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Talento, inteligência e sensibilidade

Alguns achados na volta do público às salas de cinema

Eduardo Escorel | 10 nov 2021_09h01
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Bob Cuspe, Nós Não Gostamos De Gente (2021), de Cesar Cabral, exibido na recente 45ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, estreia amanhã (11/11) nos cinemas, após ter recebido o Prêmio Contracampo, em junho, no Festival Internacional do Filme de Animação de Annecy, no Norte dos Alpes franceses.

Na abertura, a primeira legenda do filme informa que o projeto foi “Selecionado pelo Programa Petrobras Cultural 2012”. 2012! Levou, portanto, nove anos entre receber esse apoio e chegar às telas do circuito exibidor. Caso típico de algumas produções brasileiras em que ter sido selecionado em um edital pode se tornar mais um martírio do que um prêmio – ninguém merece levar tanto tempo para concluir um filme. 

Cena do filme ‘Bob Cuspe, Nós Não Gostamos De Gente’ – Foto: Divulgação

 

A legenda seguinte esclarece que Bob Cuspe, Nós Não Gostamos De Gente é baseado “em fatos reais da obra fictícia do cartunista Angeli”. Essa ambiguidade aguça o interesse pelo que virá – inspirada em eventos “reais” de sua criação ficcional, a história de um artista em crise, chamado de “velho cartunista”.

Com talento narrativo e perícia técnica, Cabral e sua equipe articulam requisitos variados do cinema de animação, lançando mão de vozes reais e bonecos gravados em stop motion, além de ambientes internos e externos, alguns realistas, outros distópicos.

Bob Cuspe, Nós Não Gostamos De Gente é um exercício de inteligência bem-humorado sem qualquer viés biográfico. Em vez disso, transforma Angeli em personagem, interagindo com suas crias que acabam ganhando vida própria – o punk esverdeado Bob Cuspe, a dupla de irmãos Kowalski e os inúmeros Elton Johns, entre outros. O cartunista acha, porém, “que personagens têm que morrer” e declara saber matar. “Eu mato bem”, afirma. Talvez por isso eles se revoltam contra seu criador entediado, autodefinido, no final, como “o cara que já passou por um monte de coisas e já não tem mais saco para o resto”.

Cena do filme ‘Curral’ – Foto: Divulgação

 

Outra estreia amanhã (11/11) é a de Curral (2020), em que Marcelo Brennand retoma, agora em versão ficcional, o tema de seu documentário Porta a Porta – as eleições municipais em Gravatá, Pernambuco –, gravado em 2008 e lançado em 2010. As gravações de Curral começaram, por sua vez, no dia seguinte ao segundo turno da fatídica eleição de 2018 sob o impacto do seu desfecho, e o filme estreou ano passado, na 44ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo. Seguiram-se premiações em outros festivais: Melhor Contribuição Técnico-Artística e Melhor Ator (Thomás Aquino), em 2020, no 46º Festival de Cinema Ibero-Americano de Huelva, na Espanha; Melhor Longa-Metragem de Ficção no Festival de Cinema do Brooklyn, em Nova York, este ano. Vítima da pandemia, como tantos filmes brasileiros, Curral chega só agora, com enorme atraso, às telas dos cinemas, trazendo um flagrante da prática política baseada na compra de votos e troca de favores, predominante não apenas no interior do Nordeste, mas também em Brasília e, de modo geral, país afora. Com forte viés documental, contando inclusive com atuação de moradoras e moradores de Gravatá, capazes de atuar e improvisar diálogos iluminadores, Curral completa e aprofunda Porta a Porta. A íntegra da conversa que tivemos domingo passado (7/11) sobre Curral, com Marcelo Brennand (diretor), Tomás Aquino (ator) e Carla Salle (atriz), no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena está disponível aqui.

Também exibido na 45ª Mostra, Urubus (2020), de Claudio Borrelli, recebeu o Prêmio do Público de Melhor Ficção, já tendo sido coberto de louros, no ano passado, ao ser considerado o melhor filme e melhor diretor em pelo menos quatro festivais europeus. À parte o costumeiro trabalho excepcional de preparação de elenco, devido a Fátima Toledo, a fotografia de Ted Abel e a ambientação documental da Pauliceia, Urubus sofre de males agudos, entre eles a falta total de senso de medida, prolongando-se indefinidamente durante repetitivos 113’. Inspirado em fatos reais à primeira vista dotados de potencial dramático – a invasão da Bienal do Vazio por pichadores, em 2008, e o interesse de curadores estrangeiros que levou a pichação às bienais de Berlim e Veneza –, o roteiro escrito a oito mãos por Mercedes Garneiro, Djan Ivson, Vera Egito e Borrelli não consegue dar conta das diferentes veredas que abre, levando a direção a derrapar no terço final do filme. Ao privilegiar o que menos interessa – a banal história de amor entre o pichador Trinchas (Gustavo Garcez) e a mestranda Valéria (Bella Camero) – o filme desanda e perde o rumo que, de início, parecia promissor.

Marcante, de fato, entre os poucos filmes a que assisti na 45ª Mostra, é Pequena Palestina, Diário de um Cerco (2021), documentário escrito, filmado e dirigido por Abdallah Al-Khatib. Para Roberto Gervitz foi o “mais contundente” que viu e recebeu Menção Honrosa do Júri Internacional da Competição Novos Diretores, formado por Beatriz Seigner, Carla Caffé e Joel Zito Araújo (infelizmente não assisti a Clara Sola, de Nathalie Álvarez Mesén, premiado como melhor filme).

Pequena Palestina vem acumulando merecida consagração crítica desde que foi exibido, em abril, no Visions du Réel, mostra do Festival Internacional de Cinema de Nyon, e dois meses depois na Association for the Diffusion of Independent Cinema – ACID, em Cannes.

Cena do filme ‘Pequena Palestina’ – Foto: Divulgação

 

Entre 2011 e 2015, Al-Khatib gravou um diário com alguns amigos e reuniu cerca de 500 horas de material, mostrando o cotidiano dos habitantes de Yarmouk, campo de refugiados palestinos em Damasco, na Síria, onde nasceu e vivia com sua mãe, enfermeira dedicada a cuidar de idosos. Nesse período, sua prioridade diária era “encontrar comida para sua família, achar uma maneira que meus entes queridos e eu pudéssemos ter o suficiente para comer”. Com a guerra civil iniciada em 2011, o regime de Bashar Al-Assad passou a considerar Yarmouk, formado em 1957, um refúgio de rebeldes e resistentes e, a partir de 2013, sitiou o campo, que foi sendo privado de alimentos, remédios e eletricidade.

Para Al-Khatib “era muito importante”, conforme disse em entrevista gravada no Visions du Réel, “retratar as pessoas com toda sua dignidade e revelar os vários meios que usam para mostrar que estão resistindo à situação em que estão vivendo durante o cerco”.

Próximo do final, meninos correm em direção à câmera e dizem quais são seus sonhos (“Sonho com um sanduíche de frango, mas também que o meu irmão possa voltar à vida”, diz um deles). Destaque unânime vem sendo dado a essa presença sorridente de crianças e, em especial, à sequência seguinte, a penúltima do filme, em que a câmera se aproxima de Tasnim, menina concentrada na tarefa de colher rente ao chão de terra folhas delicadas de verbena. Cercada de prédios em ruínas, ela comenta, sem olhar para a câmera: “Isto é tudo que temos para comer. Eu sonho com pão.” A cena está fadada a ser incluída entre as sequências antológicas do cinema documentário.

Registrada de improviso, a conversa se estende. Serena, sem se perturbar com os mísseis que atingem prédios próximos, Tasnim comenta que as crianças “trabalham até a exaustão… Agora envelhecem e estão exaustas”. Conforme o crítico do site heyuguys escreveu, de todas as imagens do filme, a de Tasnim “talvez seja a que ficará por mais tempo comigo”.

Os créditos finais de Pequena Palestina, Diário de um Cerco informam que “181 moradores de Yarmouk morreram de fome durante o cerco”. Em 2015, o grupo Estado Islâmico assumiu o controle do campo de refugiados e expulsou Al-Khatib. Três anos depois, quando aviões russos e o exército sírio expulsaram, por sua vez, o Estado Islâmico, destruíram cerca de 80% da área total. Al-Khatib e sua mãe moram atualmente na Alemanha, mas ela sonha em voltar ao campo de Yarmouk, “assim seu antigo desejo de voltar à Palestina se tornaria realidade”.

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