O livro de estreia de Geovani Martins teve seus direitos vendidos para nove países, com versões para sete idiomas, do inglês ao chinês, passando pelo espanhol, alemão, francês, italiano e holandês. Os tradutores terão trabalho. Em O Sol na Cabeça, com o domínio de quem cresceu na Rocinha e vive no Vidigal, Martins incorpora à literatura o léxico e a sintaxe dos morros cariocas, combinando-os com o português formal. De 75 palavras e expressões analisadas pela reportagem, 55 ou não estão no dicionário ou expressam no livro significados diferentes do que consta no Houaiss.
Já no conto de abertura do volume, “Rolézim”, ao descrever a praia num domingo, Martins diz que ela está “lombrada”. A palavra não é dicionarizada. Segundo o autor, indica uma situação tensa – tensão provocada pela presença dos “cu azul”.
piauí traz a seguir uma seleção de 20 expressões de O Sol na Cabeça, acompanhadas de explicações do autor sobre seu significado. Esse trabalho de tradução deve ser entendido dentro de seus limites. Ele é mais uma curiosidade jornalística do que uma tentativa de oferecer a interpretação de um texto literário que extrai sua força não apenas do uso inusitado da língua, mas da escolha do ângulo com que observa a realidade, do efeito várias vezes ambíguo das palavras, do ritmo da prosa.
BACA
Definição do autor: A palavra é uma forma reduzida de bacanal.
Trecho do livro: “Ela disse que morria de tesão vendo homem de farda, que já tinha sonhado com ele várias vez e acordado molhadinha (…). Os outros cana queria ir atrás, achando que ia rolar um baca.”
BERIMBOLAR
Definição do autor: Quando há alguma confusão ou problema.
Trecho do livro: “Demorou muito pro bagulho berimbolar de verdade, não. (…) Quando os vagabundo se entocou pros polícia entrar, bagulho virou terra de ninguém, menó.”
CAXANGA
Definição do autor: Casa.
Trecho do livro: “Acordei tava ligado o maçarico! Sem neurose, a minhacaxanga parecia que tava derretendo. Não dava nem mais pra ver as infiltração na sala, tava tudo seco.”
CU AZUL
Definição do autor: Polícia Militar, por causa da cor da farda. Relaciona-se com os apelidos dados a facções criminosas do Rio Comando Vermelho e Terceiro Comando, sendo, respectivamente, cu vermelho e três cu. No linguajar, Amigo dos Amigos é chamado de Adelaide.
Trecho do livro: “Tem mais é que encher esses cu azul de bala.”
DAR BAQUE
Definição do autor: Aparecer ou ir em algum lugar. Pode significar operação policial ou troca de tiros se falado no contexto policial.
Trecho do livro: “Essa polícia é tudo covarde mermo, dando baque no feriado, com geral na rua, em tempo de acertar uma criança.”
DAR UM BELENGO
Definição do autor: Cheirar cocaína.
Trecho do livro: “O caô era que ele queria ficar morgando em casa invés de partir com nós. (…) Sorte foi que Vitem conseguiu instigar ele a dar um belengo pra ficar na atividade.”
DAR UM DOIS
Definição do autor: Fumar maconha.
Trecho do livro: “Tinha dois menó ali perto de nós com mó cara de quemdá um dois.”
DAR UM ROLÉ NA PISTA
Definição do autor: Ir no asfalto, na área dita como cidade em oposição ao morro. Também pode ser usado quando alguém está solteiro, “está na pista”.
Trecho do livro: “Eu fico de bobeira quando dou um rolé na pista e vejo que nego não sabe de nada que acontece aqui dentro.”
DESENROLO
Definição do autor: Conversar com o intuito de persuadir ou seduzir alguém. Serve também para resolver algum problema, como em “desenrolar”.
Trecho do livro: “Calote pra nós é lixo, tu tá ligado, o desenrolo é forte.”
ENDOLA
Definição do autor: Palavra derivada de endolação, o processo de pesagem e embalo das drogas.
Trecho do livro: “Até então tava geral na merma meta: duro, sem maconha e querendo curtir uma praia. A salvação foi que o Teco tinha virado a noite dando uma moral na endola, aí ganhou uns baseado.”
ESCALDAÇÃO
Definição do autor: Situação em que há desconfiança. Tem ligação com a expressão “gato escaldado”.
Trecho do livro: “Quando a UPP invadiu o morro, eram foda pra comprar bagulho. Maior escaldação; ninguém queria botar a cara pra vender, só tinha criança trabalhando de vapor.”
DE BUCHA
Definição do autor: Ser feito de otário ou usado como bode expiatório. Uma situação injusta ou que aconteceu à toa.
Trecho do livro: “Dois menó passou voando e levaram as mochila com tudo dentro. Os play ficou de bucha, com o celular na mão, panguando. Aí passou mais um menó e levou o celular também.”
LOMBRADA
Definição do autor: Situação tensa. Deriva do verbo lombrar, que significa que algo deu errado. Em outros estados, pode significar alguém famoso. Entre usuários de maconha, significa alguém que está sob o efeito da droga.
Trecho do livro: “(…) o rasta já tinha dado o papo que a praia tava lombrada”.
MEMEIA
Definição do autor: Frescura.
Trecho do livro: “Antigamente vagabundo fumava até na folha de caderno, papel de pão. Agora é essa memeia.”
NEURÓTICA DE PISTA
Definição do autor: Mulher sagaz e com certa experiência de vida.
Trecho do livro: “Mas não podia ser só gostosa não, tinha que ser uma mina sinistra, neurótica de pista.”
PALMEAR
No dicionário: Pegar ou apanhar algo, ou aplaudir.
Definição do autor: Olhar ou observar.
Trecho do livro: “Geral falou que na praia ele ia ficar tranquilão, só palmeando as novinhas.”
PANGUANDO
Definição do autor: Estar desatento, alheio ao que acontece em volta.
Trecho do livro: “Eu já tinha palmeado pelo menos uns dois menózim que tavam escoltando eles (…). E eles lá, panguando, achando que o bagulho é disneylândia.”
SEDANAPO
Definição do autor: Quando, na falta de seda, se usa guardanapo para enrolar um baseado.
Trecho do livro: “Só um sedanapo com o amigo da barraca que tava na intenção de dar um dois com nós. Foda é que ninguém quer saber de napo, bagulho agora é só smoking.”
RATARIA
No dicionário: Um conjunto de ratos.
Definição do autor: Alguém que, como um rato, tem uma malícia para sobreviver na cidade e em situações adversas. Como explicou Martins à piauí, “o rato é um bicho ativo, na luta pela sobrevivência sempre. E ‘rataria’ vem disso, de ter essa esperteza. O rato escapa de tudo e briga um milhão de vezes.”
Trecho do livro: “Depois fiquei pensando nos menózim que saíram no pinote. Os menó era tudo rataria (…).”
XISNOVAR
Definição do autor: Denunciar alguém.
Trecho do livro: “Eu sei que Luiz não era X9, meu irmão nunca que ia xisnovar ninguém (…).”