Mais de 300 mil pessoas já haviam morrido após infecção por Covid-19, e só 13% dos brasileiros estavam vacinados, quando o Supremo Tribunal Federal obrigou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), a abrir a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia. Era 8 de maio de 2021, o requerimento de CPI já tinha as assinaturas necessárias havia dois meses, e o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, atendeu aos senadores da oposição, que reclamavam da inércia de Pacheco, e determinou abertura da comissão — uma decisão condicionada à aprovação do plenário, que foi dada logo em seguida. A CPI cumpriu um papel fundamental no país, acelerando as medidas sanitárias que o governo Jair Bolsonaro, marcado por um negacionismo radical, insistia em não cumprir.
Três anos depois, é o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas), quem resiste em autorizar a abertura de uma nova CPI sobre outro tema de saúde de interesse amplo. Um grupo de 310 deputados demanda a instauração de um inquérito parlamentar sobre os planos de saúde, que tem 51 milhões de usuários no Brasil, diante da série de cancelamentos unilaterais de contratos promovidos pelas empresas, que tem deixado usuários sem cobertura do dia para a noite, muitas vezes enquanto se tratam de alguma doença.
A adesão da Câmara à comissão foi grande. O requerimento, protocolado no dia 5 de junho, reuniu cerca de três quintos da Câmara, que tem 513 cadeiras. O número de 310 deputados excede em 136 o necessário para abrir uma CPI (e em dois o suficiente para aprovar uma emenda à Constituição). Comparativamente, o pedido de abertura da CPI da pandemia havia tido menos adesão: foi assinada por menos da metade dos senadores (34 de um total de 81).
Apesar disso tudo, o requerimento subiu no telhado, por decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira, que não instalou a CPI. Ele também tem evitado colocar em votação o projeto de lei que discute as necessárias mudanças nas regras do setor.
Como amplamente noticiado, Lira reuniu-se com operadoras de plano de saúde no dia 28 de maio e saiu anunciando um acordo para interromper a prática de cancelamentos unilaterais. Foi uma reunião sem registro e sem pronunciamento conjunto no final, de uma forma que não podem ser aproveitadas por clientes dos planos que se sentem lesados. “Foi noticiado um compromisso verbal, não formalizado. A gente não sabe nem as condições desse acordo”, critica o advogado Rafael Robba, do escritório Vilhena Silva Advogados. “Para ter valor jurídico e obrigar as operadoras a cumprirem, precisaria ter algo formalizado, dizendo quais são as condições desse acordo, mas isso não existiu.”
É o que diz também Lucas Andrietta, Coordenador do Programa de Saúde do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). “A suspensão de cancelamentos não foi formalizada em nenhum momento, ficou apenas como uma promessa vaga veiculada através da imprensa. Não há como cobrar, verificar ou garantir o seu cumprimento sem os instrumentos adequados.”
Na prática, seguem frequentes os relatos de interrupções unilaterais de planos de saúde e de manutenção dos cancelamentos anteriores, o que contraria o tal acordo entre o presidente da Câmara e o mercado. Só o escritório do advogado Rafael Robba já recebeu 28 casos (21 em junho e 7 em julho) de usuários que tiveram planos de saúde coletivos cancelados e desejam restabelecer o serviço.
É nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal volta a ser acionado para determinar a abertura de uma CPI. A Associação Nenhum Direito a Menos (Anedim) entrou com o Mandado de Segurança nº 39.829, no Supremo Tribunal Federal, apelando às mesmas razões que o STF considerou na ação que pedia a abertura da CPI da Covid-19: se existem as assinaturas necessárias, não cabe ao presidente da casa legislativa impedir a abertura da CPI.
Diz o acórdão do STF: “De acordo com consistente linha de precedentes do STF, a instauração do inquérito parlamentar depende, unicamente, do preenchimento dos três requisitos previstos no art. 58, § 3º, da Constituição: (i) o requerimento de um terço dos membros das casas legislativas; (ii) a indicação de fato determinado a ser apurado; e (iii) a definição de prazo certo para sua duração. Atendidas as exigências constitucionais, impõe-se a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito, cuja instalação não pode ser obstada pela vontade da maioria parlamentar ou dos órgãos diretivos das casas legislativas”.
Na ação, a Anedim foca nesse precedente e afirma que “a instalação de CPI é direito subjetivo da minoria, que não pode ser obstado por vontade da maioria ou por simples omissão do Presidente da Mesa Diretora, pois não se permite a este qualquer valoração”. Para uma decisão assim ser concedida, a ação precisa demonstrar o chamado “perigo da demora”. No caso, a associação sustenta que as “investigações sobre supostos atos abusivos ou criminosos não podem aguardar, pois as provas dos fatos podem se perder tornando a investigação totalmente inócua”. Também alega que a CPI é fundamental para a fiscalização do poder Executivo e a promoção da transparência.
O pedido de abertura da CPI foi encabeçado pelo deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ). A fundamentação cita que os planos de saúde lideram o ranking de queixas e reclamações de consumidores no país em 2023 segundo o Idec e que em maio de 2023 houve reajuste em até 35% dos valores de planos.
O requerimento de CPI menciona cancelamentos unilaterais e sem justificativa de planos de saúde por operadoras, exclusão de reembolsos do contrato, a ampliação dos percentuais de coparticipação, e até a redução da rede de prestadores. Relata notícias de que os cancelamentos estão ocorrendo aos milhares nos planos de saúde Unimed e Amil. Cita ainda a avaliação do IDEC de que “há distorções e falta de transparência na metodologia utilizada pela ANS e é necessário ajuste e revisão da fórmula utilizada”.
A ação no STF passou por sorteio para definir relatoria e caiu com o ministro Flávio Dino, ex-ministro da Justiça do governo Lula, nomeado no fim do ano passado para a Corte. Dino tem diante de si, portanto, mais uma ação que contraria o interesse do presidente da Câmara, além daquelas que discutem as emendas parlamentares.
A Anedim vem tendo uma atuação forte no Rio de Janeiro, e é presidida por Fabiane Alexandre Simão, de 45 anos, mãe de Daniel, de 9 anos, que tem paralisia cerebral e transtorno do espectro autista.
“Os planos de saúde estão prejudicando de forma criminosa a população brasileira e isso não é apenas sobre cancelamento unilateral, é meio para algo muito maior, que é aprovar planos segmentados que oferecem coberturas mínimas. Na prática, estabelecer o próprio rol taxativo, sobrecarregando o SUS, uma vez que ele não vai dar conta da demanda”, disse Fabiane.
A presidente da Anedim justifica a ação no STF porque “nem o Ministério Público nem algum partido político tomou a iniciativa de cobrar o trabalho do Lira”. E ainda questiona: “Qual o verdadeiro motivo do deputado Lira preferir fazer uma reunião sigilosa com as operadoras dos planos de saúde e a ANS? Qual o motivo de um acordo verbal? Qual o motivo para não instaurar a CPI, investigar a conduta dos planos e os supostos prejuízos?”.
Procurado pela piauí, Aureo Ribeiro disse que espera a abertura da CPI. “Depois do acordo, não retornaram quem foi cancelado. Continua havendo cancelamento. Continua não tendo prestado o serviço que é contratado pelas pessoas. O problema continua. Nada mudou, entendeu?”, disse. Sobre a ação no STF, comentou: “A gente não discute decisão judicial, né? Aí já é outra esfera, é outra casa, mas a gente acredita que a matéria é meritória. Torço para prosperar”.
Na reunião que resultou no tal acordo com o mercado, Lira recebeu na residência oficial da Câmara dos Deputados o diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Paulo Rebello Filho, executivos do setor, como Renato Manso, CEO da Amil, e Jorge Oliveira, da Unimed Nacional. Também participaram do acordo Gustavo Ribeiro, presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), e Vera Valente, presidente da Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde). Após a conversa, Lira fez o seguinte anúncio nas redes: “Uma boa notícia para os beneficiários dos plano de Saúde: em reunião realizada agora há pouco com representantes do setor, acordamos que eles suspenderão os cancelamentos recentes relacionados a algumas doenças e transtornos”, escreveu o presidente da Câmara.
Três dias depois, foi feito o cancelamento do plano de saúde de Marília Araújo, moradora do Recife, junto à operadora Amil, administrado pela Qualicorp. Aposentada, 75 anos, Marília passava por um tratamento oncológico e estava em dia com suas obrigações contratuais. O filho dela, Bruno Araújo, foi quem descobriu o rompimento, quando foi pagar o boleto da mãe, de 3,5 mil reais por mês. “Eu fui nos e-mails da minha mãe e vi lá que chegou e-mail falando em cancelamento unilateral, porque tinha saído alguma normativa. É [um plano da] Amil, mas Qualicorp que gerencia”, disse Bruno Araújo.
Bruno entrou em contato com a Amil e teve a confirmação de que o cancelamento foi feito na data de 31 de maio, três dias depois de ter sido anunciada a tratativa entre Arthur Lira e os planos de saúde. “Dizia que a Qualicorp achou por bem rescindir unilateralmente de acordo com uma resolução”, afirmou. Ele então buscou recorrer à Justiça com o suporte da Associação de Defesa dos Usuários de Seguros, Planos e Sistemas de Saúde de Pernambuco (Aduseps). No dia 29 de julho, conseguiu uma liminar em Pernambuco para restabelecer o plano de saúde.
A coordenadora executiva da Aduseps, Renê Patriota, militante de longa data em prol dos usuários de planos de saúde, criticou também o “acordo informal do presidente da Câmara”, afirmando que “não vale de nada porque as empresas continuam cancelando os contratos”. “É uma enganação, conversa para boi dormir e roncar”, afirmou. “Ele deveria tomar uma atitude legal, como presidente da Câmara, para mostrar a boa-vontade do Congresso. E não essa postura de politicagem. Estamos em ano político e infelizmente muitos políticos se valem de condutas enganosas, como ‘esse tipo de acordo’, para tirar proveito”.
O acordo tampouco foi suficiente para reabilitar o plano de saúde de uma professora aposentada da cidade de São Paulo de 87 anos, que pediu para não ter seu nome revelado. Ela se deu conta de que teve o plano de saúde (modalidade coletivo por adesão) cancelado quando quis marcar exames para fazer uma cirurgia de catarata. O plano dela é ligado à Central Nacional Unimed. Ela conta que tinha o plano de saúde havia mais de 20 anos e que pagava 4.175,00 reais por mês. O valor, maior que três salários mínimos, só dava para “enfermaria e alguns exames”. “Agora, preciso entrar com um recurso [na Justiça] para poder reativar meu plano”, diz a professora aposentada.