Folheio uma edição antiga (n. 57) de piauí. Num texto sobre o fechamento da última fábrica de máquinas de escrever do mundo, da jornalista Dorrit Harazim, fixo o olhar, sem razão consciente, numa foto de 1946 do dramaturgo americano Tennessee Williams. Ele de pijama, em frente à sua máquina, cigarro e piteira na mão, olhar pensativo. Sobre a mesa, óculos, (talvez) fósforos, xícara (café?), papéis e três livros empilhados.
Reconheço a lombada de um deles. Tiro os óculos (seis de miopia). Aproximo os olhos e… Theory of Relativity (1917), de Albert Einstein. Outra lombada: The Mysterious Universe (1930), de sir James Jeans, astrofísico britânico.
Por que o autor de sucessos como Um Bonde Chamado Desejo e Gata em Teto de Zinco Quente teria sobre sua mesa dois clássicos da divulgação científica do século passado? Primeira conclusão: foi um cenário montado para a foto, para dar ares de intelectual ao fotografado. Assunto morto.
No dia seguinte, a curiosidade persistia. Tennessee Williams (pseudônimo de Thomas Lanier Williams) teria tido formação científica? Vou ao Google Books e à Amazon. Faço buscas por “Tennessee Williams” junto com termos como physics, cosmology, Einstein ou Jeans.
Até que encontro cartas em que Williams citava os termos procurados – talvez eu tenha um tema de reportagem. Chego a vislumbrar, como historiador da física, um artigo acadêmico para um periódico estrangeiro. Algo como “A influência da física e cosmologia na obra de Tennessee Williams”. Na internet, nenhum paper nessa linha. Bom.
“Estou, no momento, muito entusiasmado por assuntos científicos”, escreveu Williams a um colega em carta de 1948. Se o ano da foto publicada em piauí está correto (1946), ciência foi assunto longevo para nosso protagonista.
“Levo comigo uma pequena biblioteca, a maioria [dos livros] sobre assuntos atômicos [sic] e astronômicos muito estimulantes”, escreveu o dramaturgo. Disse haver páginas que ele precisava ler “duas vezes, e mais duas”. Prosseguiu: “Relatividade e teoria quântica estão ainda, de algum modo, além de minha compreensão, mas estou adquirindo [com eles], no mínimo, um conceito poético. Eles [os cientistas?] parecem achar que, no presente, o universo é apenas uma abstração na mente de um matemático puro. Acho difícil reconciliar isso com minhas experiências pessoais.”
Naquele mesmo ano, Williams escreveu para outro destinatário: “Você gosta de física? Estou lendo muito sobre astrofísica e relatividade, e é como se, até agora, isso realmente exercitasse minha mente e imaginação para pensar sobre essas coisas, como espaços curvos e partículas elétricas das quais a matéria é feita, todas elas se movendo à nossa volta numa taxa de milhares de milhas a cada segundo, e sendo tudo feito delas.”
Os extratos acima são de Tennessee Williams Notebooks, de Margaret Bradham Thornton (2006). Também achei algo em Selected Letters of Tennessee Williams, vol. 2, 1945-1957, organizado por Albert J. Devlin e Nancy Marie Patterson Tischler (2004). Outra dica importante: a revista Saturday Review perguntou a Williams sobre o que ele estava lendo no momento. Na resposta, curta, o escritor citou, além de Jeans e Einstein, Explaining the Atom, do biofísico norte-americano Selig Hecht.
Cultura e relatividade
A relatividade de Einstein – ou teoria da gravitação de Einstein, nome que a tornaria bem menos misteriosa – foi publicada em 1916. Com sua comprovação histórica, por meio de um eclipse solar observado em 1919 principalmente em Sobral (sim, no Ceará), o físico de origem alemã tornou-se celebridade internacional.
A partir da década de 1920, artistas passaram a se interessar pela relatividade e a digeri-la a seu modo. A ‘gravidade’ passou a ser trabalhada por escultores (os móbiles de Alexander Calder são caso emblemático). Pintores (Kandinsky, Mondrian, Chagall) criaram sob essa influência. Tempo, espaço e gravidade tornaram-se ingredientes (por vezes, subliminares) de romances (O Som e a Fúria, de William Faulkner, por exemplo). Poetas (como Archibald MacLeish e William Carlos Williams) dedicaram longos tributos a Einstein e alteraram a métrica de seus poemas. Supõe-se até que Kafka tenha lá macerado conceitos da relatividade, ao assistir, em Praga, a palestras de Einstein, ainda na década anterior. Depois da Segunda Guerra, com a física nuclear se tornando vedete, a ficção científica usou e abusou da relatividade e de Einstein.
Tudo isso está no excelentíssimo (mas, infelizmente, não traduzido) Einstein as Myth and Muse, [Einstein como mito e musa] de Alan J. Friedman e Carol C. Donley (1989). E, em forma reduzida, na pequena obra-prima Einstein and Our World [Einstein e nosso mundo], de David Cassidy (1998).
É plausível que um estilhaço tardio dessa relação entre física e arte tenha respingado em Tennessee Williams e em sua obra. Afinal, por que enfrentar um tema maçudo, lendo e relendo a mesma página, se não fosse para despejar algo em seus escritos?
Com a palavra, os estudiosos
Seleciono, com base em critérios pessoais, alguns especialistas internacionais de calibre no assunto. A primeira mensagem vai para David Kaplan, diretor teatral consagrado e fundador de um festival dedicado a peças de nosso protagonista. “Sim, astronomia é uma metáfora em Summer and Smoke [no Brasil, Verão e Fumaça ou Anjo de Pedra], de Tennessee Williams”, me escreveu Kaplan. “Te mandarei, daqui a pouco, o trecho em questão da peça”. De repente, até meu artigo científico vai tomando forma.
Recebo a resposta de Donald Spoto, biógrafo de Tennessee Williams. Pergunto se ele vê alguma influência da física ou astronomia na obra do dramaturgo. “Física e astronomia não tinham nenhum interesse para ele, tanto quanto eu saiba. Ele era escritor, não cientista”. Noutra mensagem, acrescentou: “Ele podia ser algo comparável a um curioso ou diletante nesses assuntos”.
Também aterrissou em minha caixa postal mensagem de Robert Bray, considerado ‘o’ especialista em TW, professor da Universidade Estadual do Médio Tennessee que passou uma temporada na UERJ como pesquisador visitante. “Sim, ele menciona essas disciplinas em suas cartas e cadernos de anotações, mas não conheço nenhuma discussão extensa [sobre esses temas] em suas peças ou textos de ficção. No último número do [periódico] Tennessee Williams Annual Review, publicamos peça até então inédita em que ele satiriza professores. É muito engraçada.”
E, por fim, Annette Saddik, professora de inglês e teatro da Universidade da Cidade de Nova York. “Não vejo qualquer evidência de que a física ou a astronomia tenham tido algum papel nas peças de Williams, apesar de ele se interessar por física de um ponto de vista filosófico, como outros dramaturgos modernos.” A essa altura, pensei comigo mesmo, a relação entre TW e a física havia esmaecido.
Salvação
Por que Tennessee Williams, por anos, leria sobre relatividade, teoria quântica e cosmologia? Só para falar mal de professores numa peça inédita por décadas? Só? Também me soa improvável que busque aguçar sua visão filosófica com algo tão… pesado.
Certo, meu artigo acadêmico esfumaçou-se. Posso aceitar isso. Mas uma cena – só uma – salvaria a reportagem:
Ato 2, cena 3 [Minha tradução].
John: Eu estava lendo na cama. Um físico chamado Albert Einstein. Vou apagar esta luz.
Alma: Oh, não!
John: Por que não? Você tem medo do escuro?
Alma: Sim…
John: Não ficará muito escuro. Vou abrir essas venezianas e você pode olhar para as estrelas, enquanto digo o que estou lendo. (Ele desliga a lâmpada sobre a mesa. Vai em direção à janela e faz o movimento de abrir as venezianas. Um brilho tênue, azulado, penetra o palco.) Eu estava lendo que o tempo é um dos lados de um contínuo quadridimensional no qual vivemos. Eu estava lendo que o espaço é curvo. Ele se curva sobre si mesmo, em vez de fluir indefinidamente como costumamos acreditar, e está vagando à deriva em algo que é menos que o espaço; está vagando como uma bolha em algo que é menos que o espaço…
Com a palavra, Tennessee Williams:
“[Hofmann] pinta como se ele entendesse Euclides, Galileu e Einstein, e como se sua visão incluísse a constelação de Hércules em direção à qual o Sol se move. Em seu trabalho, há um entendimento dos conceitos fundamentais de espaço e matéria e das forças dinâmicas da natureza, identificadas – mas não explicadas – pela ciência, da qual a matéria brota. É um pintor de leis físicas, com uma intuição espiritual. Sua arte é um sistema de coordenadas na qual se sugerem o infinito e a causalidade além da influência do acaso.
Agora, no início de uma era mecânica insensata, toda a arte plástica é criada sobre a ameaça de destruição material, já que, na base do pigmento, estão os elementos explosivos do átomo. Hans Hofmann pinta como se ele pudesse observar o interior dessas partículas infinitesimais de violência que podem cindir a terra como uma laranja. Ele nos mostra a vitalidade da matéria, sua criação e sua destruição, seus anjos da escuridão e da luz. Filosoficamente, seu trabalho pertence a esta era de aterrorizante iminência, pois ele contém um trovão de luz oriundo da matéria.”
Kaplan é o cara. Não, aqueles anos de leitura não foram em vão. O artigo acadêmico volta à minha mente. Como Kaplan, tenho uma certeza: há mais sobre ciência em Tennessee Williams.
Cássio Leite Vieira é jornalista e historiador da ciência. É editor de internacional da revista Ciência Hoje e autor de Einstein, o reformulador do universo (Odysseus). No questões da ciência, publicou o post “O silêncio mais estranho”.