Para celebrar o último Dia dos Namorados, Ronaldo Fraga postou em seu perfil do Instagram imagens de bonecos de madeira gravados com os nomes dele e do apicultor Hoslany Fernandes. Aos 53 anos, o estilista mineiro faz questão de declarar publicamente seu amor ao companheiro, num ato de resistência ao que considera “retrocesso gigantesco” no governo do presidente Jair Bolsonaro, autor de declarações homofóbicas como a de que prefere um filho morto a gay. “No Brasil, as pessoas ainda são violentadas e mortas pelo simples fato de serem LGBT. Então é preciso que os que têm voz se posicionem contra.” No próximo dia 23, às 18h30, o estilista apresenta o desfile “Terra de Gigantes” na abertura da 51ª edição da São Paulo Fashion Week. Por causa da pandemia do novo coronavírus, o evento será todo digital. A coleção, inspirada nos mestres da arte popular do Cariri cearense, será exibida em vídeo por meio das redes sociais do evento. A seguir, Ronaldo conta sua história de amor e o processo de assumir a relação com um homem, após um casamento de 19 anos com uma mulher, mãe de seus dois filhos.
(Em depoimento a Lia Hama)
Sou um homem que desenha a sua vida pelos traços e tintas do amor e da paixão. Nem sempre os pousos dos voos guiados pelo coração são pousos leves, mas é aí que a vida pulsa. Conheci e me apaixonei pelo Hoslany no susto e de forma insuspeita; quando vi, já estava saltando de trapézio com ele. Entre as nossas inúmeras diferenças, temos similaridades que nos uniram. Ambos somos homens que acreditam que a vida é curta, mas pode ser larga.
Quando você se apaixona por uma pessoa, na verdade, se apaixona por quem você se torna estando com ela. O Hoslany me leva por caminhos que eu buscava resgatar na minha vida: o retorno ao simples, à natureza, ao essencial. Ele é apicultor, guardião das abelhas. Além disso, é um puta cabeleireiro, cozinha como ninguém e trouxe para mim aquilo que todo amor deve trazer: a vontade de viver. É para isso que o amor existe.
Estamos juntos há dois anos. Nosso primeiro contato foi pelo Instagram. Reparei que tinha um nome curtindo todas as minhas fotos e fiquei curioso: “Quem é essa tal de Hoslany?” Entrei no perfil e vi que a tal da Hoslany era, na verdade, um rapaz. Na primeira foto, ele aparecia numa cachoeira em Ibitipoca (MG). Mandei uma mensagem: “Cara, passei a adolescência inteira querendo conhecer essas cachoeiras, mas nunca consegui. Você trabalha como guia?” Ele respondeu: “Não, mas conheço tudo lá. Quando quiser, eu te mostro.”
Tempos depois fui dar uma palestra em Juiz de Fora (MG), onde o Hoslany morava. Ele foi assistir e me convidou para jantar, mas eu já tinha um compromisso. Ele perguntou: “E amanhã?” Respondi: “Vou sair muito cedo, às sete da manhã.” Às seis ele apareceu no hotel com um pote de mel de presente, conversamos e só. Até que ele apareceu em Belo Horizonte. Foi quando nos conhecemos de verdade. Hoslany é um homem de muitas histórias. Nasceu numa família de circo, o pai era mágico e atirador de facas. Aos 5 anos, ele se vestia de palhaço e andava na corda-bamba. Depois o pai começou a trabalhar em parques de exposição, montava barracas onde vendia cocada e maçã do amor. O Hoslany se vestia de Monga do trem-fantasma. Foi nesse ambiente mambembe que ele cresceu.
Um dia resolveu ir sozinho a São Paulo e experimentou um cigarro de maconha com crack. O cigarro seguinte só tinha crack e ele logo se tornou dependente. Passou seis meses na Cracolândia, enquanto a família o procurava. Uma vizinha o viu e avisou os familiares, que foram buscá-lo. Ele se internou numa instituição. Ficou um ano ali, onde aprendeu a ser pedreiro, cozinheiro e começou a praticar triatlo. O esporte trouxe uma sensação semelhante à do crack. Foi como conseguiu se livrar da dependência química.
Por que estou contando isso? Porque fiquei fascinado com as histórias dele. Como não amar alguém que nasceu num circo? Como não amar alguém que foi do céu ao inferno e hoje é um guardião das abelhas da Zona da Mata mineira? Hoslany é o punk da periferia, o funkeiro de barracão, o Zumbi da Cracolândia, o exemplo de reabilitação. Por onde ele passa e nas várias vidas que vive, traduz e fala a língua dos invisíveis, dos desvalidos e me ensina sobre um mundo que eu nunca tinha parado para escutar.
Antes do Hoslany, tive um relacionamento de sete meses com outro rapaz. Foi minha primeira vez com um homem, apesar de a vida inteira me perguntarem se eu era gay. Tive dois casamentos com mulheres e faria tudo de novo. Nunca me coloquei em caixotes: sou bi, sou gay, sou hétero. O que posso dizer é que hoje amo uma pessoa, essa pessoa é um rapaz e esse rapaz se chama Hoslany. No momento, só ele me interessa. Entendo que a raça humana é bissexual, mas por convenções religiosas, morais e sociais, o mais aceito é ser heterossexual. A [escritora] Hilda Hilst dizia, citando uma frase da mãe dela, que, se você quiser acabar com um inimigo, deseje-lhe uma paixão. Porque ela vai destruir tudo o que havia antes para começar do zero. Eu recomecei do zero.
Fui casado por 19 anos com a mãe dos meus filhos: Ludovico e Graciliano.
Depois da separação, na primeira vez em que me relacionei com um homem, chamei os dois e contei que tinha conhecido uma pessoa, me apaixonado por ela e acrescentei: “Por acaso, essa pessoa é um rapaz.” O mais novo, Graciliano, com 15 anos na época, respondeu: “Tudo bem, pai, o amor não tem cor nem sexo. Você me ensinou isso.” Já o mais velho, Ludovico, então com 17 anos, falou: “Deu uma mexida nessa água, preciso de um tempo para pensar.” No dia seguinte ele me pediu que o buscasse na escola e desabafou: “Olha, você pode namorar quem você quiser, isso nunca vai mudar o que sinto por você. Mas tenho medo de que as pessoas te maltratem.” Eu brinquei com ele: “Filho, olha a grossura do meu casco: sou um Tiranossauro Rex. Aguento o que tiver que aguentar.”
Em nenhum momento passou pela minha cabeça esconder esse relacionamento. Tenho a consciência do lugar que eu ocupo, de ser um influenciador para as gerações mais novas que admiram o que eu faço, de jovens de todo o Brasil que sonham em trilhar o caminho do Ronaldo Fraga. Eu falo tanto em coragem e liberdade no meu trabalho que não dá para ser incoerente na vida pessoal. Viver dói. Viver não é essa doçura toda. Então não dá para falar que foi fácil, nenhuma escolha é fácil, mas, quando você banca, o sabor é muito maior. A vida pede coragem.
A geração dos meus filhos é mais fluida que a minha, eles têm uma cabeça mais aberta em relação às diferentes formas de exercer a sexualidade. Mas sabemos que eles vivem numa bolha de uma elite da escola particular em que estudam, dos amigos e das famílias esclarecidas que os educaram daquela forma. Nos confins do Brasil, ainda há muito preconceito e intolerância. Existe uma pressão muito grande contra homossexuais, bissexuais e transexuais. No Brasil como um todo, vivemos um momento de retrocesso gigantesco com o governo de Jair Bolsonaro. É aquela coisa da época da ditadura, do “fala, mas fala baixo”. Pessoas sofrem violências, são mortas por causa de sua orientação sexual. Por isso acho fundamental que os que têm o poder de influenciar o façam em voz alta. Isso é um compromisso civil.
Falei para os meus filhos: “Olha, eu nunca, jamais, vou dar palpite sobre as suas namoradas. Vou tratar todo mundo bem. Vou fazer jantar, vou ser um fofo com elas, mesmo se não gostar. Espero o mesmo de vocês. Hoje o meu coração bate pelo Hoslany, mas amanhã, se bater por outra pessoa, vai ser outra pessoa ou o que for.” A essa altura do campeonato, aos 53 anos, o mínimo que eu poderia ter conquistado é a coragem de colocar o meu coração no lugar onde ele bate. É o que eu desejo para todos nós.