Quando veio a público a notícia de que a Polícia Federal cumpria mandados de busca e apreensão na residência oficial do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, muita gente se perguntou se não estávamos diante do lançamento oficial da nova polícia política de Bolsonaro. Não sem motivo: na célebre reunião de 22 de abril, que selou a interferência de Bolsonaro sobre a PF, Witzel havia sido contemplado com um palavrão exclusivo para si (“estrume”). Há tempos Bolsonaro já o acusava publicamente de usar a Polícia Civil fluminense para atingi-lo. Daí a desconfiança de que a Operação Placebo, que levou ao cumprimento de mandados no Palácio das Laranjeiras, na casa da família Witzel e no escritório de advocacia de sua mulher, Helena, teria sido o revide de Bolsonaro ao governador, agora com o uso da “sua” Polícia Federal.
A dúvida sobre o uso político de forças policiais é saudável e deve ser responsavelmente alimentada até seu cabal esclarecimento. Neste caso, porém, é um equívoco ignorar a instituição que supervisiona investigações e conduz ações criminais não apenas contra governadores, como Witzel, mas também contra desembargadores e conselheiros de tribunais de contas estaduais, desembargadores federais e outras tantas autoridades: o Superior Tribunal de Justiça (ou STJ, na sopa de letrinhas das instituições do sistema de justiça brasileiro).
Criado pela Constituição de 1988, o STJ nasceu para desincumbir o STF de uma parte grande de sua competência anterior, que abrangia não apenas questões constitucionais, mas também as relacionadas a leis federais – esta última ficou para o STJ. Não é pouca coisa: a disciplina jurídica mais básica da nossa vida cotidiana, assim como das empresas e do Estado, é dada pela legislação federal, à qual a Constituição, generosa com as competências legislativas da União, reservou matérias de enorme importância. Nela se incluem questões civis, empresariais, consumeristas, penais, eleitorais, trabalhistas, de finanças públicas, atuariais, previdenciárias, monetárias e muitas outras. Após decididas por juízes estaduais ou federais (em primeiro grau) e tribunais estaduais ou regionais federais (em recursos), as causas a elas relativas podem subir ao STJ caso a questão debatida trate de matéria disciplinada em lei federal.
A essa competência, digamos, ordinária, a Constituição acrescenta competências extraordinárias, como a relativa a governadores nas questões criminais. Por isso, a investigação contra Witzel foi parar no STJ. Ao menos este capítulo do conflito que opõe Bolsonaro a governadores será resolvido por lá.
O conjunto de suas competências faz do STJ um dos maiores tribunais do Brasil: segundo o anuário Justiça em Números (CNJ), o tribunal recebeu, em 2018, quase 350 mil novos processos (quase quatro vezes mais os poucos mais de 100 mil recebidos pelo STF no mesmo ano). A despeito de sua importância, porém, o STJ é, para muitos, “esse outro desconhecido” – parafraseando o qualificativo que em 1968 o ministro Aliomar Baleeiro dirigiu ao STF. É um tribunal sobre o qual sabemos menos do que deveríamos, e que acompanhamos menos do que a prudência republicana recomenda. O tribunal, de sua parte, parece gostar de andar anônimo na multidão: apenas na gestão do atual presidente, ministro João Otávio de Noronha, criou-se um comitê de imprensa, onde jornalistas que cobrem o tribunal dispõem de local de trabalho adequado para reportar o que lá acontece.
É possível traçar hipóteses e caminhos para uma leitura desse tribunal. Primeiro, é preciso olhar a composição da Corte – não apenas os nomes que lá estão, mas o caminho pelo qual se chega ao STJ. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 104, exige que indicados ao tribunal tenham entre 35 e 65 anos de idade e ostentem notável saber jurídico e reputação ilibada. Os indicados pela Presidência da República devem ser aprovados pela maioria absoluta do Senado Federal, após a sabatina.
Tudo se parece com o regramento das indicações ao STF, mas com um acréscimo importante: a Constituição impõe alternância entre algumas profissões jurídicas na composição do STJ, que deve ser preenchido por ⅓ de egressos da magistratura federal, ⅓ da magistratura estadual e ⅓ de membros da advocacia e do Ministério Público, alternadamente. Por se tratar de uma composição classista, o desempenho político dos indicados dentro dos espaços de poder de suas profissões de origem tende a ser determinante para se chegar à Corte. Vale destacar que o tribunal busca ⅚ de seus membros dentro de carreiras públicas tradicionais do Direito, a magistratura e o Ministério Público: é mais fácil que nele encontremos conservadores que revolucionários. Isso não é necessariamente ruim para um tribunal, que não deve viver de jacobinismo judiciário, mas sim de consistência, integridade e boa fundamentação na aplicação das leis.
Esse particular tempero classista é acrescentado ao caldo de base das indicações políticas para tribunais superiores, no qual outros marcadores costumam aparecer com clareza. Alguns deles são, digamos, naturais, como formação acadêmica ou trajetória profissional: egressos de faculdades de direito de prestígio, com acúmulo de títulos científicos e percursos profissionais de destaque, tendem a despontar entre seus pares e atendem, sem maiores esforços de justificação, ao requisito constitucional do “notável saber jurídico”. Outros marcadores não são tão óbvios, como a trajetória geográfica dos candidatos a ministros: no caso do STF, ter residido em Brasília nos anos imediatamente anteriores à indicação aumenta sensivelmente as chances de escolha para uma vaga no tribunal – sinal de que a convivência próxima com o poder é um fator não desprezível na equação. Além, claro, da ambição para se chegar até lá: um cargo de ministro do STJ não cai no colo de ninguém.
Governadores são julgados pelo Órgão Especial do tribunal, composto pelos quinze ministros mais antigos da Corte. O relator do caso que envolve Witzel é o ministro Benedito Gonçalves, indicado ao tribunal no segundo mandato de Lula, em 2008. Como Gonçalves integra a Primeira Seção do tribunal, responsável pelos temas de Direito Público, a medida de sua régua para o caso deveria ser estimada a partir de sua atuação em outros casos penais envolvendo governadores. O problema é que os mandatos dos governadores costumam terminar antes das ações, levando os casos a descerem às instâncias iniciais para a decisão sobre culpa ou inocência dos acusados. Foi o caso do ex-governador de Minas Gerais Fernando Pimentel: acusado perante o STJ, que recebeu a denúncia com voto de Gonçalves, Pimentel acabou condenado pela Justiça Eleitoral de primeiro grau.
Gonçalves foi duro na decisão que autorizou a operação nos endereços de Witzel e do governo: além de ter enxergado indícios do envolvimento de Witzel na compra irregular de aparelhos para a emergência da Covid-19, sua decisão deu aos agentes amplos poderes para apreensão de computadores e documentos. Merece destaque a inclusão do escritório de advocacia da esposa de Witzel entre os alvos da ordem judicial. É mau presságio para o governador, pois sugere não apenas a leitura de que há indícios da prática de crimes, mas que eles alcançam os laços familiares de Witzel, indo além de relações exclusivamente políticas e profissionais.
Dos ministros que compõem o Órgão Especial e julgarão eventual ação contra Witzel, apenas três têm assento na Terceira Sessão, que se ocupa da matéria penal: Felix Fischer, Laurita Vaz e Jorge Mussi. Fischer é o relator da Lava Jato no tribunal; Laurita Vaz e Jorge Mussi (o ministro do Zoom com o simpático fundo de tubarão) acompanham-no na dureza com que julgam réus. A vice-presidente do tribunal, Maria Thereza de Assis Moura, também integra o Órgão Especial e tem importante histórico em matéria penal: firme e profundamente técnica, é respeitadíssima por seu domínio do Direito Processual Penal. Perfil semelhante, firme e técnico, tem Herman Benjamin, embora sua área de atuação principal seja o Direito do Consumidor. Ocupante de uma das vagas do STJ destinadas a egressos do Ministério Público, o grande público conheceu Benjamin em 2017, quando ele relatou, com voto pela condenação, o processo de cassação da chapa Dilma-Temer no TSE. Não é um escrete para deixar otimistas quaisquer investigados.
Conjecturas políticas tampouco devem ser descartadas, especialmente porque tribunais superiores, e o STJ em particular, têm sido, ao lado da AGU, uma importante antessala para o STF: Rosa Weber veio do Tribunal Superior do Trabalho, e Luiz Fux e Teori Zavascki do mesmo STJ. Logo, por um prisma estratégico, é possível hipotetizar que um magistrado que almeje algo mais para si – “soldado que não quer chegar a general tem que ir embora”, como certa vez disse o mesmo ministro Fux – venha a pesar a mão em desfavor de Witzel, o que agradaria a Bolsonaro.
Na atual composição do Órgão Especial, o presidente do STJ, o ministro João Otávio de Noronha, deu motivo para que suspeitas dessa ordem fossem elevadas à categoria das hipóteses que merecem consideração: embora a lei proíba magistrados de anteciparem opiniões sobre casos em andamento, destacadamente aqueles que possam vir a julgar, Noronha deu declaração pública de que Bolsonaro não poderia ser forçado a revelar os resultados de seus exames para Covid-19. Havia, na época em que foi feita a declaração, ordem judicial determinando ao presidente que o fizesse. Em questão de horas, pedido nesse exato sentido formulado pelos advogados de Bolsonaro chegou à mesa de Noronha, o que era de se esperar: como presidente do tribunal, é regimental a sua competência para decidir “os pedidos de suspensão da execução de medida liminar” (art. 21, XIII, b). Lembrou-me o velho brocardo futebolístico: quem pede recebe, e quem se desloca tem a preferência.
Finalmente, mas não em último lugar, há as provas colhidas nas diligências e a qualidade das eventuais acusações. Tampouco aqui o cenário parece bom para Witzel, embora muitos novos elementos de prova ainda serão trazidos à investigação, inclusive aqueles obtidos na operação de ontem.
Primeiro, porque o cargo de governador do Rio de Janeiro tornou-se ofício de elevado risco penal: Witzel já é o sexto governador fluminense investigado nos últimos anos, e os outros cinco – Anthony e Rosinha Garotinho, Pezão, Moreira Franco e Cabral – chegaram a ser presos (Cabral segue preso). O padrão sugere que a relação entre organizações criminosas e o maquinário governamental do estado é estrutural, e que algum modo de interação com elas tornou-se tristemente rotineiro na administração fluminense. Não chega a ser surpreendente o envolvimento do atual ocupante do cargo, portanto.
Segundo, porque a operação que atingiu Witzel é originária de investigações da Polícia Civil e do Ministério Público fluminenses, bem como do Ministério Público Federal atuante naquele estado. Ela ascendeu ao STJ, que ordenou à PF o cumprimento de mandados, justamente por indícios que implicam Witzel pessoalmente. Não fosse por isso, ela teria seguido seu curso em âmbito estadual, como ocorria quando ela atingiu, em suas etapas anteriores, secretários e ex-secretários de saúde, inclusive com prisão cautelar.
Assim, se a preocupação com a politização da Polícia Federal recomenda saudável desconfiança quanto a tudo que atinja adversários políticos de Bolsonaro doravante, é preciso também exercer ceticismo cuidadoso antes de cravar palpite na coluna da perseguição.
O STJ, de sua parte, deve cuidar para que não seja arrastado para a conflagração política que vem partindo as instituições ao meio, uma a uma. É tudo que Bolsonaro quer: mais uma instituição de peso do sistema de justiça rachada pela força dilacerante de sua presidência anti-institucional. No episódio da manifestação pública, e precipitada, de opinião favorável a Bolsonaro no litígio sobre a divulgação de seu exame para a Covid-19, o presidente do STJ despertou preocupação quanto à sua capacidade de resistir ao canto das sereias do bolsonarismo. Qualquer ministro que demonstre disposição em usar os poderes de seu cargo para fazer acenos a Bolsonaro deve ser imediatamente amarrado ao mastro do navio.