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    Mártires Indígenas, por Denilson Baniwa

anais da floresta

Sumiço e selvageria política

O que aconteceu com o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira?

João Biehl | 14 jun 2022_16h24
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Tradução: Rosiane Correia de Freitas e Rogerio Galindo

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Ao ouvir a notícia alarmante de que o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira desapareceram numa área remota da Floresta Amazônica no domingo, 5 de junho, reabri imediatamente a mensagem de WhatsApp que Dom havia me enviado apenas três semanas antes. Estávamos em comunicação desde o outono de 2019, quando o Brazil LAB, uma iniciativa interdisciplinar da Universidade de Princeton, organizou uma conferência explorando uma nova visão para salvaguardar a Amazônia para o Brasil e para o planeta. É preciso lembrar sempre que, nos últimos cinquenta anos, 20% da Floresta Tropical brasileira já foram perdidos para a extração ilegal de madeira, para a pecuária e para megaincêndios. Dom ficou intrigado com o inovador modelo climático que meus colegas Stephen Pacala e Elena Shevliakova desenvolveram, simulando o que aconteceria com o clima do mundo até 2050 caso a Amazônia fosse desmatada completamente.

Nesse cenário terrível, a eliminação da Floresta Tropical faria com que a temperatura da região subisse até 4,5 graus Celsius, tornando-a praticamente inabitável, alterando drasticamente os padrões de chuva, com consequências catastróficas para a agricultura e a produção de energia. Seria impossível impedir o genocídio das formas de vida humanas e não humanas incrivelmente ricas que compõem a floresta e que são geradas a partir dela. Sem a Amazônia, as temperaturas médias em todo o mundo subiriam um quarto de grau Celsius até 2050, tornando impossível alcançar as aspirações do Acordo de Paris.

Dom queria partir dessa estrutura no livro que estava começando a escrever – Como Salvar a Amazônia – com uma bolsa que havia recebido da Alicia Patterson Foundation. Ele também adorou a ideia de um plano ousado que começamos a articular com colegas que lideram a iniciativa Amazônia 2030, focado em soluções com base na natureza e em colaborações multissetoriais.

Na última vez que Dom e eu nos comunicamos, em 16 de maio, ele queria saber sobre a segunda conferência “Amazonian Leapfrogging”, que tínhamos acabado de realizar, em Princeton. “Eu estava nas profundezas da Floresta Amazônica quando ela aconteceu, mas gostaria de assistir on-line. Espero que tenha sido um grande sucesso.” Imediatamente enviei a ele um link com a gravação da conferência.

Sempre conectado e curioso, Dom considerava um “sucesso” identificar novas evidências que pudessem ser úteis no combate ao desmatamento, às mudanças climáticas e à desigualdade social. Um desafio ainda mais premente agora que certas partes da Floresta Tropical já estão experimentando o que a cientista brasileira Marina Hirota chama de “pontos de inflexão heterogêneos ”, que inclusive “desestabilizam as temperaturas na Flórida e em países como a Inglaterra e até a Finlândia e a Noruega”.

De fato, ambientalistas, acadêmicos e ativistas brasileiros reunidos em Princeton no início de maio discutiram medidas concretas para uma política de desmatamento zero. Somaram-se a elas propostas para aumentar a produtividade das áreas desmatadas e expandir iniciativas agroflorestais e de reflorestamento, com um olhar especial para a melhoria da precária infraestrutura e os meios de subsistência de cerca de 28 milhões de amazônidas. No entanto, esse salto visionário depende fundamentalmente do campo político. E sob a presidência de Jair Bolsonaro, a Amazônia e seus protetores não têm futuro.

Quando reli as últimas mensagens de Dom, o que me veio à mente de forma vívida e trágica foram as terríveis e violentas realidades que nossos colegas brasileiros relataram durante a conferência. Cerca de 30% do território amazônico são terras públicas não destinadas e se tornaram um paraíso para o desmatamento e a grilagem. O crime ambiental e as economias ilícitas estão interligados. A região onde Dom e Bruno desapareceram é conhecida por ser controlada pelo crime organizado. Como nos lembrou Ilona Szabó, diretora do Instituto Igarapé, “tráfico de drogas, fraudes, corrupção, lavagem de dinheiro e crimes violentos são a realidade cotidiana de grandes porções da Amazônia agora” – tudo isso tendo como pano de fundo um Estado intencionalmente retraído e a ilegalidade generalizada. Sem falar na ameaça à vida dos povos indígenas, que são quem efetivamente mantém a floresta em pé.

O sumiço de Dom e Bruno encarna essas realidades brutais e criminosas intensificadas sob o modus operandi neoextrativista e anti-indígena da gestão de Bolsonaro. O “pacote da destruição” proposto pelo governo encorajou atividades de mineração ilegal em terras indígenas, interrompeu a criação de novas áreas de conservação, desmantelou sistemas de vigilância do uso da terra e enfraqueceu os órgãos de comando e controle. Justamente em um contexto de crescente armamento da sociedade brasileira e de normalização da violência das milícias.

A reunião por muito tempo adiada entre o presidente Bolsonaro e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, finalmente aconteceu em 9 de junho, em Los Angeles, na IX Cúpula das Américas. Tragicamente, o encontro diplomático foi emoldurado pelo desaparecimento de Dom e Bruno no Vale do Javari, o maior refúgio de grupos indígenas auto-isolados, sob crescente ameaça.

No início daquela semana, o presidente brasileiro disse à mídia que os dois homens deveriam estar cientes e não ter se aventurado em “região completamente selvagem”. Enquanto Bolsonaro se gabava, dizendo a Biden que ele estava, de fato, protegendo a Floresta Tropical, foi impossível não lembrar a selvageria de seu governo, com seu total desrespeito à verdade, aos direitos humanos e ao Estado de Direito. Um governo que é cúmplice das muitas realidades fora de controle que sustentam a situação macabra em que Dom e Bruno se encontram.

Biden aquiesceu e elogiou desajeitadamente as políticas de conservação de Bolsonaro. Por mais absurdo que esse movimento diplomático tenha sido, o mais impactante foi o não reconhecimento de Biden das realidades brutais encarnadas pelo desaparecimento de Dom e Bruno. Essa omissão no discurso do líder mais poderoso do mundo não é trivial: as mudanças climáticas e a Amazônia em particular infelizmente foram relegadas a uma questão secundária nas prioridades do governo de Biden, resultando em uma pressão internacional muito menor contra as ações nefastas do governo Bolsonaro sobre o meio ambiente e a violência na região. Não é à toa que Bolsonaro, um apoiador despudorado e, de certa forma, um imitador de Donald Trump, agora afirma que o encontro com Biden foi “fantástico”.

 

Em sua mensagem de 16 de maio, Dom acrescentou que seu livro amazônico estava “evoluindo bem. Viajei muito no ano passado”.

Dom sabia que tinha que ouvir os guardiões e as guardiãs da floresta, aqueles e aquelas cujo trabalho e cuja vida na floresta são, em geral, considerados sem valor pelos poderosos do Brasil e do mundo. Ele sabia de onde vem o verdadeiro conhecimento sobre como salvar a Amazônia e como redirecionar o campo político. Conforme bem observou a ativista indígena brasileira Txai Suruí em seu discurso de abertura da COP-26, em Glasgow, os povos indígenas e as comunidades locais não estão apenas na linha de frente da emergência climática, eles estão “ouvindo a terra” e “devem estar no centro das decisões que estão sendo tomadas”.

Dom é um contador de histórias e Bruno é um aliado de que as comunidades amazônicas ameaçadas precisam para “impedir que a floresta se torne uma gigantesca fazenda” (palavras de Dom).

Eu me pergunto se Dom teve a chance de assistir à gravação da conferência “Amazonian Leapfrogging” que enviei a ele. Se o fez, imagino que as palavras da líder indígena Juma Xipaia devem tê-lo comovido e lhe encorajado a seguir em sua missão de procurar a verdade: “Estamos defendendo a floresta com nossos corpos, com nossos filhos em nossos braços, sob violência. Os povos da floresta precisam de segurança para que possamos continuar sendo os guardiões da floresta, prestando um serviço não só à Amazônia, mas ao mundo.”

A violência extrema que tem repetidamente atacado os povos indígenas está agora engolindo jornalistas e funcionários públicos engajados, como Dom e Bruno, que colocam o melhor de si a serviço da salvaguarda da Amazônia. Neste momento, é fundamental que o presidente Biden pressione Bolsonaro a solucionar esse sumiço criminoso, além de proteger a Amazônia e seus povos. É preciso compreender que o futuro da Floresta Tropical está na eleição presidencial de outubro, quando os brasileiros que prezam a Amazônia devem votar retumbantemente pela saída de Bolsonaro do comando do país.

O autor agradece a Miqueias Mugge, Rodrigo Simon, Adriana Petryna e Denilson Baniwa. 

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