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Na segunda-feira, dia 12, o jovem Pedro Henrique Oliveira dos Santos, de 14 anos, acordou às 7 horas, como fazia todos os dias. Tomou banho escutando Gal Costa e Rita Lee, duas de suas cantoras favoritas. Deixou o banheiro cheio de vapor, se trocou e hidratou os cabelos cacheados, o seu maior xodó. Bebeu uma xícara de café preto, tomou um iogurte e comeu pão com manteiga. Saiu do apartamento localizado em um conjunto habitacional no bairro Vila dos Remédios, em Osasco, e foi até o ponto onde tomava diariamente o ônibus da linha 917H para ir ao Colégio Bandeirantes, na Vila Mariana, na capital paulista.
O trajeto entre sua casa e o colégio dura cerca de uma hora. A aula começava às 13 horas, mas muitas vezes o adolescente chegava mais cedo para estudar na biblioteca. Como de costume, cumpriu o pedido de sua mãe de informar pari passu seu trajeto. Às 9h27, Santos mandou uma mensagem de WhatsApp dizendo ter acabado de entrar no ônibus. Àquela altura, sua mãe já estava a caminho do seu emprego, uma escola municipal da Zona Oeste, onde trabalha como auxiliar de limpeza. Era um dia normal na vida da família.
Às 10h38, Santos enviou uma mensagem de áudio para sua mãe. Ela estava na sala da coordenação e não escutou a notificação. Por volta das 11 horas, o telefone tocou. Era do Colégio Bandeirantes. Toda mãe se assusta com ligação da escola. Com ela não foi diferente. Saiu em direção a um banheiro atender a chamada. No caminho, escutou o áudio deixado poucos minutos antes por seu filho. Ele se despedia e dizia que tiraria a própria vida. A mulher ficou sem chão. Enquanto assimilava a mensagem, o Colégio Bandeirantes ligou novamente contando que Santos havia deixado uma mensagem de áudio para o grupo da sala 9D, onde ele cursava o último ano do ensino fundamental. “Eu larguei o balde, o rodo e o saco de lixo. Nisso comecei a mandar mensagem para o meu filho mais velho”, disse ela, que pede para não ter seu nome divulgado.
Ao receber o telefonema da mãe, o irmão mais velho, de 21 anos, imediatamente acessou o localizador do aparelho celular de Santos, usando o e-mail do Google, e viu que ele estava na Zona Oeste, em um local situado entre a casa e a escola. O irmão, que estava no apartamento dos pais trabalhando em home office, pediu um Uber para ir a dois endereços: primeiro, ao serviço de sua mãe e, em seguida, àquele onde Santos poderia estar. Os dois ligaram inúmeras vezes para o celular do adolescente. O telefone chamava, mas ninguém atendia. Quando chegaram ao local, por volta das 12h30, souberam que ele havia consumado o suicídio.
Pedro Henrique dos Santos era o filho do meio de uma auxiliar de limpeza e um auxiliar de almoxarifado. Sempre foi estudioso e apaixonado por leitura, e decidiu seguir os passos de seu irmão mais velho, que estudou como bolsista no Colégio Marista Glória, no bairro do Cambuci, por meio de um programa do Instituto Social para Motivar, Apoiar e Reconhecer Talentos (Ismart). Fundado em 1999 pelo empresário Marcel Telles (sócio de Jorge Paulo Lemann e Beto Sicupira na 3G Capital, controladora de empresas como a Ambev e as Lojas Americanas), o Ismart concede bolsas de estudos para alunos pobres em colégios de ponta em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
Santos passou no rigoroso processo seletivo feito em seis etapas, que inclui duas provas e entrevista, e foi contemplado com bolsa integral no Colégio Bandeirantes, cuja mensalidade gira em torno de 4,5 mil reais. “Quando o meu irmão foi aprovado, ele me ligou chorando de alegria. Ficamos orgulhosos e achando que o futuro dele estava garantido”, conta o primogênito, que cursou Economia na Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, e hoje trabalha em uma startup da área de educação e tecnologia.
Santos ficou encantado com o Bandeirantes e seu material pedagógico de alto nível, uma alegria para quem era apaixonado por estudar e tinha bom desempenho. Mas o horizonte se tornou turvo com o tempo. Negro, periférico e abertamente gay, Santos fez poucos amigos na escola ao longo do ano e meio em que ficou por lá. Andava mais com colegas que também tinham bolsa, quase sempre meninas. Era constantemente ignorado e motivo de risadas dentro e fora da sala de aula. Neste ano, passou a ser alvo de piadas pelo tom de sua voz.
Nos últimos meses, as coisas pioraram e os sinais apareceram. As suas notas caíram. O garoto não queria acordar para ir ao colégio. Chegou a pedir para faltar, algo inédito. Entre os dias 22 e 24 de maio deste ano, se queixou para a mãe que sofria bullying. Em trocas de mensagens por WhatsApp, narrou o seu martírio dentro da escola. Seguem algumas mensagens enviadas durante esse período: “Fizeram chacota de mim por eu ser gay”; “No prédio do elevador, o menino me deu um empurrão e gritou no meu ouvido”; “Fiquei de cabeça baixa por muito tempo. Não vim para o Band para ficar escutando bosta de branquelo azedo metido a besta sobre minhas coisas e o que eu sou. Eles vão pagar. Não estou brincando.”
Sua mãe tentava acalmá-lo escrevendo que não seria a primeira nem a última vez que ele iria lidar com adversidades e que os praticantes de bullying não faziam parte do seu círculo de amigos nem de sua vida. Em outro dia, Santos escreveu à mãe: “Vontade de nunca mais pisar de novo. Me humilharam (na frente) da sala inteira. Eu não aguento mais. Eu fiquei trancado no banheiro por 50 minutos, chorando. Ficaram me humilhando.” Quando sua mãe perguntou o que fizeram, ele respondeu: “Ficaram falando que era para eu ir para a lousa no sorteio [para resolver tarefas] e, quando não ia, queriam me chamar para ficar me humilhando na frente de todo mundo. O menino me chamou e ficou me tratando como se eu não soubesse matemática básica. E eu segurei o choro. Eu não aguento mais. Parece que jogaram tinta vermelha no meu olho de tanto que eu tô chorando. Eu não fiz nada de errado.”
“A verdade é que temos origem humilde e a minha mãe sabe que apenas com uma educação podemos ascender. Ela tinha medo de meu irmão perder a bolsa”, conta o seu irmão mais velho. Mesmo assim, Santos, sufocado com as agressões, combinou com a sua mãe de levar o caso à coordenação do Ismart. Mariana Rego Monteiro, diretora-executiva do instituto, confirma que o aluno recorreu à entidade e contou o caso de bullying. “O Pedro [Santos] passou em consulta com essa clínica [de psicologia], custeada por nós”, diz ela. “Existe uma escuta muito constante. Temos muita preocupação com o bem-estar dos jovens.” A Ismart, que ao longo de 25 anos recebeu 165 mil inscrições de alunos em busca de bolsa e atendeu 3 mil jovens de baixa renda, oferece psicólogos e mentorias de ex-bolsistas para dar amparo e suporte aos alunos contemplados.
Santos relatou à mãe que um praticante de bullying tomou alguma suspensão. O Ismart e o Bandeirantes não confirmaram essa informação – o primeiro alegou respeito ao sigilo sobre os envolvidos e o segundo não comentou nada.
“Muito provavelmente por medo de preocupar e desapontar meus pais, que sonham com uma boa educação, meu irmão não reclamou mais. Até ele não suportar a dor”, contou o irmão mais velho. Mas os casos de bullying não cessaram, e Santos não falou mais no assunto. Um dia antes do suicídio, ele tentou tirar sua vida, mas foi impedido a tempo pelo irmão.
O Bandeirantes tem uma disciplina em sua grade pedagógica chamada “convivência positiva”, para transmitir aos alunos valores de civilidade e de convivência em harmonia. Santos, assim como todos os alunos do 9o. ano do ensino fundamental, cursava essa matéria. A “convivência positiva” foi criada depois que o Bandeirantes foi questionado por pais de alunos por uma série de problemas.
Em 2015, documentos vazados mostravam que alguns professores da instituição faziam anotações grosseiras nas fichas dos estudantes, entre elas “tem olheiras, boca de ódio, tem cara de criança de filme de suspense”, ou “aluna perdeu a mãe em junho de 2007. É filha adotiva, mas acho que não sabe disso”. A direção da escola admitiu o fato e suspendeu o aluno responsável por vazar os dados. Em 2018, dois estudantes do ensino médio do Bandeirantes cometeram suicídio em um intervalo de dez dias. Eles não eram bolsistas nem se conheciam. A criação da disciplina “convivência positiva” foi a resposta do colégio a esses acontecimentos.
As medidas não eram unânimes. “Eu presenciei uma aula da ‘convivência positiva’ em que dois professores simularam uma briga para perguntar aos alunos quem estava certo ou errado”, diz uma ex-professora do Bandeirantes, que deixou os quadros da escola no ano passado e conheceu Santos. Ela pede anonimato, por temer represálias.
“No entendimento da psicologia positiva, escolhemos ensinar pelo exemplo, não pelo teatro de uma briga”, critica. Essa professora diz que, dentro do Bandeirantes, os alunos contemplados com isenção de mensalidade andam entre si, com pouca interação com os demais alunos. “Os bolsistas sempre andam mais de cabeça baixa, como quem tem medo. O clima na escola é ruim e de muita competição”, diz ela. “Muitos alunos gritam e destratam os inspetores. Muitos inspetores, mesmo com a autorização para que seus filhos estudem no Bandeirantes, não fazem isso para evitar que sofram bullying.”
Leonardo Alexandre Bastos Tintino, hoje com 22 anos, formado em geologia pela Universidade de São Paulo e hoje mestrando na mesma instituição, estudou como bolsista do Bandeirantes entre os anos de 2014 e 2019, também no programa Ismart. Naquela época, ele se identificava como um garoto gay – hoje, como não binário. “Sempre me senti acolhido nas questões de gênero e sexualidade por parte dos professores”, recorda. “Mas sinto que a missão do colégio, a instituição propriamente dita, sempre foi diferente da dos professores, que vejo como mais humanitária. O Pedro [Santos] ter sido agredido no elevador do colégio, por exemplo, local com câmeras, mostra uma omissão gigante e um medo de afrontar os pais dos alunos pagantes.”
Na época em que Tintino entrou no Bandeirantes, havia salas exclusivas para alunos bolsistas. Hoje em dia, o colégio os distribuiu entre todas as salas, de forma a ter uma maior integração entre os alunos.
Tintino viveu em sua época uma contradição. Conta que, se na escola pública onde estudava antes da bolsa era considerado branco e privilegiado (“eu tinha colegas que iam à escola para fazer refeição”), no colégio de elite passou a ser visto como negro e pobre. “Até por ser comunicativo e ter personalidade forte, consegui me impor. Tenho amigos bolsistas e não bolsistas.”
O Colégio Bandeirantes foi fundado em 1934 e, desde então, é conhecido por ter um programa pedagógico bastante rigoroso. Prestigiado, promoveu um debate presidencial em 1989 e, em 2016, foi palco de um debate entre os candidatos à Prefeitura de São Paulo, transmitido pelo YouTube. Por suas salas já passaram alunos como o ex-governador Alberto Goldman (1937-2019), o atual ministro da Fazenda Fernando Haddad e a senadora Mara Gabrilli. São 2,8 mil alunos. No ensino médio, há treze salas para cada ano, com quarenta alunos em cada uma.
O bullying é um desafio para qualquer colégio, seja pequeno ou grande, privado ou público. O caso de Santos repercutiu nas redes sociais depois que seu tio Bruno (que pediu para ter apenas o primeiro nome divulgado), do ramo da publicidade, publicou no Instagram: “Pedro era um menino de 14 anos, negro, periférico e gay, que sucumbiu. Não suportou as “brincadeiras” dos “colegas” (…). Perdemos o Pedro para o bullying, para a homofobia e, principalmente, para o descaso do colégio”, escreveu. “Eu decidi fazer essa publicação porque, caso contrário, esse assunto jamais seria discutido entre pais, alunos e sociedade civil”, disse Bruno à piauí, em um café na Vila Leopoldina.
O post do tio repercutiu nas redes sociais. Na última segunda-feira, um grupo de jovens fez uma manifestação em frente à escola, com cartazes que tinham frases como “A minha sexualidade não me define”, “Ciência diante do racismo é cumplicidade”, “O racismo da escravidão é o mesmo de hoje” e “A sua negligência custou uma vida”.
Procurado pela reportagem, o Bandeirantes disse que não soube que o aluno reclamou de bullying ao Ismart — uma informação confrontada pela diretora-executiva do instituto, que garante ter notificado a escola. “Não fomos notificados pelo Ismart da ocorrência de uma suposta situação de bullying”, escreveu a escola em comunicado. Indagada se suspendeu algum praticamente de bullying, a escola não respondeu a pergunta.
Em outro trecho do comunicado, o Bandeirantes disse: “Em maio deste ano, Pedro relatou à orientadora uma situação de provocação pontual. Imediatamente, ele recebeu acolhimento e apoio. Foi realizado um trabalho educativo com os alunos envolvidos, passando a ser acompanhados continuamente. Não houve nenhum indício de recorrência de provocações.” A escola, indagada pela piauí, não fez qualquer menção sobre bullying dentro de sala de aula.
Bruno, o tio de Santos, foi ao Instituto Médico Legal reconhecer o corpo. Quando recebeu os pertences do sobrinho, sentiu falta do celular do menino. “Uma pessoa me disse que devia ter sido roubado. O item também não era citado no boletim de ocorrência. Mas achei estranho, pois me deram o cartão magnético do Bandeirantes, que ficava dentro da capinha do celular do Pedro”, recorda. O irmão mais velho viu pelo localizador que o celular do adolescente estava dentro do Instituto de Criminalística da Polícia Civil, no bairro do Butantã. Procurada pela piauí, a Secretaria de Segurança Pública respondeu por meio de nota:
“O caso mencionado é investigado por meio de um inquérito policial instaurado pelo 23º Distrito Policial. O celular da vítima foi apreendido e encaminhado para perícia no Instituto de Criminalística (IC), onde os laudos estão em andamento. Outras diligências são realizadas para o total esclarecimento dos fatos.”
Ter acesso às mensagens, aos aplicativos e outros arquivos do aparelho do garoto pode ajudar a descobrir se ele também foi vítima de cyberbullying.
A prática de bullying se estabelece quando uma pessoa é alvo de provocação e agressão constantes, diferente de um episódio pontual. “No bullying presencial, as vítimas têm características que mostram uma falta de defesa. Ela é a escolhida. O bullying não é praticado com qualquer um e necessariamente requer plateia”, explica Maria Isabel da Silva Leme, professora do Instituto de Psicologia da USP e especializada no assunto. “O bullying é uma grande agressão e seus praticantes são agressores. Eles sabem que estão errados e querem se firmar às custas dos outros.”
Não existe maneira fácil de lidar com o bullying, diz Leme, mas o primeiro passo é dar a devida gravidade a esse comportamento. Ela recomenda também falar em sala de aula sobre respeito a diferenças e envolver as famílias. Por fim, enfatiza que pais e docentes fiquem atentos a sinais, como perda de apetite e desejo repentino de faltar da escola, levando em conta que as agressões nem sempre são fáceis de detectar (quando acontecem pela internet, por exemplo).
Pedro Henrique Oliveira dos Santos tinha o hábito de ler muitos livros e mangás ao mesmo tempo. As suas leituras mais recentes foram Capitães de Areia, de Jorge Amado, Ataque aos Titãs, do mangaká Hajime Isayama, e Aimô: Uma viagem pelo nundos dos orixás, de Reginaldo Prandi. Ele sonhava em fazer faculdade fora do Brasil. Tinha o hábito de escrever anotações, passar marca-texto em frases e colocar post-it nas páginas de tudo que lia. Seus cadernos eram de um capricho notável. Na infância, aprendeu a tocar violoncelo em um projeto social, e o instrumento se tornou sua outra grande paixão, ao lado da literatura.
O Colégio Bandeirantes enviou uma coroa de flores para seu velório, e nunca mais entrou em contato com seus pais. Duas fotos de Santos estão no site da escola, publicadas em junho deste ano, como forma de mostrar valorização de seus alunos LGBTQIA+. Nas duas, ele aparece sorrindo.
A sua mãe ainda não teve coragem de escutar toda a mensagem de áudio, de 6 minutos e 12 segundos, que o seu filho enviou aos colegas de classe. “Não tenho forças.”
Se você estiver passando por um momento difícil, procure o Centro de Valorização da Vida (CVV), que oferece atendimento gratuito e sigiloso por telefone (no número 188), por e-mail e por chat, 24 horas por dia, ou presencialmente (confira os endereços no site da entidade).