No meio da partida, o jogador adversário se aproximou e disse: “Você não vai conseguir nada aqui na Espanha.” Logo depois, acertou um soco na costela do companheiro de profissão. Podia ser mais um caso de racismo e xenofobia sofrido por Vinicius Júnior, mas a vítima dessa vez foi outro jogador de futebol brasileiro, o lateral direito Matheus Rios, de 19 anos – que é branco. Corria outubro de 2022 e fazia apenas dois meses que Rios havia deixado Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, para realizar o sonho de ser jogador profissional no Unión Deportiva Portuarios, time de uma cidade próxima de Valencia. Segundo Rios, o árbitro nem deu cartão para o agressor, que só foi punido depois que imagens de uma câmera de segurança mostraram a agressão. “Deram seis jogos de suspensão para ele, mas me deixaram de fora em dois só por discutir com ele”, comenta o brasileiro. Quando viu as agressões seguidas a Vinicius Júnior, Rios não estranhou.
Em um ano e sete meses, Vinicius Júnior já sofreu pelo menos dez insultos racistas. Um boneco com sua camisa foi pendurado em uma ponte de Madri, antes do clássico entre Real e Atlético, em janeiro, pela Copa del Rey. No último domingo, foi chamado de “mono” (macaco, em espanhol) pela torcida do Valencia, indignou-se, cobrou providências, levou um mata-leão de uma adversário, reagiu e foi expulso. Diante da repercussão mundial do caso, que motivou protestos da ONU, do primeiro-ministro da Espanha e do governo brasileiro, o cartão foi cancelado, e o Valencia, multado em 45 mil euros e cinco jogos sem torcida no setor Sul.
Nesta quarta-feira, 24, Matheus Rios viajou mais de 400 km para assistir aos atos antirracistas organizados pelo Real Madrid durante a partida contra o Rayo Vallecano pelo Campeonato Espanhol. Vinicius não jogou, e o Real venceu por 2 a 1. Rios esperava ver o estádio em peso protestando contra o racismo, mas se decepcionou. Uma faixa com os dizeres “Somos todos Vinicius” foi colocada nas arquibancadas. Mas os mais veementes na defesa do atacante eram mesmo os torcedores brasileiros. “Infelizmente esse é o nosso dia a dia. Acho que tá muito longe ainda de acabar”, relatou Rios, desanimado. Horas antes da partida, o rosto do atacante brasileiro foi rasgado de um pôster que cobre as obras de reforma do estádio. Nos arredores do Santiago Bernabéu, alguns torcedores do Rayo entoavam “Vinicius, hijo de puta” (filho da puta, em espanhol). A torcida do time da casa, no entanto, pouco se sensibilizou. Na verdade, como grande parte dos espanhóis, também ainda não entendeu, ou não quer entender, o que vem acontecendo. Na Espanha, xingamentos racistas fazem parte da rotina de estrangeiros.
Na noite do dia 18 de setembro do ano passado, o grito de “mono” (macaco, em espanhol) ecoou num bar da zona nobre de Madrid como se fosse uma palavra qualquer. O Real Madrid tinha aberto o placar do clássico da capital contra o Atlético de Madrid, dessa vez pelo Campeonato Espanhol, com um gol do outro brasileiro Rodrygo – que recebeu a companhia de Vinicius na dança da comemoração, como costumam fazer. O torcedor do Atlético espumou pela boca ao proferir a ofensa racista contra Vinicius – mas ninguém no bar se incomodou ou revoltou. Alguns riram.
Dias antes do jogo, o capitão do Atlético, o espanhol Koke, dissera que Vinicius teria problemas se bailasse ao fazer gols na casa do rival. Antes da bola rolar, mais de centenas de pessoas cantaram livremente “eres un mono, Vinicius eres un mono” (és um macaco, Vinicius és um macaco, em espanhol) no entorno do estádio Metropolitano. Durante a comemoração do tento de Rodrygo, alguns torcedores do Atlético fizeram saudação nazista para os jogadores brasileiros. O torcedor do bar era só mais um no meio de muitos. Na véspera, Pedro Bravo, debatedor do programa esportivo mais famoso da Espanha, El Chiringuito, disse que Vinicius deveria dançar no Sambódromo e “no hacer el mono” (não agir como um macaco, em espanhol) em campo. Ou seja: a culpa era de Vinicius.
Assim como Vinicius, Géssica Marinho da Silva saiu de São Gonçalo, município da região metropolitana do Rio, para viver em Madri. A carioca de 33 anos, negra, é formada em Moda e chegou à capital espanhola em abril do ano passado para estudar e aprimorar a carreira profissional. Conta que foi alvo de racismo muitas vezes, principalmente por causa do cabelo. Diz que sente olhares de desprezo e ouve pedidos para alisar o cabelo – além de ter que responder por que gosta de usar penteados diferentes. Até tocaram nele sem o consentimento da brasileira. “O cabelo do negro sempre foi alvo de padrões estéticos europeus.” Os problemas, dela e de outros amigos negros, não param aí: “Muitos têm dificuldade para alugar um apartamento mesmo tendo toda documentação. Só é possível quando uma pessoa branca amiga intervém. As pessoas não te dão credibilidade. Não querem que a gente se sinta à vontade por aqui.”
Na sala de aula de uma das universidades particulares mais caras de Madri, um aluno se queixa do excesso de trabalho na aula de cinema. Tem que recolher os materiais e equipamentos. Para reclamar com seus amigos, diz que está fazendo um “trabalho de negro”. É como os espanhóis se referem a trabalhos braçais ou que não consideram intelectualmente relevantes. O estudante que falou em “trabalho de negro” não se incomodou que uma das poucas alunas negras da sala estivesse presente e ouvisse sua expressão. A mesma aluna sofre episódios seguidos de racismo: quando tenta expor suas opiniões e ajudar nos exercícios, logo tratam de isolá-la dos grupos. E, como Vinicius Júnior, em vez de vítima, é posta no lugar de culpada: em sala, dizem que é ela que não tem compromisso com os estudos.
O último relatório da organização espanhola SOS Racismo aponta que, em 2021, a Espanha atingiu o pico de casos racistas desde que começou a registrá-los em 2013. Nos últimos quatro anos, os ataques subiram 50% – de 347 casos em 2017 para 523 ataques em 2021. A cada seis vítimas, uma delas sofreu agressão física. Isso sem levar em conta que cerca de 89% das vítimas não denunciam. O medo e a falta de crença na Justiça são alguns dos principais motivos para o silêncio. “É fruto do ambiente ideológico que alimenta a extrema direita espanhola nos últimos anos, que manifesta um ódio intolerável em relação aos estrangeiros, imigrantes ou pessoas de cor diferente”, afirma o sociólogo do esporte David Moscoso, professor da Universidade de Córdoba.
Os insultos sofridos por Vinicius Júnior retratam o racismo que vai de quem senta na arquibancada ao dono da cadeira mais alta do futebol espanhol. Minutos depois da manifestação de Vinicius nas redes sociais sobre os acontecimentos no jogo contra o Valencia, Javier Tebas, presidente de La Liga, entidade que administra o campeonato, reagiu atacando o jogador brasileiro, sugerindo que era um exagero e que todas as medidas já haviam sido tomadas até então. O cartola apenas repetiu a mesma postura que teve nos outros episódios.
Javier Tebas foi membro do partido Fuerza Nueva, que tinha como intenção continuar propagando o fascismo espanhol após o fim da ditadura de Francisco Franco em 1975. Uma série de ataques terroristas e o fracasso nas urnas culminaram no fim do partido sete anos depois. Atualmente, o chefe da La Liga não oculta sua simpatia pelo partido ultradireitista Vox, cuja ideologia se baseia na incitação de ódio a negros, imigrantes e muçulmanos. Na última eleição presidencial brasileira, o presidente do partido, Santiago Abascal, declarou apoio a Jair Bolsonaro.
A ligação de Tebas com o franquismo radical não para por aí. Nas redes sociais, segue o grupo neonazista madrilenho Hogar Social, da líder Melisa Domínguez. Após o atentado terrorista causado pelo Estado Islâmico na Bélgica, em 2016, os membros foram até a mesquita que abriga o Centro Cultural Islâmico de Madri para lançar sinalizadores e latas de fumaça. Também insultaram os fiéis muçulmanos, presencialmente e nas redes sociais. Pediam que os moros, forma pejorativa – e habitual – de chamá-los, fossem mandados embora da Europa. “Deportación masiva” (deportação massiva, em espanhol), escreveu um apoiador no meio do mar de islamofobia. Nesta terça-feira, 23, a Justiça espanhola absolveu os doze neonazistas acusados por crime de ódio e desordem pública, porque “os delitos não tiveram provas concretas”.
No futebol espanhol, casos racistas ocorrem há muito tempo. Em 2004, torcedores arremessaram bananas contra o goleiro camaronês Kameni na cidade de Zaragoza. Dez anos depois, o brasileiro Paulão viu a própria torcida imitar macacos em Sevilha. Mesmo que exista um protocolo específico da Fifa contra os insultos, nunca suspenderam uma partida por motivo de racismo. A única vez que não houve 90 minutos de bola rolando foi em 2019, quando a torcida do clube Rayo Vallecano chamou de nazista um jogador adversário que, de fato, tinha relação com o grupo neonazista ucraniano Azov.
No meio da torcida do Real Madrid também há grupos de extrema direita. Antes dos jogos, a torcida organizada Ultras Sur se reúne na Rua Marceliano Santa María, ao lado do estádio Santiago Bernabéu. Entre uma música de apoio e outra, é comum gritarem “Sieg Heil”, uma saudação que enaltece o nazismo. “Onde estão os antifascistas?”, indagam. Dentro do estádio, pedem respeito a Vinicius Jr. A maior preocupação dos Ultras é não perder um dos principais craques do time, e não combater o racismo.
Para o sociólogo Moscoso, o racismo contra Vinicius é o reflexo dos valores e comportamentos de parte da sociedade espanhola, que muitas vezes considera o atacante brasileiro o vilão da história. A vítima é mais atacada que o agressor. O que se vê hoje é também o efeito da permissividade diante de atos racistas e da consequente impunidade. Ouvir pessoas entoando preconceito e até pedindo a morte do atleta não incomoda tanto quanto a dança ou o drible dele. “Não é um comportamento isolado. Mas o esporte é uma das áreas onde se dá mais liberdade para violências como o racismo.”
Os veículos de comunicação mais poderosos da Espanha reforçaram a narrativa de que Vinicius é provocador. Ou trataram os episódios como isolados. Um jornalista esportivo do programa El Chiringuito, Cristóbal Soria, criou uma campanha com camisetas personalizadas contra a presença de Vinicius no país. “Um clube histórico e centenário como o Real Madrid não merece que um jogador manche sozinho seu escudo e instituição”, publicou nas redes sociais após o jogo contra o Valencia. Na análise de Moscoso, é como se, infelizmente, o futebol espanhol tivesse se convertido num reality show com fartos episódios de racismo. E o jornalismo tem um papel importante nesse contexto, pois os jornalistas acabam funcionando como termômetros – que inflamam os jogos, os torcedores e os árbitros.
No último domingo, 21, o renomado jornal catalão SPORT escreveu que Vinicius Jr. fez um “show vergonhoso”. Enquanto Vinicius atendia a fãs na saída do estádio Mestalla, um jornalista do valenciano Superdeporte perguntou ao jogador se ele iria pedir desculpas por ter provocado os torcedores rivais. A capa da edição de segunda-feira do mesmo jornal disse que a denúncia era falsa e que os torcedores não foram racistas. A imprensa esportiva espanhola prefere discutir se a retirada do cartão vermelho de Vinicius Júnior pela Federação Espanhola (RFEF) abre um um “precedente perigoso”, a possibilidade de reverter punições ocorridas em campo.
Diante da ampla repercussão do caso, o tema dominou o noticiário espanhol, e a postura de muitos jornalistas mudou. La Liga finalmente anunciou que pedirá mais autoridade para punir envolvidos em casos de racismo. O presidente da entidade, Javier Tebas, pediu desculpas a Vinicius. Sete pessoas foram presas pela polícia pelos crimes de ódio contra o atacante brasileiro. Delas, três foram liberadas e respondem em regime aberto. Mas ainda há muitos racistas livres pelos estádios.