A reportagem Ataque brutal, publicada há um ano pela piauí, contou como o ex-senador e ex-ministro Eunício Lopes de Oliveira (MDB), hoje deputado federal pelo Ceará, usou toda a sua influência e poder político para enfrentar uma família que se recusou a lhe vender duas fazendas, no interior de Goiás. A história começou em 2009, quando Eunício afirmou à polícia que parte do rebanho de sua fazenda Santa Mônica foi furtada. Dali em diante, os policiais passaram a investigar cinco suspeitos, entre eles Tito Leite, dono das duas fazendas que Eunício vinha tentando, sem sucesso, adquirir para expandir suas terras.
O deputado acionou seus contatos e, num estalar de dedos, o governo de Goiás designou uma equipe especial de policiais para atuar no caso. O furto do gado – segundo Eunício, eram ao menos 9 mil reses – nunca foi comprovado. Ainda assim, o então juiz Levine Gabaglia Artiaga, que já foi sócio do advogado que representava Eunício, decidiu pela condenação dos réus. Mais do que isso: num processo paralelo, o mesmo juiz condenou os réus por danos morais e penhorou as fazendas de Tito Leite – que, com isso, foram parar nas mãos do deputado cearense.
Como Tito Leite foi absolvido em 2016 na ação penal (ele morreu em 2019, aos 83 anos), a defesa dos réus entrou com recurso no Tribunal de Justiça de Goiás em 2020 pedindo que a condenação por danos morais fosse suspensa. O argumento era: se Tito fora absolvido na esfera criminal, não caberia ao seu espólio indenizar o deputado. O tribunal concordou. Não apenas suspendeu o pagamento da indenização, como ordenou que as duas fazendas fossem devolvidas aos réus.
Agora, em agosto, a história ganhou um novo capítulo: o Superior Tribunal de Justiça (STJ), atendendo a um recurso de Eunício, derrubou a liminar do tribunal de Goiás. Com isso, o deputado volta a ser proprietário das terras que tanto queria.
Mais uma vez, a decisão passa por compadrio, pelo conflito de interesses e pela suspeição judicial.
O julgamento se deu na quarta turma do Superior Tribunal de Justiça. Dos cinco ministros da turma, um é velho conhecido de Eunício Oliveira: o também cearense Raul Araújo. Nos idos de 2009, enquanto a polícia goiana prendia os acusados de furtar gado na fazenda Santa Mônica, Eunício engrossava o lobby pela nomeação de Araújo para o STJ. O magistrado, na época, era desembargador no Ceará e almejava subir na carreira. Contava, para isso, com o apoio de figurões, como o então ministro do STJ Cesar Asfor Rocha, também cearense. A atuação de Eunício em favor do juiz foi confirmada tanto por um ministro de Lula daquela época quanto por um ex-funcionário do Supremo Tribunal Federal que acompanhou o caso de perto.
Em entrevista ao Estadão, em 2009, a então ministra do STJ Eliana Calmon criticou a pouca experiência de Raul Araújo na magistratura – advogado de origem, o cearense tinha assumido o cargo de desembargador havia apenas dois anos, por meio do chamado “quinto constitucional”, que reserva vagas nos tribunais para advogados e integrantes do Ministério Público. “Algum dia esse ministro pode ser útil no caso de se precisar de alguma coisa. Mesmo que não seja venda de sentença, é a simpatia, é o acesso fácil, é a forma de circular”, vaticinou Calmon, sugerindo que Araújo poderia beneficiar amigos caso fosse nomeado para o STJ.
Araújo, apesar das críticas que recebia, foi nomeado para o STJ. A decisão foi tomada pelo presidente Lula no começo de 2010. Nos anos seguintes, o ministro foi visto mais de uma vez participando de convescotes em Fortaleza ao lado de Eunício: na apresentação do tenor espanhol Plácido Domingo, em 2012; no aniversário do Iate Clube de Fortaleza, em 2014; na cerimônia de posse dos novos desembargadores do Tribunal Eleitoral do Ceará (TRE-CE), em 2015.
Eis que, nesta semana, foi justamente Raul Araújo quem desempatou o julgamento do recurso de Eunício no STJ. Na turma de cinco ministros, dois haviam votado a favor do deputado, dois contra. Araújo teve o voto de minerva. Numa manifestação sucinta, de seis páginas, o ministro reconheceu que, de acordo com a jurisprudência vigente, o STJ não deveria atender recursos relacionados a tribunais inferiores quando ainda cabem recursos nesses próprios tribunais – como era o caso. Mas, segundo ele, havia motivo, dessa vez, para uma exceção. Isso porque, na sua leitura, o TJ de Goiás exagerou na dose ao não apenas suspender o pagamento da indenização por danos morais, mas também determinar a devolução das fazendas, medida que não havia sido pedida pelos réus. “A decisão do Tribunal […] que deferiu o pleito cautelar causa grave prejuízo ao ora agravante [Eunício], por ser mais abrangente que o próprio pedido inicial formulado pelo autor, ora agravado”, escreveu Raul Araújo.
“A situação nossa é muito delicada, pra não dizer grave. Estamos sem chão”, disse à piauí Marta Araújo Leite, advogada e filha de Tito Leite, o dono das fazendas que morreu em 2019. A família pode recorrer da decisão tomada pelo STJ. Segundo Marta, Eunício ainda não tomou posse formalmente das duas fazendas.
A piauí perguntou à assessoria de Raul Araújo se, devido à sua proximidade comprovada com Eunício, ele não deveria ter se declarado suspeito para julgar o caso. Em resposta, Araújo disse apenas que caberia à “parte interessada” – isto é, à família Leite – alegar a suspeição antes de o caso ser julgado. “Após o julgamento, a legislação processual civil entende que esse pedido não tem credibilidade e é descabido”, afirmou. O Código de Processo Civil, no entanto, prevê a possibilidade de o juiz declarar-se suspeito para julgar um caso sem ser provocado pelas partes.
Por meio de sua assessoria, o deputado Eunício Oliveira disse apenas que “as ilações da piauí não merecem comentário”.