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Sonhos de Patrício Guzmán e Jorgen Leth

Quanto tempo levaremos para nos recuperar após tudo isso?

Eduardo Escorel | 30 set 2020_09h04
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Dois grandes eventos da semana passada foram A Cordilheira dos Sonhos (2019), de Patricio Guzmán, exibido na abertura do 25º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, e Eu Caminho (2019), de Jorgen Leth, um dos programas especiais do Festival, ao qual foi possível assistir no domingo (27/09). Isso no âmbito do cinema, naturalmente. Em outras áreas ocorreram fatos mais relevantes. Menciono apenas dois: passamos de 143 mil mortes no país causadas pela Covid-19 e já tivemos mais de 4,7 milhões contaminados com o novo coronavírus, sendo que em seis estados, inclusive o Rio de Janeiro, houve alta da média móvel de mortes nos últimos dias. Além disso, a área queimada na região do Pantanal foi estimada em mais de 23 mil km2, superando dez vezes a superfície de vegetação devastada em dezoito anos, e foi registrado no bioma o maior número de focos de incêndio da série histórica.

O professor Hugo Fernandes, da Universidade Estadual do Ceará, que participa de uma expedição científica na planície pantaneira, declarou ao Campo Grande News que “a flora, de maneira geral, demora menos tempo para se reproduzir, embora não volte a ser como era”. A melhora da fauna, porém, segundo o Campo Grande News,“é lenta porque depende, principalmente, da reprodução dos que sobreviverão aos incêndios”.  Alguns animais, completa Fernandes, “demoram dias para se reproduzir, já outras espécies, anos, e isso faz uma grande diferença… Se temos problemas com a onça, que é um animal ágil, que corre, nada e ainda assim vemos registros de óbitos, o impacto para os animais menores é muito maior. Embora as queimadas na região sejam comuns, esta [atual] é histórica, e todo o bioma será fortemente afetado. Precisamos lembrar que quando temos qualquer alteração profunda, não há como estimar com precisão o impacto nem quanto tempo levará a recuperação que for possível” (entrevista disponível na íntegra em https://www.campograndenews.com.br/meio-ambiente/pantanal-vai-se-recuperar-mas-como-e-em-quanto-tempo).

E nós, humanos, integrantes da minoria de 29% de brasileiras e brasileiros que consideram ruim ou péssimo o governo de você sabe quem, quanto tempo levaremos para nos recuperar após a pandemia permitir o fim do isolamento requerido para evitar o contágio pelo novo coronavírus? Faço a pergunta para mim mesmo, mas ainda assim envergonhado. Afinal, sou um privilegiado. Não obstante, lá já se vão quase sete meses dentro de casa, sem perspectiva à vista de essa situação ser alterada. “A vacina é uma possibilidade, não é uma realidade. Ela pode ocorrer durante o ano de 2021, mas também pode falhar”, declarou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (O Globo, 25/09).

Fatigado, resisto à depressão, mas não ajuda nada saber que 40% da população considera ótimo ou bom o governo do capitão reformado. É penoso constatar que a maioria desconsidera a falta de liderança do presidente, principal responsável pela dimensão trágica alcançada pela pandemia, que continua a se propagar e, até surgir a vacina “é capaz de chegarmos a 180 mil mortes”, diz Mandetta. Mesmo sabendo que o aumento da popularidade do morador provisório do Palácio da Alvorada se deve, em parte, ao auxílio emergencial de mais de 213 bilhões de reais pagos pelo governo a mais 67,2 milhões de brasileiros, resulta desconcertante que o benefício oblitere a percepção da notória inépcia do presidente, para não falar da devastação ambiental na Amazônia e no Pantanal, da ausência de política cultural positiva e da asfixia deliberada da produção cinematográfica, entre outras demonstrações de incompetência e políticas deliberadamente destrutivas.

Em coluna anterior, assinalei o desafio representado pelo lançamento de filmes concebidos na era AP (Antes da Pandemia). Exibido só agora no Brasil, A Cordilheira dos Sonhos se sai bem nesse quesito, embora, na verdade, tenha estreado em 2019, no Festival de Cannes, onde recebeu o L’Oeil d’Or, prêmio atribuído ao Melhor Filme Documentário. No caso de algumas das produções brasileiras que participam da mostra competitiva em curso do É Tudo Verdade, porém, nem sempre conseguem evitar a sensação de estarem defasadas, parecendo ter sofrido envelhecimento precoce.

Patricio Guzmán, diretor de A Cordilheira dos Sonhos / Foto: Reprodução/Facebook

 

O que diferencia A Cordilheira dos Sonhos é integrar a ambiciosa trilogia, formada com Nostalgia da Luz (2010) e O Botão de Pérola (2015), na qual as características peculiares da topografia do Chile, com ênfase no Deserto de Atacama, no extenso litoral dando para o Oceano Pacífico e na Cordilheira dos Andes, são entrelaçadas com a busca de vestígios dos desaparecidos políticos durante os 17 anos de ditadura do general Augusto Pinochet, de 1973 a 1990, na tentativa de recuperar a memória do que ocorreu no país ao qual Guzmán dedicou sua carreira de documentarista, apesar de continuar morando no exterior. A grandiosa metáfora da trilogia procura restabelecer os elos entre as vítimas fatais do regime militar e a configuração geográfica chilena. Trata de uma ferida aberta que não cicatriza e adquiriu, por isso, valor perene independente de circunstâncias conjunturais como a da pandemia.

Jorgen Leth (1937- ), diretor de Eu Caminho, outro ponto alto dos primeiros dias do Festival, continua a ser um praticante devoto do cinema na primeira pessoa, cuja máxima, formulada por Chris Marker (1921-2012) em 1996, é: “Ao contrário do que se costuma dizer, o uso da primeira pessoa em filmes tende a ser um sinal de humildade: tudo que eu tenho a oferecer sou eu mesmo.” Depois de ter sobrevivido ao terremoto no Haiti, onde morava, em 2010, embora traumatizado, o viajante Leth vai ao Laos, passando por Barcelona e Paris, para acompanhar a montagem de uma sóbria instalação artística no meio da selva, perto da margem do Rio Mekong. Em atmosfera onírica, combinando com liberdade passagens realistas, lembranças e pesadelos, Leth faz um retrato tocante de si mesmo e de sua própria decadência física.

Jorgen Leth, diretor de Eu Caminho / Foto: Reprodução/Facebook

 

Na primeira noite da mostra competitiva de filmes brasileiros do É Tudo Verdade, foi exibido Meu Querido Supermercado (2019), de Tali Yankelevich, um exercício de estilo habilidoso, mas de pouco interesse. A inusitada declaração de afeto contida no título é fiel ao documentário em si. Difícil de compreender, porém, é o que terá despertado a atração de Yankelevich pela grande loja de alimentos, levando-a a fazer o registro de sua rotina diária, sem ir além de uma mera constatação factual.

Atravessa a Vida (2020), de João Jardim, exibido na segunda noite do Festival, está em outro patamar. Jardim circunscreve seu principal campo de observação ao espaço do Colégio Estadual Doutor Milton Dortas, no pequeno município de Simão Dias, na região agreste de Sergipe. Na abertura, a câmera acompanha uma aluna a caminho do colégio e, em seguida, o primeiro terço de Atravessa a Vida é dedicado a observar a rotina escolar a meia distância – aulas, jogo de queimada, obras nas dependências, educação física etc. É só após essa longa ambientação introdutória que o documentário passa a se concentrar mais em alunas e alunos individualizados que estão cursando o 3º ano do ensino médio, momento decisivo em que se preparam para fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). De frente para a câmera, uma aluna em lágrimas fala sobre sua problemática constelação familiar. À relevância do tema geral de Atravessa a Vida  – educação – somam-se a partir daí questões dramáticas imprevistas, como a incidência de casos de depressão e suicídio, por exemplo. Percebe-se, então, que há uma erupção em processo no centro de excelência educacional. Mesmo assim, chama a atenção a insistência em mostrar as estudantes chorando, e a brevidade das declarações a respeito de desajustes pessoais e familiares, como se estivesse sendo evitado, de forma deliberada, aprofundar questões levantadas. Resulta estranha, também, a ausência quase absoluta de interação entre Jardim e as estudantes e os estudantes que falam sobre seus problemas. Outra lacuna incompreensível é Atravessa a Vida passar rapidamente pela eleição de 2018 sem fazer maiores comentários a respeito, a não ser o alto número de não comparecimento às urnas – o resultado da eleição, afinal, teve consequências graves para o país.

Faltaria comentar Os Quatro Paralamas (2020), de Roberto Berliner, e Boa Noite, de Clarice Saliby, os dois outros filmes brasileiros em competição a que assisti até domingo (27/09). Para não me alongar ainda mais, porém, deixo para outra coluna minhas impressões sobre esses e os demais filmes brasileiros em competição no Festival a que pretendo assistir.

Para finalizar, então, cabe registrar a decisão de serem reabertas 220 salas de cinema, no Rio de Janeiro, a partir de amanhã, quinta-feira, 1 de outubro. Com isso, segundo O Globo (27/09), 17% do parque exibidor do país estará em funcionamento. Considero a medida temerária, conforme amplamente demonstrada pelas aglomerações causadas pela liberalização de outras atividades comerciais e de lazer. No caso específico do Rio, a cidade contabiliza 10.849 mortes, 102.246 casos, e a média móvel de óbitos cresceu por dez dias seguidos, contados até domingo (27/09). Cabe às autoridades do município e aos donos das salas não proporcionarem novas oportunidades de contágio para irresponsáveis desfrutarem assistindo a filmes, pondo em perigo a si mesmos e aos demais.

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Em 3 de outubro, sábado, às 19 horas, será exibido o primeiro programa da série Cinema Vivo, no canal de Evaldo Mocarzel no YouTube. Com participação do professor João Lanari Bo (autor de Cinema para russos, cinema para soviéticos, Editora Bazar do Tempo, 2019) e mediação de Maria do Rosário Caetano, serão focalizados os filmes, ensaios e experimentos de Lev Kulechov, Vsevolod Pudovkin e Serguei Eisenstein. Na semana seguinte, em 10 de outubro, o pesquisador Luís Felipe Labaki participará do programa dedicado a Dziga Vertov.

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Na próxima terça-feira, 06/10, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam ao vivo, no canal 3 em Cena, com Diógenes Muniz, diretor de Libelu – Abaixo a Ditadura, um dos participantes da mostra competitiva do Festival É Tudo Verdade. O filme resgata a memória do movimento que desafiou a ditadura no final da década de 1970 e revela as dificuldades enfrentadas para ter acesso aos registros históricos preservados na Cinemateca Brasileira. O acesso à conversa da próxima terça-feira, 06/10, será através do link  https://youtu.be/hT-hniY4Gkw

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Sementes: Mulheres Pretas No Poder, de Éthel Oliveira e Júlia Mariano, estreou em 7 de setembro e está disponível online, com acesso gratuito, até hoje, 30 de setembro, no site embaubafilmes.com.br. O documentário foi filmado no Rio de Janeiro, durante o primeiro turno das eleições de 2018, acompanhando seis candidatas: Mônica Francisco, Renata Souza, Talíria Petrone, Rose Cipriano, Tainá de Paula e Jaqueline Gomes. Sementes: Mulheres Pretas No Poder nasce do desejo de contar como a barbárie da morte de Marielle Franco se transformou no maior levante político conduzido por mulheres negras que esse país já viu e nasce, também, com o objetivo de quebrar, de certa forma, essa cultura no audiovisual, e mostrar uma história sobre lideranças negras, contadas por profissionais negras”.

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A 9ª edição de Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba ocorrerá de 7 a 15 de outubro. Cinco longas-metragens e quatro curtas, exibidos no Festival de Berlim, na Mostra de Tiradentes e no Festival de Brasília, entre outros eventos, serão exibidos na Mostra Olhares do Brasil. O Festival acontecerá online, e os filmes ficarão disponíveis diretamente no site do Festival, onde a programação completa pode ser conferida: https://olhardecinema.com.br/. Haverá dez mostras ao todo: Mostra Competitiva, Novos Olhares, Outros Olhares, Olhares Brasil, Pequenos Olhares, Olhar Retrospectivo, Olhares Clássicos, Exibições Especiais, Mostra Foco e Mirada Paranaense. No encerramento será exibido Antena da Raça (2020), de Paloma Rocha e Luís Abramo, documentário que recupera diálogos, excertos, cenas dos filmes e entrevistas de Glauber Rocha. O documentário integra a seleção oficial da Mostra Cannes Classics, a ser apresentada no Festival Lumière, em Lyon, de 10 a 18 de outubro e no Réncontres Cinématographiques de Cannes, entre 23 e 26 de novembro.

 

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