Em duas semanas, o Ministério da Saúde planeja iniciar um estudo para avaliar a necessidade da terceira dose de vacina contra a Covid-19. A pesquisa, patrocinada pelo Instituto D’Or, será realizada em parceria com a Universidade de Oxford para testar a intercambialidade da CoronaVac – ou seja, como ela se combina com outros imunizantes disponíveis. Os 1,2 mil voluntários do estudo, que há seis meses tomaram as duas doses da vacina produzida pela Sinovac, receberão agora uma dose de reforço de outros imunizantes. Um grupo receberá a da Janssen, outro, a da Pfizer, o terceiro receberá uma dose da AstraZeneca e o último grupo receberá mais uma dose da própria CoronaVac. Segundo o Ministério, o objetivo é produzir dados para avaliar o melhor resultado entre os voluntários e, caso necessário, implementar ainda no final deste ano a nova estratégia de vacinação, com a dose de reforço. Mas o Instituto Butantan, responsável por produzir a CoronaVac no Brasil, não foi sequer avisado sobre os planos do Ministério, que anunciou a pesquisa por meio da imprensa. O episódio transformou-se num embate público.
Para o diretor do Butantan, Dimas Covas, avisar previamente sobre os planos da pesquisa seria um gesto de gentileza e educação. O próprio instituto já havia cogitado, em junho, o uso da chamada dose booster (reforço, em inglês) diante do avanço da variante Gama. Em entrevista coletiva na última sexta-feira (30), Covas considerou “estranho” o fato de a pesquisa do Ministério da Saúde investigar a necessidade da terceira dose apenas para quem tomou a CoronaVac. “Isso me leva a ficar pensando que possa ter outra motivação por trás dessa decisão”, acrescentou. “Nós não temos esses esclarecimentos de forma oficial.” À piauí, o Ministério da Saúde informou que vai realizar o estudo porque tem evidências de que talvez seja preciso usar uma terceira dose para a CoronaVac, mas que ainda não existem os mesmos indícios em relação a outras vacinas. A piauí solicitou que o órgão encaminhasse essas evidências, mas não obteve retorno.
A coordenadora do estudo patrocinado pelo Ministério, Sue Ann Clemens, afirmou que “estudos já mostraram que a proteção [fornecida pela CoronaVac] começa a cair depois de seis meses”. Mas ainda não existem comprovações científicas de que isso seja verdadeiro, alertam outros especialistas. Análises preliminares feitas pela Sinovac mostraram apenas que o número de anticorpos circulantes cai depois de seis meses da segunda aplicação da vacina – mas isso não significa necessariamente queda na proteção. “O número de anticorpos, sozinho, não mede a capacidade de se defender do vírus”, explica Daniel Mucida, imunologista e professor associado da Rockefeller University, em Nova York.
Mesmo que os anticorpos neutralizantes presentes na corrente sanguínea sejam baixos, diz ele, é preciso avaliar a ação das células que constroem memória imunológica. São elas que ativam o sistema imune quando percebem a entrada do vírus no organismo e produzem respostas mais robustas contra o invasor. A identificação dessas células, contudo, é mais complicada e só é feita em laboratórios de ponta. “Até agora, não saíram estudos que mostrem a perda de potência do sistema imune para nenhuma das vacinas. Até que possamos confirmar o claro benefício, discutir a aplicação de uma terceira dose é precipitado”, conclui. Um paper publicado recentemente por pesquisadores da Rockefeller University mostrou que uma dose booster, tanto da Pfizer quanto da Moderna, aumenta a quantidade de anticorpos neutralizantes, mas não melhora a qualidade ou a potência da resposta imune. O estudo contou com 32 voluntários e ainda precisa ser submetido à revisão dos pares.
Além disso, o Brasil ainda tem um dever de casa a ser cumprido. Até a última terça, o país tinha pouco mais de 20% da população completamente imunizada e uma expressiva disparidade regional na campanha de imunização. Até o dia 2 de agosto, Mato Grosso do Sul, por exemplo, já contava com mais de 33% da população totalmente protegida, enquanto o Amapá tinha 11%. “Precisamos garantir uma homogeneidade da vacinação, como sempre fizemos no Programa Nacional de Imunizações. Não adianta acelerar um município e o outro ficar lá para trás”, diz a epidemiologista Carla Domingues, que dirigiu o PNI de 2011 a 2019. As diferenças são justificáveis no começo da campanha, explica ela, mas já deveriam estar corrigidas a esta altura. Manter essa assimetria favorece o surgimento de novas cepas e o aumento da circulação das que já existem.
O erro apontado por Domingues já foi cometido nos Estados Unidos. Enquanto estados como Washington têm praticamente 60% da população completamente imunizada, outros empacaram na casa dos 30%. E foram justamente os estados com baixa cobertura vacinal que se tornaram clusters da variante Delta – e fizeram o país voltar atrás na flexibilização de medidas restritivas. “Se continuarmos como estamos, vamos ter surtos aqui no Brasil também”, alerta Domingues. Na última quarta-feira (4), o país voltou a registrar mais de mil óbitos diários por Covid-19. Com o atraso na imunização, a limitação do número de doses e a situação epidemiológica do país, a campanha de vacinação torna-se uma corrida contra o tempo. “Precisamos proteger o máximo possível de pessoas antes de falar em aplicar reforço da vacina. É descabido implementar a terceira dose no Brasil hoje.”
Um documento interno do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), obtido pelo jornal Washington Post, revelou a preocupação dos gestores com a disseminação da variante Delta, altamente contagiosa e provavelmente mais severa. Segundo a análise do CDC, a Delta é tão transmissível quanto a catapora. Os dados preliminares mostraram inclusive que pessoas vacinadas e eventualmente contaminadas por essa cepa podem transmitir a doença com a mesma facilidade de pessoas não vacinadas. Ou seja: as vacinas disponíveis atualmente ainda são eficazes contra desfechos severos, mas podem ser menos efetivas para prevenir a infecção e transmissão da Delta. Na apresentação, o CDC alertou para o aumento da transmissão comunitária da cepa no país, apesar de mais de 60% dos adultos norte-americanos já estarem completamente imunizados.
“Até agora demos sorte que nenhuma variante conseguiu evadir totalmente a vacina. Só não sei até quando vamos continuar tendo essa sorte”, diz a infectologista Rosana Richtmann, do Instituto Emílio Ribas. “Se surgir uma cepa que escape da vacinação, a gente perde tudo que fizemos até agora. Então não adianta começar a terceira dose sem controlar a epidemia primeiro.” O risco pode estar mais próximo do que se imagina. Pesquisadores japoneses analisaram a variante Lambda, identificada no Peru, e mostraram que essa cepa contém mutações resistentes à imunidade induzida pela vacina. O estudo ainda precisa ser revisado pelos pares, mas é um sinal de alerta. A recomendação oficial do Ministério da Saúde, por enquanto, é de não utilizar as doses disponíveis para fazer reforço na população. Ainda assim, existem registros de caçadores de doses extras no Brasil.
Pelo menos seis secretarias estaduais de Saúde investigam casos de pessoas que tomaram mais de duas doses de vacina ilegalmente. Em São Paulo, as denúncias são encaminhadas à Secretaria da Justiça e Cidadania, que apura as ocorrências e aplica multas a quem burla o programa de vacinação. Apenas entre os dias 24 e 27 de julho, o número de denúncias de pessoas que se revacinaram ilegalmente no estado dobrou: ao todo, são 14 casos. Em Minas Gerais, são 174, segundo a Secretaria de Saúde. O Ministério Público do estado investiga o caso de um casal que tomou quatro doses de imunizante. Os dois completaram o esquema vacinal em Viçosa, interior mineiro, com duas doses da CoronaVac. Posteriormente, receberam uma dose do imunizante da AstraZeneca no Rio de Janeiro. No fim de junho, de volta à cidade natal, eles procuraram a Divisão de Saúde da Universidade Federal de Viçosa e alegaram não estar imunizados. Receberam uma quarta dose, dessa vez com a vacina da Pfizer.
Além de ilegal, esse comportamento não é respaldado pela ciência. “Misturar vacina antes de ser testado é fugir das garantias de segurança. A recomendação é sempre seguir o que já foi demonstrado nos testes”, explica o imunologista Daniel Mucida. À piauí, o Ministério Público informou que ainda apura o caso e que, se comprovada, a ação pode configurar crime de estelionato, em que o indivíduo obtém para si vantagem ilícita em prejuízo alheio. “Quem faz isso tira a dose de outra pessoa”, diz a epidemiologista Carla Domingues. “Não adianta pensar no nível individual, essas atitudes prejudicam o Plano de Imunização e a retomada das atividades para todas as outras pessoas.”
O Ministério Público também precisou atuar em outro caso no estado de Minais Gerais, na cidade de Guaxupé. Um empresário de 75 anos, depois de receber duas doses da CoronaVac, realizou um exame laboratorial e constatou taxa de anticorpos inferior a 20%. O homem então levou o teste a uma médica, especialista em cirurgia vascular, que emitiu um atestado recomendando a revacinação – mesmo sem prerrogativa para fazê-lo. Alegando ter comorbidades, o empresário entrou com um pedido na Justiça para receber nova dose de imunizante e ainda deixou a marca dos sommeliers de vacina: disse que não queria CoronaVac nem AstraZeneca. O juiz da 2ª Vara Cível de Guaxupé concedeu a liminar e obrigou o município a revacinar o empresário nas condições exigidas por ele. Na decisão, o juiz apontou que o nível de anticorpos verificado pelo idoso estava “bem abaixo do que os estudos apontaram”. “Podemos tranquilamente perceber que a própria ciência está ‘batendo cabeça’, pois cada profissional da área médica, seja especialista em infectologia ou não, cada qual fala uma coisa diferente, não havendo um denominador comum, a não ser o uso de máscaras e de álcool em gel. E nesse caso como fica o cidadão?”, escreveu o magistrado.
Os especialistas, porém, são unânimes: o nível de anticorpos não deve ser usado para avaliar a imunidade. “A gente não sabe qual é o correlato de proteção para a Covid-19”, explica a infectologista Rosana Richtmann. Ou seja: a ciência ainda não descobriu a quantidade de anticorpos necessários para que uma pessoa não desenvolva doença grave ou doença sintomática. A recomendação é para que as pessoas não realizem exames de anticorpos para “medir” a proteção. Além de incorreto, dizem os especialistas, esse comportamento pode levar à desinformação sobre a eficácia das vacinas. O Ministério Público pediu a anulação da liminar concedida em Guaxupé e a decisão foi revertida antes de o idoso ser revacinado.
Há registros de pedidos semelhantes em São Paulo e no Rio de Janeiro, ambos negados pela Justiça. Na capital carioca, foi um deputado estadual quem entrou com o pedido, em caráter de urgência, para se revacinar. Átila Nunes (MDB) solicitou um reforço vacinal, desde que não fosse com CoronaVac, porque não se sentia seguro com as duas doses do imunizante. No pedido, o parlamentar cita uma suposta baixa eficácia da CoronaVac, com base, segundo ele, em informações das “mídias em geral e de vários estudos científicos”, e declarações do ministro da Saúde. O Tribunal Regional Federal no Rio de Janeiro negou a liminar ao parlamentar, mas o mérito da ação ainda será julgado pela primeira instância. Todas as vacinas aprovadas pela Anvisa são comprovadamente eficazes em proteger contra mortes e desfechos graves da doença, o que é prioridade neste momento da pandemia. Na avaliação dos especialistas, esse tipo de comportamento é resultado de uma estratégia de comunicação ineficiente por parte do Ministério da Saúde. A infectologista Rosana Richtmann apelidou o fenômeno de “comunicose”, a doença da comunicação. “Não estamos mostrando de forma clara a importância e segurança das duas doses antes de discutir a terceira”, diz.
A dose booster já está no radar das pesquisas científicas, mas existem mais dúvidas que certezas. A única coisa que os cientistas sabem é que o reforço estimula o corpo a produzir mais anticorpos neutralizantes que as duas doses regulares, no caso de Pfizer e Moderna. Para Richtmann, já é uma boa notícia. “Isso é animador para os pesquisadores. Como a quantidade de anticorpos cai com o tempo, e o vírus não vai embora tão cedo, tudo nos leva a crer que o reforço vai ser importante no futuro”, avalia ela. Mas o imunologista Daniel Mucida lembra que esses estudos ainda não demonstraram o benefício da terceira dose em comparação às duas regulares. Isso só pode ser verificado a partir de ensaios clínicos. Dois deles estão em curso atualmente, para medir os resultados com as vacinas da Pfizer e da AstraZeneca.
Funciona assim: os voluntários, vacinados com duas doses há pelo menos seis meses, são divididos em dois grupos. Um deles recebe placebo e o outro recebe a dose de reforço. Os pesquisadores então acompanham esses grupos e avaliam se houve diferença significativa no número de casos e na qualidade de proteção entre eles. Por enquanto, não existem resultados publicados. Os especialistas concordam que é essencial investir em pesquisas como a anunciada recentemente pelo Ministério da Saúde em relação à CoronaVac. Principalmente porque a vacina produzida pela Sinovac em parceria com o Butantan é pouco pesquisada no resto do mundo. Ainda é preciso saber a duração da proteção vacinal, qual grupo precisaria da dose booster (idosos, pessoas imunodeprimidas etc.) e a frequência das doses de reforço, caso ela se prove necessária. Mas os pesquisadores também reiteram: o essencial agora é pensar na terceira dose como investigação científica a longo prazo, não como política pública imediata.
Mesmo sem os resultados, pelo menos oito países já começaram a oferecer doses de reforço para sua população: Israel, Uruguai, Emirados Árabes, França, Rússia, Turquia, República Dominicana e Bahrein. “Do ponto de vista científico, é uma questão de tempo a gente precisar do booster”, avalia a infectologista Rosana Richtmann. Isso porque as vacinas aplicadas no regime atual não impedem a transmissão do vírus, o que é crucial para acabar de vez com a pandemia. E a ciência não pode descansar até melhorar a tecnologia e o desempenho dos imunizantes. “A única crítica que eu faria aos países que já estão dando a terceira dose é que isso envolve o mundo inteiro, não dá para pensar apenas no seu quintal.” Segundo dados do Our World in Data, base de dados online criada pela Universidade de Oxford, até o dia 2 de agosto, pelo menos 64 países tinham menos de 5% da população imunizada – e muitos não chegaram sequer a 1%.
Seguindo uma ordem de prioridades, é mais importante garantir a proteção no resto do mundo, dizem os especialistas ouvidos pela piauí. E o surgimento da variante Delta é prova disso. A cepa foi originalmente identificada na Índia, país que até o início de agosto tinha apenas 7% da população completamente vacinada. “O que está acontecendo hoje é uma incubação de variantes em países pobres”, afirma o imunologista Daniel Mucida. Para ele, países que têm doses sobrando deveriam distribuí-las imediatamente entre países que não conseguem comprá-las. “Mas existe um interesse comercial óbvio [das farmacêuticas]. Vender a terceira dose para os países mais ricos vai custar mais caro do que vender duas doses para países pobres.” Na última semana, os Estados Unidos compraram 200 milhões de doses da Pfizer que podem ser usadas como booster caso os testes mostrem que há necessidade.
A Organização Mundial da Saúde é contra o uso de doses de reforço neste momento. A epidemiologista Carla Domingues também é categórica ao alertar para os riscos dessa estratégia: “Os dados de Israel mostram que os surtos acontecem em pessoas não vacinadas que ainda resistem à imunização. Não existe nenhuma justificativa epidemiológica para estar fazendo reforço antes de controlar a epidemia em outros países. É um ato egoísta e irresponsável. Estão tirando doses de países com baixa renda que poderiam salvar vidas. Ninguém vai sair dessa sozinho.”