O pastor Rinaldo Seixas, criador da Igreja Bola de Neve, morreu no dia 17 de novembro, aos 52 anos. Ele voltava de um encontro do motoclube cristão Pregadores do Asfalto quando perdeu o controle da Harley Davidson que conduzia. Durante o velório, na sede da igreja no bairro da Lapa, Zona Oeste de São Paulo, foram organizadas carreatas pelos discípulos, que o chamavam de A.P., uma sigla para apóstolo. Nas duas décadas anteriores, ele havia controlado a instituição com rigor, conquistando adoração e críticas por seus métodos, e a alçado a uma das maiores e mais influentes congregações cristãs do país. Em meio ao choque por sua morte rápida depois do acidente logo começou a se espalhar uma pergunta: quem será o seu substituto à frente da Bola de Neve?
As movimentações começaram enquanto o corpo de Rina era velado. Denise Seixas, sua companheira por duas décadas, após meses afastada do marido, compareceu à cerimônia. Um advogado da Bola de Neve a abordou em pleno velório com a papelada burocrática relativa ao óbito, mas, entre os papéis, havia um termo de renúncia à vice-presidência, cargo que ela ocupava desde junho de 2016. “Outorgo à Igreja e aos seus membros a mais ampla, plena, rasa, geral, irrevogável e irretratável quitação, para nada mais reclamar em relação ao período em que fui conselheira no Conselho Deliberativo e a qualquer título”, dizia o documento ao qual a piauí teve acesso. Ela se revoltou com a abordagem e começou um bate-boca.
A contenda pública é reflexo das tensões de bastidores que acontecem há pelo menos seis meses, envolvendo a disputa pelo comando da congregação. Envolto em polêmicas que desgastaram sua imagem como líder e arranharam a imagem da entidade, Rina havia apresentado ao conselho, pouco antes de morrer, alternativas para o futuro da Bola de Neve. Uma delas era fazer uma reformulação completa, incluindo a criação de um novo nome. A outra era fechar as portas, abdicando da estrutura atual, com seus 560 templos espalhados por 34 países. Sua morte repentina, no entanto, deixou o cenário repleto de incertezas.
Nos bastidores, Rina e Denise costuravam um acordo para oficializar o divórcio e a transição de poder dentro da igreja. Em mensagens a um amigo obtidas pela piauí, Rina parecia disposto a resolver a crise de maneira amistosa – por isso ainda mantinha o nome dela em sua biografia no Instagram. Também havia começado a fazer terapia. “Há uma família sendo dissolvida e que está orando por restauração”, dizia a mensagem enviada ao amigo em setembro.
Após sua morte, porém, a situação mudou. Membros do conselho sustentam que Denise renunciou ao cargo de vice-presidente em agosto de 2024, informação que os advogados dela contestam. Eles sustentam que o acordo não foi homologado e, segundo o estatuto da igreja, o combinado é de que ela quem assumiria o posto da presidência no caso da morte do líder.
A argumentação dos defensores de Denise foi aceita pelo juiz Fábio Evangelista de Moura, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que proferiu decisão liminar favorável a ela em 12 de dezembro. O magistrado alegou que o processo de divórcio não estava homologado e que a morte repentina de Rina fez com que o processo fosse “julgado extinto e sem resolução do mérito”. “O acordo de separação consensual, alimentos, guarda e partilha de bens, celebrado em 27/08/2024, que não havia sido homologado pelo Juízo, perdeu seus efeitos, inclusive quanto à renúncia feita por Denise ao cargo de vice-presidente da Igreja Bola de Neve”, diz a decisão. Os advogados da Bola de Neve vão recorrer da decisão.
Essa sentença da semana passada, favorável a Denise, diz ainda que membros do conselho da Bola Neve estão impedidos de assumir responsabilidades administrativas, sob pena de multa de 10 salários mínimos. É um duro golpe para Fábio Santos, integrante do conselho espiritual, um grupo formado por pastores influentes que eram próximos a Rina, que também pleiteava a presidência da igreja. Santos é apoiado por outro nome importante na estrutura da congregação: o diretor financeiro Everton Cesar Ribeiro.
Denise e Ribeiro vivem uma guerra. A defesa da ex-mulher de Rina afirma que o diretor financeiro está sendo investigado internamente por má conduta na administração das contas da igreja, cuja receita anual gira em torno de 250 milhões de reais – a suspeita é de que ele direcionou para um CNPJ próprio valores ofertados pelos fiéis em máquinas de cartão nos templos da Bola de Neve e ficou com parte das comissões pelas transações. O documento não determina quando os serviços passaram a ser prestados. Apenas nas notas fiscais obtidas pelos advogados de Denise, os desvios ultrapassam a marca de 1,4 milhão de reais.
Os advogados de Denise afirmam que a pressão para que ela abdique da presidência serve para impedir uma auditoria financeira nas contas da instituição. Alegam que no dia 29 de novembro, quando ela voltou ao templo para demitir funcionários, Everton saiu da igreja às pressas levando consigo documentos e um computador.
Everton afirmou à piauí desconhecer ações judiciais contra ele. “Não tenho notícia de qualquer notificação ou procedimento judicial ou investigativo questionando minha atuação profissional ou as sociedades que integro. Os dados relativos a essas atividades estão, como sempre estiveram, a pleno alcance de toda e qualquer autoridade investida da prerrogativa de acessá-los observando as balizas legais, isto é, assegurando as garantias de sigilo financeiro de todas as partes desses negócios.” E acrescentou: “Não me parece razoável, portanto, responder a acusações que desconheço sobre situações que, por natureza, não podem e não devem ser debatidas em público.”
A Bola de Neve, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou à piauí desconhecer qualquer procedimento judicial envolvendo Everton ou outro conselheiro, e defende o sigilo das informações relacionadas à congregação. “A divulgação de dados, valores de pagamentos e quaisquer outras cláusulas contratuais é ilegal e fere o sigilo financeiro estabelecido pela Constituição Federal. Apenas aos entes estatais que têm a prerrogativa legal de fazê-lo, e não àqueles que tentam legitimar um dissimulado apreço pela entidade por meio de ofensas e ilicitudes.”
Um ex-conselheiro ouvido pela piauí sob condição de anonimato afirmou que a decisão judicial que concedeu a vitória a Denise é uma reviravolta surpreendente na história dela com o agora ex-marido e também com a instituição.
A avaliação é decorrente das revelações que marcaram a vida de Rina e Denise nos últimos anos, com acusações de assédio sexual e agressões físicas e verbais, envolvendo familiares, funcionários e ex-membros. Ao longo de cinco meses, entre agosto e dezembro, a piauí entrevistou integrantes e ex-integrantes para mapear esses conflitos. A reportagem tentou entrevistar Rina várias vezes antes de sua morte, todas recusadas por ele e sua assessoria de imprensa.
Em junho deste ano, Rina utilizou o principal púlpito da sede da Bola de Neve para anunciar o próprio afastamento da instituição fundada por ele em 1999. Até a crise com Denise se tornar pública, no ano passado, Rina manteve a congregação intacta. Nos anos 1990, quando ainda era pastor da igreja Renascer em Cristo, ele fundou o ministério Bola de Neve como um pequeno grupo para a reabilitação de dependentes químicos. Pouco tempo depois afastou-se da Renascer, que à época se aproximava da arena política. Surfista veterano, teve adesão de colegas de areia, jovens tatuados, , rockeiros e modelos de publicações adultas, sex symbols e desgarrados de toda ordem, além de uma lista de celebridades que começava com a apresentadora Monique Evans e o cantor Rodolfo Abrantes (ex-vocalista da banda Raimundos) e teria no futuro o campeão Gabriel Medina e a estilista Sasha Meneghel, nora de um pastor da igreja. Ele e Denise eram os maiores representantes desse estilo. Tudo começou com pregações sobre uma prancha de surfe improvisada, onde Rina falava com a turma que pegava onda em São Sebastião, no litoral Norte de São Paulo. Denise, nascida em Santos, no litoral Sul, havia se divorciado e se tornado uma influente liderança feminina na nova congregação.
Ela já tinha um filho do primeiro casamento, Nathan Gouvêa – com Rina, teve outros três. Gouvêa foi um dos primeiros a ouvir as queixas da mãe sobre problemas no casamento, quando ela passou a se aconselhar e a compartilhar impressões acerca do comportamento do marido. Gouvêa nunca a viu ser agredida, mas sabia que a relação deles era tempestuosa.
Embora tenha crescido com o casal, o contato entre Gouvêa e o padrasto se resumia a partidas de videogame. No apartamento onde moravam, no bairro do Pacaembu, Zona Oeste paulistana, ele diz que era mais “agregado” do que filho, comia comidas separadas na geladeira e usava as roupas velhas do padrasto em vez de novas peças, apesar da melhora financeira e do crescimento da igreja ano após ano.
Aos 7 anos, recorda Gouvêa, Rina o castigou deixando-o pelado por horas em uma sacada de um hotel no litoral. Segundo o afilhado, o pastor não havia gostado de uma coreografia de uma música da época: “olha a onda, olha a onda”, refrão de uma canção do grupo de pagode baiano Tchakabum. “Ele achou aquilo um absurdo”, disse o jovem à piauí, hoje com 31 anos.
A violência, relata, aumentou no início da adolescência. Certa vez, ao tentar ajustar o aparelho de videogame, que havia deixado de funcionar, Rina se enfureceu e o culpou pelo defeito. Foi quando começaram os primeiros chutes. “Cada vez que o PlayStation dava um sinal vermelho [indicando problema], era um chute. Um chute que ele me dava na cabeça.”
Por volta dos 18, o enteado já demonstrava desgaste com a agressividade do padrasto e decidiu faltar a uma reunião de jovens em São Paulo. “Quando ele percebeu que eu estava dormindo, me acordou aos socos. Socar e estapear. Não gosto nem de falar porque me causa gatilhos. Tenho traumas até hoje.” Segundo ele, a mãe era convencida por Rina de que a atitude era o ideal para educar uma criança, validada pela visão apostólica do marido. “Minha mãe veio de um casamento ruim, mas pensava que ‘não, ele é um pastor’, e caiu na mesma manipulação.”
Mesmo diante das agressões, Gouvêa permaneceu na Bola de Neve. Ele começou a dar aulas de inglês para pagar a faculdade de direito onde se formou e, meio a contragosto, assumiu a liderança de um grupo de jovens da igreja em São Paulo. Quando Rina o convidou para chefiar uma unidade da Bola de Neve em Orlando, em meados de 2016, ele imaginou ter encontrado a solução para se afastar do padrasto. Dois anos depois, assumiu um templo em Cocoa Beach, uma região turística, litorânea e cheia de brasileiros. Era um ponto estratégico nos planos de expansão que Rina havia desenhado desde o início da congregação, quando apostou na implementação de igrejas com pastores que no púlpito aparentavam informalidade, caso de Gouvêa.
O período nos Estados Unidos foi marcado pela distância física do padrasto, mas também pelos embates teológicos à distância, em temas que Gouvêa discordava. Um deles: a exigência dos pastores da Bola de Neve em autorizar os relacionamentos amorosos dos membros da igreja, que necessitavam da “benção” de uma liderança para se relacionar com pessoas fora da congregação. É um estilo de influência inspirado na linha teológica da “honra ao líder”, um arranjo não tão incomum em igrejas pentecostais. O membro deve consultar a autoridade espiritual sobre questões pessoais e profissionais, como problemas no relacionamento, mudanças de emprego e aquisição de bens. “Isso é uma cartilha geral da Bola de Neve”, afirma Gouvêa. A conduta sobre os namoros e trocas de emprego foi confirmada pela piauí com outros ex-membros.
Saturado, Gouvêa voltou ao Brasil em 2023 para visitar a mãe, que pela primeira vez, confidenciou a ele que havia sido agredida por Rina – fato nunca presenciado por Gouvêa – e que identificava no marido características de alguém narcisista. Insatisfeitos, mãe e filho traçaram um plano. Os dois sabiam que as queixas poderiam ser ignoradas pelo alto-escalão da Bola de Neve e decidiram filmar as discussões do casal. Ao mesmo tempo, Gouvêa deixou a unidade em Orlando, se desvinculou da igreja e se mudou para Barcelona.
O plano, porém, saiu do controle. Denise enviou imagens das discussões ao filho, mas também começou a lamentar-se com outros integrantes da congregação. A fofoca chegou até os os ouvidos de Rina, conhecido por manter sob controle as informações até mesmo de unidades menores e menos influentes. O burburinho acirrou ainda mais o clima ruim entre o casal. Gouvêa, então, compartilhou em suas redes sociais um dos vídeos da discussão em abril do ano passado. “Eu tô velha, tem um monte de mulher em cima dele e eu não tenho o que oferecer mais”, reclamou Denise na gravação. O pastor a chama de “completamente enlouquecida” e que precisa “ser acompanhada” por tratamento médico. Na legenda, Gouvêa afirmou que as imagens eram provas do abuso psicológico sofrido pela mãe.
A recepção do público evangélico foi mista, com críticas a uma invasão de privacidade e uma tentativa de estimular ainda mais a instabilidade do casal. A publicação, porém, foi parar em páginas como O Fuxico Gospel e acabou temperada pelos pitacos de dezenas de youtubers cristãos. Pouco tempo após a divulgação da briga, Denise gravou um novo vídeo dizendo que precisaria se distanciar da igreja. A confusão estava instaurada.
Rina se pronunciou publicamente para colocar panos quentes na situação. “Talvez, amados, eu não tenha conseguido ser um bom pai para nosso filho mais velho, mas saibam que eu fiz o melhor”, afirmou ele, que chamou a esposa de “mulher sábia”. A contenção não deu certo. Ao contrário. Denise recebeu a adesão de outras mulheres, membros e ex-membros da Bola de Neve, que se identificaram com ela. O escopo das queixas se ampliou ao longo de dez meses – até a crise atingir seu auge, em abril deste ano.
No início de julho, o site Metrópoles divulgou depoimentos de funcionários e ex-funcionários da Bola de Neve dados à Polícia Civil no âmbito das investigações. Segundo a reportagem, testemunhas afirmaram que a pastora passou a se agredir e a usar uma dose alta de medicamentos após o filho Gouvêa se afastar da família e da igreja. Após a divulgação, Denise gravou um vídeo dizendo que não tinha problemas psicológicos. À polícia, acrescentou que o marido a agredia e que havia lançado uma cadeira em sua direção. Ela vive com a família em Santos, segundo amigos.
A turbulência familiar envolvendo o líder da igreja fez com que membros e ex-integrantes revelassem suas experiências dentro da congregação. No Instagram, uma página chamada “Bolha de Neve”, posteriormente excluída, começou a receber e divulgar relatos de “abusos espirituais”. As mensagens tinham um pouco de tudo: exigências pitorescas, como doações para a prótese de silicone da esposa de um pastor, altas cargas de trabalho voluntário e queixas da obrigação imposta por Rina para aprovar namoros e casamentos.
Em maio deste ano, o advogado e ex-membro Márcio Bieda saiu do anonimato e levou às redes sociais uma denúncia de que pastores catarinenses estavam se apropriando de recursos da igreja em benefício próprio. A acusação era de que a verba foi usada para inaugurar um salão de luxo no nome da filha de Natanael Nunes Paixão, pastor da Bola de Neve. Após a denúncia por desvio de dinheiro, posteriormente arquivada, ele renunciou ao cargo.
No mesmo período, só que em São Paulo, uma ex-secretária de Rina avisou a Denise que iria levar adiante um boletim de ocorrência por importunação sexual no período em que trabalhava para o pastor. No boletim, ela afirma que o caso aconteceu no apartamento onde o casal vivia, quando Rina tentou agarrá-la à força, em 2017. “Eu lembro que tirei a mão dele de mim e disse: ‘não encosta em mim, seu animal’”, revelou ela à piauí, sob condição de anonimato. A mulher, que hoje trabalha como motorista de aplicativo, ressaltou que Rina tentou se desculpar à época e a manteve na folha de pagamento da igreja, mas a retirou de suas funções.
Em nota à piauí, a assessoria da igreja disse que a investigação sobre a “suposta importunação foi arquivada, inocentado-o antes de sua morte”. “Eu o via como pai e jamais imaginaria que um pastor dessa igreja pudesse fazer isso. Eu até me analisei para saber se era um espírito de Jezabel”, ponderou a ex-secretária, fazendo referência a uma doutrina da Bola de Neve que julga endemoniada a mulher insubmissa à masculinidade. Na bíblia, Jezabel é citada no Antigo Testamento e descrita em Apocalipse como uma falsa profetisa que leva seus seguidores à idolatria e à perversão sexual.
A Bola de Neve mantém uma ficha chamada Ficha de Aconselhamento, algo como uma “triagem” comportamental aplicada aos seus membros, sobretudo os mais novos ou aqueles que desejam ascender na hierarquia da igreja. O documento obtido pela piauí tem questões sobre a participação em rituais satânicos e terreiros; se ouve rock pesado/heavy metal, acredita em astrologia, se tem tatuagens ou se crê em teorias conspiratória da Nova Era, como definem o culto a práticas que consideram esotéricas e ocultistas. Em um campo intitulado Traumas e observações finais, uma linha pergunta: “Foi molestado sexualmente?”, e acrescenta mais três campos: “Por quem” “Quantas vezes?”, “Quantos anos você tinha?”.
A cartilha também questiona se o membro já fez sexo oral, anal, ou teve experiências homossexuais. As respostas eram submetidas a um pastor, que dava início a uma sessão de aconselhamentos e orações. Caso elas estivessem em desacordo com o que assevera a doutrina da Bola de Neve, o membro deveria escrever uma carta com desculpas a familiares e amigos, e a conclusão do processo só acontecia sob o aval do pastor encarregado da expulsão do demônio.
A jornalista Fernanda Veiga, autora do livro Anota, vai que esquece?, lançado em 2020, sobre a Bola de Neve, frequentou a igreja entre 2010 e 2017 e participou de uma dessas sessões após revelar um abuso sexual sofrido na infância. Ela foi pressionada a romper um relacionamento com um homem de fora da congregação, tirar os piercings – apetrechos que um pastor chamava de “portas espirituais para a entrada de maus espíritos no corpo” – e a prestar explicações sobre o abuso sofrido “no sentido de quebrar espiritualmente a continuidade disso em minha descendência”, escreveu ela no livro. Ela contou à piauí que as sessões misturavam as experiências de mulheres LGBTQIA+ com aquelas que sofrem violência doméstica. Nas duas situações, o “problema” era sempre culpa da mulher.
A existência da cartilha era uma questão interna da Bola de Neve até 2013, quando o historiador Du Flor Maranhão publicou o livro A Grande Onda Vai Te Pegar – Marketing Espetáculo E Ciberespaço Na Bola De Neve Church. A obra, fruto das experiências vividas por ele entre 2005 e 2006, em um templo de Florianópolis, questionava a versão moderna e inclusiva da igreja. O estudo revela, além do domínio masculino em relação às mulheres, o apreço de Rina pela teóloga e líder cristã Neuza Itioka, que morreu em fevereiro, aos 81 anos, vítima de uma pneumonia. Ela liderava o Ministério Ágape Reconciliação que prestava serviços de “libertação espiritual” aos frequentadores da Bola de Neve. Sua teologia prega, entre outras coisas, que homossexuais sejam “restaurados”. São preceitos que estão na base da cartilha do Ministério Nova Vida.
Os relatos de como Rina e seus comandados, a maioria de homens heterossexuais, atuavam nos bastidores impondo as normas da cartilha mostram que quem não se enquadra deve sair. O ex-pastor Rodrigo Santos, de 36 anos, tentou levar uma unidade da igreja para a cidade de Alicante, na Espanha, em 2018. Antes, porém, confidenciou a uma liderança que, apesar de ser casado com uma mulher, sentia atração por homens. Um pastor foi então encarregado de realizar o tratamento de “cura e libertação”. Em uma sala fechada, ele foi orientado a clamar repetidamente, em voz alta, para Deus expulsar seus demônios. Depois, ordenado a se afastar de influências consideradas prejudiciais, como amigos homossexuais. O último passo era a queima de pertences, como roupas e livros que remetessem à homossexualidade. “O que passei foi um verdadeiro exorcismo”, disse Rodrigo à piauí. As sessões não foram suficientes para diminuir sua atração por homens e, assim, ele decidiu se desligar da igreja. Atualmente, é casado com um homem e deixou de ser pastor para se tornar vendedor de produtos hoteleiros para Portugal.
Diferentemente de Rodrigo, que só se relacionou com homens na fase adulta, a advogada Anna de Oliveira ingressou na Bola de Neve em 2014, aos 24 anos, com um histórico de relacionamentos homoafetivos. Ela achou que a congregação de Rina seria um lugar menos hostil do que suas experiências anteriores. “Descobri a Bola de Neve e fui nela porque tinha aquela fama de ser um ambiente em que isso não era um problema”, contou ela à piauí. Ela foi instruída a compartilhar sobre a própria sexualidade em uma ficha de aconselhamento com outras questões consideradas problemáticas para a igreja, como o vício em masturbação e compras. Depois, foi encaminhada ao grupo de “Correção de conduta homossexual”, onde ouvia pregações contrárias ao sexo anal e oral, por exemplo. “Foram dois anos de pensamentos suicidas”, relembrou Anna, que deixou a igreja em 2017.
Em nota, a Bola de Neve afirma que respeita a diversidade e “presta acolhimento religioso a todas as pessoas que a procuram, independentemente de qualquer classificação e orientação sexual ou de gênero e sempre pautada pelos ensinamentos cristãos de amor ao próximo”.
A consultora de enxoval Julia Kawall casou-se em 2003 com um pastor da Bola de Neve que atuava na cidade de Barueri, na Grande São Paulo. Foi espancada pelo marido e queixou-se com Rina sobre o que estava acontecendo. As agressões, segundo ela, começaram na lua de mel. O líder da congregação passou a aconselhar o casal para tentar resolver o problema. “Mas a culpa era sempre da mulher”, afirmou Julia à piauí. Rina atuou para impedir o divórcio, mesmo com os relatos de violência. “Lembro que, na época, ele [Rina] falou que se eu me separasse, ia me desligar do corpo de Cristo. Foi aí que eu vi o quanto Denise era sozinha.” Julia só conseguiu o divórcio em 2013, quando se mudou para os Estados Unidos para trabalhar em uma empresa de turismo.
Em outubro deste ano, Rina retornou à sede da Bola de Neve e publicou imagens de um culto, o que despertou a hipótese de que poderia voltar a liderar a congregação. “Que dia glorioso! A igreja segue!”, escreveu ele nas redes sociais. A possibilidade, no entanto, esvaiu-se após o acidente de moto no interior paulista, em um dos tantos passeios que costumava fazer. A irmã Priscila foi informada sobre o acidente no púlpito, durante um culto, em São Paulo. Se retirou para o camarim até que a notícia da morte veio à tona no domingo à noite.
A última publicação de Denise nas redes sociais foi em maio. No velório de Rina, inconformada com a tentativa de fazê-la renunciar à vice-presidência, ela subiu ao palco da sede da Bola de Neve e discursou diante da prancha de madeira. “Rina foi o cara que mais amei na vida.”