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    Mohamad Feras Al-Lahham em frente ao campo de refugiados Eleonas, em Atenas Foto: Acervo pessoal

depoimento

Solidariedade no exílio

A história do médico sírio que veio ao Brasil fugindo da guerra civil e, anos depois, viajou à Grécia para socorrer outros refugiados

Mohamad Feras Al-Lahham | 26 jan 2022_17h50
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O médico Mohamad Feras Al-Lahham, de 40 anos, se mudou para o Brasil em 2013 junto com sua família. Vieram fugindo da guerra civil que devastou o país e que ainda está em curso. Em parceria com um de seus irmãos, que é dentista, Mohamad abriu uma clínica em Curitiba (PR), e hoje a família está bem estabelecida em solo brasileiro. No ano passado, ele foi convidado por uma ONG a participar de uma missão humanitária na Grécia, cuidando de refugiados vindos de várias partes do mundo. A experiência reconectou o médico sírio com seu passado. Ele contou esse história à piauí.

Em depoimento a Felippe Aníbal

 

Minha vida começou a mudar em 2011, com o início da guerra civil na Síria. A situação foi se agravando aos poucos até 2013, quando os conflitos se tornaram mais frequentes. A cidade onde eu vivia com minha família, Damasco, passou a ser bombardeada cotidianamente, e nossa vida se tornou insuportável. Ouvíamos explosões de bombas e mísseis todos os dias. A escola onde minha irmã mais nova estudava foi destruída. Era terrível a sensação de não saber se você conseguiria voltar para casa. Não tivemos outra opção senão fugir do país.

Quando decidimos deixar a Síria, migramos primeiro para o Líbano e, de lá, passamos a pedir refúgio em outros lugares. Nós pedimos asilo a 25 países, ao todo. O Brasil foi o único que aceitou receber a família inteira – minha mãe, meus quatro irmãos e eu. Quando recebemos a resposta, foi uma alegria enorme. Nós dizíamos: “É o nosso Maktub! Foi Deus quem escreveu!”

Desembarcamos no Brasil em 2013, numa data simbólica: 25 de dezembro. Escolhemos ficar em Curitiba, porque, depois de fazer várias pesquisas, concluímos que era uma cidade parecida com a nossa Damasco. Inicialmente, ficamos num hotel e em seguida alugamos um apartamento. Encontramos muitas dificuldades nesse primeiro momento. Além de não conhecer ninguém, não sabíamos uma única palavra de português. Quando íamos ao mercado tínhamos que recorrer ao Google Tradutor para encontrar o que queríamos. Isso, é claro, sem mencionar a tristeza de termos deixado nossa terra e nossa história para trás.

Também nos deparamos com muitas barreiras para conseguir exercer nossas profissões no Brasil. Eu, por exemplo, sou médico especializado em otorrinolaringologia. Enfrentei uma jornada enorme para conseguir revalidar o diploma. Viajei a vários estados, passei por uma série de universidades tentando conseguir o documento. Minha formação como clínico geral só foi reconhecida depois de três anos dessa odisseia. O que significa que fiquei três anos sem poder trabalhar direito, vivendo de dar aulas avulsas de árabe, inglês e francês quando havia a oportunidade. Para revalidar o título de otorrinolaringologista, foi-se mais um ano. Felizmente, consegui. Hoje sou mestre pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Minha família viveu o mesmo périplo. Um dos meus irmãos é engenheiro de petróleo. Uma de minhas irmãs está cursando doutorado em farmácia e a outra se formou em arquitetura. Minha mãe concluiu o mestrado em direitos humanos e está se preparando para o doutorado. Todos penaram para conseguir revalidar seus diplomas aqui no Brasil.

Meu outro irmão é dentista e, junto com ele, fundei a Clínica Síria aqui em Curitiba. É uma homenagem ao nosso país de origem. Nós tentamos passar um pouco da nossa história para os pacientes, além de ajudar ao máximo os refugiados que chegam a Curitiba. Hoje, aos 40 anos, sou cidadão brasileiro e vivo bem. Muita gente nos ajudou nessa trajetória: dos professores voluntários de português que nos ensinaram o idioma até as pessoas que nos ouviram e que pegaram na minha mão para que eu conseguisse chegar onde estou.

 

No segundo semestre de 2021, a ONG Círculos de Hospitalidade, que nos acompanhou desde que chegamos ao Brasil, me convidou para uma missão humanitária na Grécia. Eles precisavam de um médico que falasse árabe e que pudesse prestar atendimento aos refugiados. Respondi a eles na hora: “Eu topo muito!” Eu sei o que é você ter que deixar sua terra e lutar para recomeçar a vida em outro país. Me senti na obrigação de ajudar.

Aterrissei em Atenas no dia 4 de dezembro. Tive a sensação, no começo, de não estar num país europeu, mas sim em alguma nação do Oriente Médio. Eram os mesmos problemas, o mesmo trânsito. A única diferença é a moeda.

Fui prestar serviços em Eleonas, o maior campo de refugiados da Grécia. De cara, senti uma tristeza muito grande. O campo tem capacidade para receber 2 mil pessoas, mas contava, então, com mais que o dobro de refugiados – a maioria vinda da Síria. Os contêineres de metal construídos para abrigar as famílias não atendiam nem metade delas. Em alguns casos, dez pessoas se amontoavam num contêiner. Os demais refugiados ficavam em tendas de campanha, que eram distribuídas e armadas onde coubesse. Toda a área é cercada por um muro de metal alto, de mais de 2 metros de altura, que faz lembrar um campo de concentração. Ninguém pode sair dali. É um cenário triste e angustiante.

Desde 2015, a Grécia é a principal porta de entrada para os migrantes que desejam chegar à Europa. Em geral, os refugiados saem de seu país de origem e vão até a Turquia. Na costa turca eles pagam contrabandistas e embarcam num bote que os conduz até as ilhas gregas. Quando a Guarda Costeira flagra esse tipo de operação, o que não é raro, os migrantes são levados a campos de refugiados. O principal é o de Eleonas. 

A maioria das pessoas que encontrei ali eram da Síria, como eu, mas havia muitos refugiados do Iraque, do Afeganistão, do Congo e de Angola. Essas pessoas passaram por situações inimagináveis a bordo de um bote inflável, às vezes enfrentando tempestades, sem saber se chegariam à Europa. Embarcaram com suas famílias, correndo risco de perder a esposa, a mãe ou os filhos na travessia. Os refugiados com quem conversei diziam estar cientes do perigo, mas que não havia outra opção. É uma tragédia humanitária.

As condições por lá são precárias. O campo de refugiados disponibiliza a infraestrutura e nada mais. Quando fui, era inverno, e às vezes fazia um frio de 4ºC. Em uma das noites, um congolês montou uma fogueira para se aquecer dentro da tenda. Ele acabou dormindo com o fogo aceso e provocou um incêndio que se alastrou pelo contêiner ao lado, onde vivia uma família de sírios. Um deles acabou salvando o congolês, e o fogo foi controlado.

Não falta comida no campo de refugiados porque as ONGs ajudam muito. Além disso, as pessoas improvisam: criam galinhas – você vê muitas delas andando soltas –, plantam tomate e pepino. Alguns também juntam papelão e vendem o material para uma fábrica ao lado, por 20 euros cada fardo. E todos se ajudam muito. Se alguém tem comida, compartilha com os vizinhos. Vivem como uma grande família. A solidariedade entre os refugiados é marcante, e é isso que os ajuda a atravessar esse momento tão delicado.

 

Desde que cheguei a Atenas, passei todos os dias trabalhando no campo. Foram 24 dias ao todo. Fiquei hospedado em um dos contêineres de metal e criei uma rotina: acordava, tomava um café na tenda dos voluntários e partia para os atendimentos. Alguns refugiados que estavam ali havia mais tempo faziam o papel de guia e me ajudavam a me locomover. Todos os outros médicos só falavam grego, o que inviabiliza a comunicação com os refugiados. Antes de mim, as pessoas passavam pelas consultas médicas sem entender uma só palavra. Simplesmente apontavam o lugar onde sentiam dor. Imagine o que é isso!

Quando sírios e iraquianos souberam que havia um novo médico que falava árabe, eles explodiram de alívio. Diziam para mim: “Agora quero me consultar só com você.” Mas não somente eles ficaram aliviados. Como falo francês, passei a atender também congoleses. Por fim, quando os angolanos descobriram minha existência, fizeram uma festa. Ficaram muito felizes em ouvir o português. Parecia que estavam falando com um patrício.

Mais do que buscar atendimento médico, os refugiados começaram a me procurar para que eu simplesmente os ouvisse. Durante o dia, eu passava de tenda em tenda, contêiner em contêiner. À noite, me sentava com vinte, às vezes trinta pessoas, e ficava ouvindo suas histórias. Permanecia ali até as dez, onze horas da noite. O principal problema entre eles é a depressão. Eu me tornei uma espécie de psiquiatra. Eles tinham muita angústia, uma necessidade de falar, de compartilhar suas histórias. E eram histórias muito tristes. Pessoas que passaram trinta horas em um bote inflável em mar aberto, que perderam familiares na travessia e que agora estavam lutando para recomeçar a própria vida a partir do nada.

Outro problema é que os refugiados, em geral, não têm acesso a medicamentos. Quando embarquei para Atenas, levei uma mala cheia de remédios não controlados: analgésicos, antitérmicos, anti-inflamatórios… Eram mais de trezentas caixas no total. Em menos de uma semana, distribuí todas. Isso acontece porque, ao chegar no campo de refugiados, os imigrantes dão entrada num processo para serem reconhecidos – ou não – como refugiados. Nesse momento eles recebem um protocolo. Sem esse papel, eles não têm direito a nada. Presenciei o caso de uma senhora diabética que perdeu o protocolo. Fiquei muito comovido e, com ajuda da ONG, comprei os remédios dela e de outras pessoas.

Durante minha estadia, aproveitei e coletei dados para um estudo que tive a ideia de fazer. O objetivo é verificar as condições auditivas de crianças que fugiram de zonas de conflitos em que foram submetidas ao ruído de tiros, bombas e explosões. Será que essas crianças escutam menos que aquelas que vivem em condições normais? Pedi aos guias que me apresentassem o maior número possível de crianças sírias. Eu fazia a triagem, com exames de nariz e boca, e a audiometria, a partir de um aplicativo no tablet. Examinei quase trinta crianças e agora vou planilhar esses dados para comparar com os de crianças de Curitiba.

No final de dezembro, retornei ao Brasil. Foi um período muito pesado para mim, psicologicamente. Por outro lado, pude revisitar minha história. Quando saí da Síria e vim para o Brasil, senti exatamente o que eles estavam sentindo. Eu também tinha a necessidade de contar o que vivi, de ser ouvido, nem que fosse por cinco minutos. Por isso continuo me sentindo ligado aos refugiados de Eleonas. Fui embora de lá, mas continuo prestando atendimento a eles por videoconferência. Vejo minha história em cada um deles.

A mensagem que eu gostaria de deixar é que o mundo não é uma comunidade fechada. Nós temos que ver e sentir o que está acontecendo ao nosso lado. Todos somos parte do mesmo todo. Precisamos abrir nossos olhos e ouvidos para ver e escutar tudo isso.

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