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State Funeral – o poder da besta

Documentário sobre enterro de Stálin serve de aviso: monstro do totalitarismo pode acordar perto de casa

Eduardo Escorel | 18 dez 2019_08h54
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Depois de percorrer vários festivais a partir de setembro, de Veneza a Estocolmo, passando por Toronto, Nova York, Gdansk, Minsk, Viena e Marrakech, State Funeral, de Sergei Loznitsa, foi exibido em três sessões, preservando o seu título original, no Festival do Rio, que termina amanhã.

Loznitsa e o editor Danielius Kokanauskis selecionaram 135 minutos das 35 horas filmadas, seguindo a cronologia do ritual fúnebre de Joseph Stálin, ocorrido de 6 a 9 de março de 1953. Em preto e branco e a cores, com parte em som direto, o material estava em perfeito estado de conservação, guardado no Arquivo Estatal Russo de Cinema Documentário e Fotografia, em Krasnogorsk, município adjacente a Moscou. Filmado originalmente para o O Grande Adeus, produção banida quando autoridades soviéticas a assistiram, o acesso ao conjunto do acervo visual e sonoro filmado foi liberado a partir de 1991, no período da perestroika.

O enterro de estado é um espetáculo monumental, planejado em minúcias, com cenografia própria, coreografado do início ao fim. Alternam-se diante das múltiplas câmeras situações estritamente controladas e outras que aparentam preservar certo grau de espontaneidade, havendo também momentos que sugerem ter sido encenados.

Loznitsa diz “acreditar que o filme dá ao espectador, e a um espectador russo em particular, uma oportunidade única para ter a vivência do funeral como uma ‘testemunha’”. Na verdade, porém, o que se pode testemunhar assistindo a State Funeral é, naturalmente, a representação do evento resultante da montagem do que foi filmado e não o próprio enterro de Stalin, entre as quais há enorme diferença.

Em filmes anteriores feitos com imagens de arquivo ou baseados na observação à distância de eventos, Loznitsa revela ter fé ilimitada no poder contido nas imagens que as permitiriam falar por si mesmas, de acordo com a previsão, hoje obsoleta, do fotógrafo e cinegrafista polonês Boleslaw Matuszewski (1856-1943). Conforme mencionei na coluna do ano passado em que comentei o documentário anterior de Loznitsa – Processo (2018), Matuszewski proclamou, em 1898, que a “fotografia animada” daria a “visão direta” do passado. E ainda que “o cinematógrafo talvez não dê a história integral, mas ao menos o que ele oferece é incontestável, é de uma verdade absoluta. […] Podemos dizer que a fotografia animada tem uma característica de autenticidade, de exatidão, de precisão que é própria dela mesma. Ela é por excelência a testemunha ocular verídica e infalível” (Une Nouvelle Source de l’HistoireCréation d’un Dépot de Cinématographie Historique, folheto de doze páginas sem publicação brasileira).

Desconheço se Loznitsa leu ou não Matuszewski. Em qualquer caso, porém, como deixar de considerá-lo um cineasta ingênuo quando afirma que tenta “voltar ao passado por que podemos ser imparciais e olhar para o que realmente aconteceu”?

Em State Funeral Loznitsa tenta, ao menos, redimir-se, embora de maneira sutil e incompleta – o filme termina com uma informação que ajuda para situar o que acabou de ser visto. A legenda de encerramento informa, de modo resumido, o número estimado de vítimas fatais da era Stálin – cerca de 3,3 milhões, entre execuções, expropriações forçadas de camponeses prósperos, mortes no Gulag e deportados, além de 5,5 a 6,5 milhões na fome de 1931-33.

Ao tomar conhecimento ou ser lembrado desses dados, a idolatria e promessas de devoção eterna a que se assistiu nas mais de duas horas anteriores adquirem sua verdadeira e aterradora dimensão.

Mesmo assim, State Funeral fica aquém da contextualização requerida para poder ser avaliado de modo adequado, definindo-se tanto pelo que mostra quanto pelo que deixa de mostrar.

Quando o féretro de Stálin finalmente chega ao Mausoléu de Lênin, na Praça Vermelha, o filme identifica com legendas os líderes que discursam, conforme Melita Zajc assinalou na Modern Times Review (15/11). Entre eles, Geórgiy Malenkov, substituto de Stálin como líder da União Soviética; Lavrenti Beria, chefe da segurança e da polícia secreta soviéticas, executor do Grande Expurgo na década de 1930; e Viatcheslav Molotov, ministro das Relações Exteriores e responsável pela apreensão das colheitas na Ucrânia que levaram ao holodomor, a morte por inanição de milhões de pessoas entre 1931 e 1933. O mestre de cerimônias que apresenta os oradores, porém, não é nomeado – trata-se de Nikita Khrushchev. Ele se tornaria secretário-geral do Partido Comunista, sucedendo Stálin, e denunciaria o culto à personalidade e suas consequências em sessão fechada do 20º Congresso do Partido Comunista, realizada em 25 de fevereiro de 1956, três anos depois da glorificação do líder morto promovida na Praça Vermelha. Khrushchev atribuiu a Stálin a responsabilidade pela prática sistemática de tortura, execução de opositores, intolerância, brutalidade e abuso de poder.

A omissão desses fatos históricos impede o espectador menos informado de avaliar corretamente o contraste entre a grandiosa manifestação e a face oposta que começaria a se mostrar.

Outra sequência diante da qual o espectador terá dificuldade de se situar é a de encerramento, embalada pela canção Lullaby, de Matvey Blanter, muito conhecida na Rússia, segundo o crítico Anton Dolin, no site Meduza, mas “pouco ouvida em sua versão original, que apresenta os seguintes versos: ‘Ele lhe dará força, o braço de Stálin lhe mostrará o caminho…’ Para Dolin, “é impossível não evocar a assustadora obra-prima de Dziga Vertov, Lullaby, que foi filmada no fatídico ano de 1937 [o auge dos Grandes Expurgos ordenados por Stálin ocorreu entre setembro de 1936 e agosto de 1938]. Lá, inúmeros berços são embalados, é claro, pela mão do camarada Stálin, ‘o melhor amigo da juventude’ (inscrição de uma das coroas do funeral no filme). Os censores consideraram a imagem do único ‘pai da nação’ abraçando a mãe que está amamentando como muito sentimental, e o filme de Vertov foi, de fato, banido da tela”.

Segundo Melita Zajc, no comentário citado acima, “o mecanismo invisível de controle das pessoas também é o tema de State Funeral. Mais do que o culto à personalidade, eu acredito que o funeral está mostrando o maquinário: o poder da besta. […] quando as pessoas escolhidas para representar homens e mulheres comuns da União Soviética em um momento histórico passam diante das pilhas magníficas de coroas de flores em exibição após o funeral, acompanhadas por uma canção de ninar cantada para uma criança que acordará de manhã, os contos de fadas sobre reis adormecidos vêm à mente. Só que, desta vez, a esperança de que o rei adormecido acorde é substituída pelo medo de que a besta possa acordar. Esta é uma mensagem política clara. Como os regimes totalitários estão florescendo em todo o mundo hoje, o aviso de que o monstro pode despertar perto de casa chega no momento certo”.

A coluna volta em 8 de janeiro.

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