A Cidade e as Serras é um romance clássico do escritor português Eça de Queirós, publicado em 1901, que trata da relação de Jacinto com a moderna e civilizada Paris e a pacata e interiorana Tormes. De maneira resumida (e sem entrar em detalhes), o livro conta a história de Jacinto, um descendente de portugueses que nasce e cresce em Paris. O romance, no entanto, é narrado pelo seu melhor amigo, Zé Fernandes. Jacinto teve uma infância abastada e privilegiada no meio da capital francesa, onde desenvolveu um amor pela civilização e pelo progresso.
A cidade, porém, não parece fazer bem a Jacinto. A narrativa tem uma reviravolta quando ele recebe uma carta de Tormes, contando sobre uma tempestade que destruiu a igreja da sua propriedade onde seus antigos parentes estavam enterrados. A partir daí, Jacinto resolve ir às serras para a inauguração da igreja e tudo muda.
A humanidade, em 2020, recebeu a sua “carta de Tormes” quando a pandemia do novo coronavírus (a Covid-19) forçou uma mudança de hábitos planetária e sem precedentes. Aproximadamente 4 bilhões de pessoas em todo o mundo (ou mais da metade da população mundial) estão submetidas a alguma medida de isolamento social. A estratégia para conter o avanço do novo coronavírus foi o caminho escolhido por mais de noventa países. Algo substantivo, superlativo e assustador. Vivemos sob tensão, incerteza e desorientados sobre o futuro.
A essa altura, talvez a maioria da opinião pública já tenha se convencido que teremos “um novo normal”. Esse tal “novo normal” abre um oceano de especulações sobre os novos hábitos de habitação, consumo, viagens, comunicação e trabalho. Diante dessa inundação de adaptações que estão por vir, quero destacar, nas próximas linhas, as potenciais ondas de mudança no trabalho, ou o crescimento do “teletrabalho” ou home office (trabalho de casa). E principalmente as consequências da disseminação do “teletrabalho” no mundo e no Brasil.
A hipótese central é simples. Um enorme contingente de atividades não voltará para seus respectivos escritórios e locais físicos de trabalho. Ou se voltar, certamente retornará muito diferente.
Para começar, o choque do distanciamento social na força de trabalho americana foi brutal. Antes da pandemia, segundo estudo da Global Work Place Analytics, 4% dos trabalhadores norte-americanos trabalhavam regularmente de casa (ou em home office). Outro estudo, esse do MIT, mostrou que, nos Estados Unidos, 34% dos trabalhadores, que antes da pandemia trabalhavam fora, aderiram ao trabalho remoto residencial. Para concluir, os professores de Chicago também demonstraram que 37% das atividades laborais no país podem ser realizadas totalmente via “teletrabalho” e em casa (com enormes variações entre cidades e indústrias). Como sinal desses tempos, a palavra home office rompeu todas as estatísticas de crescimento nas buscas do Google e está entre as palavras mais procuradas durante a pandemia.
Um relatório da PWC, baseado nas respostas de um questionário com líderes das maiores companhias americanas, trouxe um resultado que corrobora a tendência. Das respondentes, 49% afirmaram que irão implementar o “teletrabalho” como opção permanente para os colaboradores. Seguramente as mais diversas empresas espalhadas pelo mundo, já afetadas economicamente pela crise, começaram a fazer conta e não perderão a oportunidade de cortar permanentemente diversas despesas diretas geradas pelas instalações físicas.
No Brasil, uma pesquisa nacional telefônica de 1.667 entrevistas (feita com exclusividade para essa edição da piauí) e realizada pelo IDEIA Big Data no final de abril traz elementos adicionais para suportar essa hipótese. No período pré-coronavírus, 12% responderam que já trabalhavam em home office. No momento da instauração da crise esse patamar mudou: mais 15% passaram a trabalhar em casa, totalizando assim 27% de pessoas em home office.
Ao serem indagados sobre o período pós-quarentena, 28% desejam trabalhar somente de casa (no caso de mulheres e pessoas com renda de até um salário mínimo, esse número atinge 34%), outros 28% vislumbram trabalhar mais dias em casa do que na empresa (destaque para os entrevistados com ensino superior, 33% querem combinar dias de trabalho em casa e na empresa). E, para completar, somente 16% desejam trabalhar unicamente na empresa. Como fator positivo, a pesquisa sinalizou que 42% preferem trabalhar de casa porque ficam mais próximos da família.
Todavia, essa transição de escritórios para casa não será trivial e os efeitos em produtividade ainda são nebulosos. O mesmo estudo da PWC mostrou que metade das empresas espera um encolhimento de produtividade (justificado pela falta de condições ideais no domicílio). Na pesquisa brasileira do IDEIA Big Data, 43% topariam essa migração somente se todos os benefícios fossem mantidos, e 1/3 precisaria de treinamento adequado e equipamentos cedidos pela empresa. Em outra pergunta, questionados sobre os pontos negativos do home office, 25% dizem que sentirão muita falta das pessoas e do ambiente de trabalho. Ou seja, essa migração ainda está longe das condições ideais.
Nesse contexto, são escassos os dados sobre os impactos dessa mudança na produtividade de diferentes empresas das mais variadas indústrias. A sondagem apresentou números curiosos: 41% dizem que a produtividade caiu trabalhando em casa, contra 21% que pontuam ter aumentado e 30% que dizem produzir do mesmo modo que antes.
Algumas externalidades já podem ser sentidas nos espaços e na arquitetura do lar. Uma grande empresa de venda digital de móveis (a americana Storey Design) notou um aumento significativo na demanda por acessórios de escritório para residências. Criou-se uma expressão “a volta dos PC’s” (computadores pessoais que ficaram famosos nos anos 1990 com a Microsoft de Bill Gates) para demonstrar a busca por criar um canto na casa especifico para o “teletrabalho”. No Brasil, a pesquisa mostrou que 33% dos entrevistados separaram um espaço exclusivo em casa para isso.
A Microsoft apurou que o “teletrabalho” inspirou os usuários a dobrarem o uso de software de vídeos de conversa. O futuro pós-pandemia colocará uma pressão maior nas telecomunicações globais. A qualidade e o alcance das telecomunicações será tema de grande preocupação para essa nova realidade.
Diante disso, está evidente que os escritórios tradicionais como conhecemos morrerão. Nos Estados Unidos, a nova expressão cunhada por especialistas é o “Healthcare Design” (traduzido informalmente como design de saúde ou design sanitário). As novas configurações vão privilegiar distanciamentos, divisórias entre mesas e maior limpeza de áreas comuns. Serão estimulados rodízios de horários para evitar aglomerações. A sincronicidade de entrada e saída de pessoas tende a se dissolver bastante. Isso atingirá também o transporte público e a mobilidade urbana.
Além disso, tecnologias de uso de voz e automação serão extremamente necessárias. Abrir e fechar portas por tecnologia de voz evitando toque em botões, aparelhos ou maçanetas será uma grande arma de prevenção e higiene. A “Alexa” da Amazon, a “Siri” da Apple e outras da mesma linhagem têm tudo para assumir o papel de administradoras globais de escritórios.
Concordando que teremos mais gente no “teletrabalho” e menos nos escritórios, questionamos também a necessidade de residir em grandes metrópoles.
Retomando o romance a A Cidade e as Serras, o autor apresenta o personagem Jacinto, inicialmente um tipo cheio de fortuna e felicidade, apelidado como Príncipe da Grã Ventura pela narrativa. Porém a vida em Paris se mostra cheia de aparências e com poucos significados. Por isso, Jacinto vai ser tornando deprimido e começa a se interessar pelo pessimismo. Essa atitude serve como justificativa para explicar o mal-estar de Jacinto, que abandona suas atividades para ficar em casa. O panorama da cidade fica completo quando Jacinto e Zé Fernandes têm uma visão de cima de um morro de Paris. A cidade é cinza, sua periferia é enorme e sem vida, o avanço da civilização parece trazer mais angústia que felicidade.
Em pesquisas qualitativas iniciais que estamos realizando na Universidade George Washington já percebemos que esse sentimento de mais angústia (que felicidade) habitará o imaginário da população das grandes metrópoles (principalmente as mais fortemente atingidas pela Covid-19). Moradores de Roma, Madri, Londres, Nova York, São Paulo e até mesmo a Paris (de Jacinto) já se questionam (diante de tudo) sobre a relevância de seguir morando e pagando caro para estar em um grande centro. O prêmio atualmente dado a quem mora em um local “próximo a grandes oportunidades de estudo, trabalho e renda” vai diminuir, impactando os preços de imóveis e aluguéis. O componente “risco pandemia” será introduzido na taxa de desconto de viver em uma cidade com grandes concentrações de pessoas.
Uma pandemia deixou de ser um evento de filme de Hollywood para ser uma probabilidade real e ameaçadora. Vai virar “um pernilongo” na memória da humanidade. Muitos pensarão: “e se acontecer de novo? Não quero mais ficar preso em espaços caros e pequenos numa cidade grande”. Haverá uma (re-)distribuição de densidade demográfica na direção de cidades médias. Locais com menor densidade populacional mas com estruturas mínimas de comércio, lazer e tecnologia de comunicação serão um novo oásis para os seguidores do “teletrabalho”. O avanço rápido da telemedicina e da educação a distância também darão bases para essa nova ocupação demográfica.
Essa nova demografia vai criar novos polos de participação cívica e deve fortalecer o poder local. Atualmente, e como resposta ao avanço da pandemia, o poder legislativo de diversas democracias está funcionando de maneira virtual e digital. Seguem pautando, debatendo e votando temas importantes para seus países e distritos utilizando softwares de conversa. No mundo pós-pandemia, estruturas caras de poder presencial estabelecidas em Washington, Brasília, Berlim, Madri, Roma e Paris serão amplamente questionadas. Políticos e representantes eleitos para assembleias locais e nacionais devem permanecer mais tempo em suas respectivas jurisdições. Vão legislar de maneira muito mais virtual que presencial. O “teletrabalho” chegará forte para os políticos e suas equipes.
Portanto, o “teletrabalho” trará mudanças estruturantes nas relações laborais, nos preços de imóveis, na arquitetura das moradias e escritórios, na rotina das famílias, nas telecomunicações, nos agentes políticos, nas políticas públicas, no aprendizado, na medicina e na dinâmica populacional. Pessoas farão como Jacinto da obra de Eça de Queirós. Sairão de Paris e irão para Tormes. Quem sabe descobrirão o mesmo caminho do personagem lusitano: que a felicidade pós-corona pode ser encontrada bem distante da civilização. Bastará um bom acesso à internet e o mundo estará sempre aberto. Entraremos na era do “teletrabalho”, que eventualmente poderá ser conhecida como os “tempos de tecnologia e das serras”.