à beira de um dia mais luminoso. A chance de vencer os demônios do medo, da divisão e do ódio que tem nos consumido e continuar a buscar a promessa inacabada desta grande nação, o sonho em nome do qual nossos pais e avós lutaram, morreram e se sacrificaram.”
Sua fala tem a grandeza das maiores peças de oratória da história política norte-americana, comparável ao discurso inaugural de John F. Kennedy em 1961, ao de Martin Luther King Jr. na Marcha sobre Washington em 1963 – ou ao proferido por seu marido Barack no início de sua primeira campanha presidencial, em março de 2008.
A importância desse discurso não passou despercebida no Brasil. Mas a sua dimensão histórica não foi captada pela direção, invariavelmente masculina e branca, dos grandes veículos. Não ocorreu a nenhum deles, por exemplo, traduzir e publicá-lo na íntegra, como ocorre tantas outras vezes com falas notáveis de líderes mundiais. Por essa razão, não é sem utilidade que nos detenhamos sobre as palavras formuladas por ela nesses vinte minutos que ficarão na história.
Obama rememorou o sentimento esperançoso que norteou a vida de sua mãe, Marian Robinson, que nunca aspirou acumular fortuna e entendia que não seria suficiente que seus filhos prosperassem se todos ao redor estivessem na pior. “Ela estava feliz em fazer o trabalho ingrato e nada glamoroso que por gerações fortaleceu o tecido desta nação. A crença de que se você fizer pelos outros, se você amar seu próximo, se você trabalhar, se esforçar e se sacrificar, isso valerá a pena. Se não for para você, então talvez para seus filhos ou netos.” A ética do trabalho e da conquista pessoal, sim – mas indissociável da solidariedade.
A oradora habilidosa constrói imagens que comunicam como a experiência singular de sua mãe tem muito em comum com a das mães de todos os americanos médios, trabalhadores rurais ou urbanos, moradores de cortiços ou de subúrbios cheios de verde, religiosos de quaisquer credos, estudantes ou membros das forças policiais. Da história de Marian Robinson à experiência universal dos americanos – e desta novamente a uma trajetória singular, agora a de Shyamala Harris, mãe de Kamala.
A antiga primeira-dama rememora uma frase que a mãe da candidata repetia com frequência, e que passou a constar também nos discursos de Harris: “Não fique aí sentada reclamando sobre tudo. Faça alguma coisa.” Impressionante que tenha passado despercebida a semelhança desta frase com uma das mais célebres tiradas políticas dos Estados Unidos, da autoria de Kennedy: “Não pergunte o que o seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer por seu país.”
Obama reforça o sentido universalista das histórias particulares de sua mãe e da mãe de Harris. “A história dela é a sua história. É a minha história. É a história da grande maioria dos americanos que tentam construir uma vida melhor.” Não vale a pena gastar saliva respondendo à extrema direita que caracteriza Harris ou o casal Obama como radicais. São sociais-democratas clássicos: “Não importa de onde você vem, qual é sua aparência, quem você ama, como você reza ou o que tem na sua conta bancária, todos merecemos a oportunidade de construir uma vida decente.”
Isso dito, Michelle Obama não é e não será uma social-democrata qualquer. Ao menos não enquanto a palavra líder social-democrata, se digitada num gerador de imagens de inteligência artificial, resultar no rosto de uma pessoa branca. Ela continua: “Kamala entende que a maioria de nós nunca terá a chance de cair para cima. Nunca vamos nos beneficiar da ação afirmativa da riqueza hereditária. Não temos a chance de mudar as regras de maneira a sempre ganhar. Se vemos uma montanha em nossa frente, não esperamos que haja uma escada rolante esperando para nos levar até o topo. Nada disso. Nós vamos ao trabalho. Na América, nós fazemos alguma coisa.”
Michelle Obama não é e não será uma social-democrata qualquer também porque ela faz questão de elogiar Harris pela alegria de sua risada e por sua luz contagiante. A doçura do elogio destoa do linguajar comum da política e responde, de maneira elegante, à misoginia racista de quem se incomoda com uma mulher negra poderosa que, ainda por cima, ousa rir e dançar.
Não é sem importância o fato de que Trump só tenha sido citado nominalmente a partir da segunda metade do discurso de Obama. Isso revela o quanto ela deseja apresentar uma visão de futuro, para além da mera recusa do horror trumpista – que dominou as campanhas de 2016, 2020 e vinha dominando a de 2024 até que Harris tomasse a cabeça da chapa.
É claro que ela não poderia deixar de falar em Trump – afinal, a ameaça que o candidato republicano representa segue perigosamente viva. Mas em vez de insistir na retórica do medo de Trump, ela aceita abrir um flanco de vulnerabilidade. Afinal, diz ela, apesar da energia que se estabeleceu e se fazia presente durante a convenção, é preciso ter em mente que a qualquer momento alguma coisa poderia dar errado. Com coragem e autoridade moral incomuns, Obama alerta que as pessoas que encabeçam a chapa democrata são apenas humanos e, por isso, imperfeitos – que, como todos nós, eles fatalmente incorrerão em erros. Para então arrematar com um puxão de orelha: “Não podemos sucumbir ao complexo de Cachinhos Dourados e começar a reclamar quando algo não estiver exatamente como queremos. Não podemos nos dar ao luxo de remoer nossas angústias sobre o país estar pronto para eleger alguém como Kamala, no lugar de colocar toda nossa energia para eleger alguém como Kamala.”
Esse último ponto é importante porque há muitos progressistas que, nos bastidores ou no proscênio, volta e meia puxam a conversa sobre os desafios de elegibilidade de candidaturas que insistem em qualificar como “identitárias”. Além de hilária, a menção ao conto infantil da menina sempre insatisfeita – a sopa não pode ser nem muito quente nem muito fria; a cama não pode ser nem muito mole, nem muito dura – dá um sacolejo na branquitude e sua obsessão perversa com o progresso de tudo o que não é espelho.
No ponto mais alto de sua fala, Michelle Obama reuniu a força da mensagem que ecoava Kennedy com a tradição dos pregadores batistas, que tem em Martin Luther King Jr. seu maior expoente: “Então se eles mentirem sobre ela – e eles o farão –, nós precisamos fazer alguma coisa. Se virmos uma pesquisa ruim – e nós veremos –, nós precisamos desligar o telefone e fazer alguma coisa. Se começarmos a nos sentir cansados, se começarmos a sentir aquele medo voltando, precisamos reunir forças, jogar água no rosto e o quê?” A multidão responde: “Fazer alguma coisa.”
Liberdade, oportunidade, patriotismo, prosperidade. Valores liberais clássicos e, nesse sentido, nenhuma novidade. Mas parece haver um jeito novo de falar desses valores. Um jeito que dá igual destaque à ideia de solidariedade, que não hesita em criticar o pernicioso ciclo de reprodução de poder da branquitude e da meritocracia.
O resultado está longe de estar definido. Ao longo das próximas semanas, veremos quão eficaz será o chamado para a ação formulado por Michelle Obama, e quão resiliente Kamala Harris será diante de um oponente como Donald Trump (o debate previsto para o dia 10 de setembro será um primeiro grande teste). Também veremos a eficácia dessa reformulação dos valores clássicos da democracia liberal, em que feminismo e antirracismo informam o sentido de universalismo tanto quanto valores como a ciência e a razão. No cenário de uma eventual vitória democrata, restará ver como as muitas contradições que construíram a candidatura de Harris resultarão em seu governo.
De todo modo, há muita coisa em jogo nessas eleições e os sinais emitidos pela candidatura de Harris e seu jeito de fazer política – social-democrata, feminista e antirracista – merecem atenção. Não podemos perder a oportunidade de amplificá-los no Brasil, onde Cachinhos Dourados reclama do “identitarismo” enquanto as botinas dos soldados do bolsonarista Tarcísio de Freitas, bem como dos do petista Jerônimo Rodrigues, seguem pisando em pescoços que têm gênero e cor facilmente identificáveis.