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Super-heróis em Lampedusa

Enquanto assistia no cinema lotado a "Capitão América: Guerra Civil", imagens do documentário "Fogo no mar" misturavam-se às façanhas mirabolantes dos super-heróis

Eduardo Escorel | 05 maio 2016_17h21
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Enquanto assistia no cinema lotado a Capitão América: Guerra Civil, imagens do documentário Fogo no mar misturavam-se às façanhas mirabolantes dos super-heróis. Vistos no filme de Gianfranco Rosi pela segunda vez, na véspera, os barcos apinhados de refugiados vindos do norte da África, fazendo a travessia do Mediterrâneo, fundiam-se com as sucessivas explosões e os tiroteios ininterruptos da super-produção dos Estúdios Marvel, suscitando uma fantasia mirabolante – em vez da luta fratricida que entretém a criançada mundo afora, o Capitão América, os Vingadores e o Homem-Aranha, além do Homem de Ferro, poderiam ser deslocados para a ilha de Lampedusa, no sul da Itália, e se apresentarem como servidores voluntários ao Centro de Recepção de Imigrantes. Em minutos, graças às trucagens propiciadas pela imagem digital e a computação gráfica, poderiam acabar de uma vez com a tragédia vivida há anos por homens, mulheres e crianças líbios, tunisianos, sudaneses, eritreus e de outras nacionalidades, na tentativa desesperada de chegarem à Europa.

Pensando bem, porém, nem assim seria resolvido o drama das ondas contemporâneas de refugiados. A premissa de Capitão América: Guerra Civil é que em nome de causas consideradas justas, os super-heróis provocam destruições e mortes de inocentes – os chamados danos colaterais. Se o Capitão América e seus colegas baixassem em Lampedusa acabariam agravando a situação. Melhor mesmo deixar a situação aos cuidados da dedicada Guarda Costeira italiana e do médico do ambulatório, o super-herói Pietro Bartólo, vistos atuando em Fogo no mar.

Na fantasia ficcional delirante originada nas histórias em quadrinhos, além do que é projetado na tela, está contido, em segundo plano, um princípio de realidade, presente na agenda política atual dos Estados Unidos – mortes de inocentes resultantes de ações militares com uso de drones. Dessa forma, Capitão América: Guerra Civil concilia, de maneira direta, a abordagem de tema contemporâneo de tamanha gravidade com entretenimento de massa em escala mundial.

Difícil saber até que ponto esse realismo subjacente é sequer percebido e contribui de alguma forma para o sucesso comercial de Capitão América: Guerra Civil, fruto sem dúvida não só de um orçamento de produção milionário, mas também de alta competência narrativa e expertise na feitura de efeitos especiais. Antes de ser lançado amanhã, 6 de maio, nos Estados Unidos, Capitão América: Guerra Civil já rendeu 225 milhões de dólares em 37 países. Outros 200 milhões de renda são previstos até domingo (8 de maio), no primeiro fim de semana de exibição na terra natal dos super-heróis.

Enquanto isso, Fogo no mar, depois de receber em fevereiro o Urso de Ouro, prêmio dado ao melhor filme no 66º Festival de Berlim, e ser exibido na abertura do É Tudo Verdade, em abril, é lançado discretamente, em 5 salas, duas no Rio e três em São Paulo. O filme de Rosi mereceria, porém, maior atenção do que vem recebendo. Afinal, nas palavras dele, a crise atual dos refugiados na Europa “é talvez depois do Holocausto a maior tragédia que já vimos na Europa”.

Filmando e fazendo o som sozinho, Rosi mantém sua câmera discreta, a meia distância dos refugiados, praticamente sem estabelecer interação com eles. Diante da grandiosidade do drama à sua frente, restringe-se a observar, evitando com habilidade a tentação de fazer uma reportagem. A diferença, segundo Rosi, é que ele chegou a Lampedusa em um momento muito tranquilo, “antes da tragédia”, enquanto um jornalista “só filmaria depois da tragédia, depois de ela se tornar gritante”

Na verdade, é o cotidiano em Lampedusa, muitas vezes sem relação explícita com os refugiados, que domina Fogo no mar, resultante do ano e meio que Rosi passou na ilha para fazer o filme. Em destaque as peripécias de Samuele, menino de 12 anos, filho de pescador, entretido com seu estilingue e fazendo seguidamente a mímica de quem dá tiros de revólver.

Samuele tem deficiência visual em um dos olhos. Por recomendação médica passa a usar, a contragosto, um tapa-olho. Não para cobrir o de visão reduzida, como a intuição leiga poderia supor, mas para tapar o olho com o qual enxerga bem. O médico explica que é preciso exercitar o olho deficiente.

Exercitar nossa visão deficiente. Não é isso que Fogo no mar propõe? Capitão América: Guerra Civil e tantas outras grandes produções do gênero fazem, ao contrário, o possível e o impossível para tapar nossos olhos combalidos.

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