Por volta de 20h30 daquele sábado, 11 de novembro de 2023, quem estava nos arredores dos Arcos da Lapa, no Centro do Rio, ou acompanhava os minutos finais do eletrizante Fla x Flu do campeonato brasileiro em algum bar ou aguardava à porta do Circo Voador, histórica casa de shows, que em instantes abriria para mais uma noite de espetáculo. Dentro do Circo, no palco, Teresa Cristina terminava de passar o som para o show que teria início dali a poucas horas. Entre uma música e outra, ela checava: “O Fluminense empatou, né?” A cantora é aficionada por futebol e torcedora fanática do Vasco da Gama. “O que importa mesmo é amanhã”, brincou, fazendo referência ao jogo de seu time marcado para o dia seguinte. Duas horas e meia depois, Teresa retornaria ao palco para uma apresentação importante: o show que celebrou seus 25 anos de carreira ao lado do Grupo Semente, conjunto de samba que a acompanhava nas primeiras apresentações ao vivo, no bar homônimo do grupo, naquele mesmo bairro da Lapa.
“Esse show me levou para outro lugar. Eu consegui me divertir”, disse Teresa à piauí. Ela se recorda que, no início de sua carreira, tinha uma atitude introspectiva no palco, que era cantar de olhos fechados. “Não me sentia à vontade para encarar as pessoas. Acho que temia algum olhar de reprovação, não sei explicar direito.” Com o tempo, foi perdendo essa “trava” e passou a interagir mais com as pessoas. “Eu entendi que foi muito bom ter mudado e pude ver ali no Circo muitas pessoas daquela época.”
Terminada a passagem de som no Circo Voador, minutos antes das 21 horas, Teresa voltou ao camarim para se arrumar. No tempo em que esteve lá, recebeu a visita de parentes e de alguns amigos, como o presidente da Embratur, Marcelo Freixo, e o humorista Gregorio Duvivier. Vestida com um roupão com estampa de oncinha cor de rosa, ela conta que escolher o repertório daquela noite foi um desafio – precisou condensar 25 anos de carreira em um show de pouco mais de duas horas. A apreensão virou um deleite, para ela e para o público: “Me senti acolhida por aquelas pessoas. Como se fosse um agradecimento mesmo.”
No camarim, havia algumas comidinhas na bancada – sanduíches, água e cerveja. Estavam com ela seu empresário e o assessor de imprensa. Enquanto era maquiada por um profissional, ela aproveitou para checar o celular. E não gostou muito do que viu. Depois de responder algumas mensagens, desabafou: “Não aguento gente rica que fica pedindo ingresso. Sério, cara. Isso pra mim é… É racismo!”
“Isso acontece muito [de pedirem entradas]”, revela. “E principalmente com o samba. Tem pessoas que gostam disso, acham que ser convidada pode ser um cartaz.” Para ela deveria ser o raciocínio contrário, “se eu conheço o artista e ele é meu amigo, vou pagar para ajudar a pessoa”. A cantora diz que sempre que vai a rodas de samba faz questão de pagar o couvert artístico, mesmo quando lhe são oferecidas cortesias. “A gente não pode dar aquilo que sustenta a gente”, conclui.
Já passava das onze da noite quando Teresa desceu as escadas do camarim já pronta para o show. No backstage, enquanto era microfonada, fechou os olhos e balbuciou algo, como uma oração. Depois, formou uma grande roda com os integrantes do Semente, sua equipe de produção e Maria Juçá, a diretora do Circo Voador. Juçá foi a primeira a falar e agradeceu e enalteceu a sambista, que se emocionou. Na sequência, a cantora tomou a palavra: “Esse show não poderia ser em outro lugar, ao lado dessa pessoa que me conhece antes de tudo [fazendo referência a Juçá].” Ao final, todos jogam o pé direito pra frente da roda e gritam: “Axé!” A casa já está lotada. Tudo pronto para começar.
A relação de Juçá com Teresa começou muito antes dos palcos, na sala de aula. Ela era professora de Comunicação e Jornalismo na Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), onde a artista cursou letras. Elas participaram juntas de uma oficina de rádio da universidade, a “Rádia”, apelido que Juçá criou para uma rádio composta por maioria de mulheres.
“Teresa é especial pra mim”, diz Juçá com um ar nostálgico e orgulhoso. Poucos meses depois que o Circo reabriu – o espaço ficou fechado de 1996 a 2004 –, a sambista fez um show na casa. “Eu lembro que ela entrou descalça”, recorda Juçá, que é diretora de lá desde 1991. Ela conversou com a piauí em seu escritório, no segundo andar do Circo, minutos antes de anunciar Teresa Cristina no palco. “Eu não faço isso sempre, só em dias especiais como hoje. Tá raro até eu vir pra cá assim tarde da noite… já tô velha!”, brinca. “Teresa é como uma janela para novos sambistas. E de um samba novo, com gente nova e público novo. Isso serve de inspiração para artistas novos entrarem no samba.”
Após a roda de oração e a troca de energias antes do show, Juçá subiu ao palco para anunciar a cantora e contar para o público um pouco da relação das duas. Teresa, ainda no backstage, esfregou as mãos, fez o sinal da cruz e colocou apenas o pé direito no segundo degrau da pequena escada que leva ao palco. Ao ser anunciada, sobiu a escada, deixou os chinelos diante da cortina e entrou no palco. “Quando eu canto descalça, canto melhor, preciso sentir o chão”, revela. Tal como na primeira apresentação dela no Circo Voador, a cantora voltou a pisar naquele tablado descalça. “Isso me relaxa e me conecta.”
Teresa Cristina Macedo Gomes nasceu em Bonsucesso, bairro da Zona Norte do Rio, e cresceu na Vila da Penha, na mesma região, em uma casa de um quarto com seus cinco irmãos, seu pai e sua mãe. Ela mora no mesmo bairro até hoje. No ensino fundamental, na Escola Municipal David Perez, surgiu sua primeira vontade profissional, a de ser professora. “Em casa, ficava dando aulas imaginárias. Minha mãe me deu um quadro e eu fingia que estava botando ordem na turma.” Um dos alunos que mais levava “bronca” nas aulas fictícias era Romário. O hoje senador do PL foi seu colega da primeira à quinta série e se tornaria um dos maiores ídolos do seu Vasco. “O Romário sempre foi muito levado. Eu lembro que a gente brincava de ‘um toque’ [dar apenas um toque na bola] no recreio. Mas nunca gostei de jogar futebol”, recorda.
O esporte que a atraía para jogar era outro. Empolgada com o crescimento da seleção brasileira nos anos 1980, era no vôlei que Teresa depositava seu empenho. “Assistia a todos os jogos, conhecia todo mundo, pegava autógrafo daqueles jogadores todos”, conta. Aos 12 anos, chegou a se matricular na escolinha do Olaria Atlético Clube, mas não avançou na hora de se profissionalizar. “Se eu fosse boa naquela idade, já teria despontado algum tipo de talento. Eu gostava mais de vôlei do que jogava bem”, explica. Hoje, Teresa é uma espectadora assídua da modalidade, a ponto de acordar de madrugada para acompanhar uma partida. Porém, como torcedora, é o futebol que mexe mais com ela – o futebol não, o Vasco. “O que o Vasco fez comigo esse ano é coisa de doido”, diz, referindo-se à campanha no Campeonato Brasileiro de 2023, em que o time ficou muito perto de ser rebaixado para a segunda divisão. Ela se recorda de um “perrengue” que teve que passar por causa do clube, em 2009. “Eu tinha um ensaio em São Paulo num dia de jogo do Vasco. Passei o ensaio pro dia seguinte e fui para o jogo com a mala. Do Maracanã fui direto para o aeroporto”, conta. No aeroporto, Teresa percebeu que estava sem a identidade. Ela só conseguiu embarcar porque pediu a um motoboy que buscasse às pressas o documento em sua casa.
Suas primeiras experiências no mundo musical se deram a partir de um programa da Rádia universitária, o Outras Palavras, que trazia entrevistas com artistas e bandas e, segundo Teresa, foi a “primeira ponte musical de verdade” na sua vida. Uma das conversas que mais marcaram a sambista foi com a cantora Cássia Eller. “Eu não sabia que ela era tímida. Depois de um show que ela fez no Arpoador, ela parou pra conversar com a gente. Foi incrível.”
Fã de Van Halen e de Iron Maiden, Teresa não esconde seu lado metaleira. Hoje em dia, não acompanha as novas bandas que surgem no gênero, mas continua ouvindo os clássicos que fizeram parte da sua adolescência. “Já mais velha fui a um show do Iron em São Paulo. Fiquei pensando se aquilo ainda fazia sentido. Quando começou o show, eu tava cantando tudo.”
Ela se recorda de outro quadro na rádio, que também falava de música, mas de um jeito mais descontraído e humorado. A Vez do Brasil, parodiando A Voz do Brasil, que passava no mesmo horário. “Eu lembro que a gente falava que ia entrar o momento religioso e iríamos tocar ‘São Francisco Buarque de Holanda’.”
Chico Buarque é uma das maiores referências para Teresa Cristina. A sétima música do setlist do Circo Voador, naquela noite dos 25 anos de carreira, foi O meu guri, clássico do compositor do álbum Almanaque, de 1981. Para introduzir a canção, ela faz uma nova referência bíblica para falar do cantor. Se São Pedro tem as chaves do céu, é “São Francisco Buarque”, segundo ela, quem tem as do Brasil. “O Chico sempre foi uma paixão”, conta. Ela lembra que o vinil de Construção (1971) marcou muito sua infância na casa com os pais. Segundo ela, Chico é um artista completo e que sempre foi coerente com o que defendeu e propagou. “Para mim, ele é um dos artistas mais importantes do Brasil. Ele tem uma ação que condiz com o que ele fala”, explica. Se tivesse que elencar um panteão das suas maiores influências artísticas no mundo da música, estariam ao lado de Chico Candeia e o que chamou de “vozes femininas no samba”, como Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Clara Nunes e Beth Carvalho. “Era importante para mim ouvir aquele repertório. Aprendi muito com essas mulheres.”
Um dos projetos que Teresa iniciou no ano passado foi o “Pagode, Preta”, um show que reúne hits do pagode dos anos 1980 e 1990 com uma banda formada por mulheres negras. O espetáculo também já esteve no Circo Voador. Apesar de a maioria das rodas de samba do Rio ainda serem formadas por homens, ela enxerga um movimento crescente de mais mulheres no samba, mas ressalta que em muitos ambientes a presença feminina incomoda. “A gente precisa de hora de voo. Temos que colocar essa mulherada para tocar”, afirma. “Essas mulheres têm potencial. Uma vez que ela chegou ali na roda, pegou o instrumento, não vai voltar para a plateia. Ou vai voltar só se quiser.”
Lá pela metade do show, com o Circo Voador anestesiado com mais de uma hora e meia de clássicos de Cartola, Wilson Batista e Clementina de Jesus, entre outros, Teresa fez uma rápida pausa e, durante alguns minutos, passou o bastão para o Grupo Semente. No camarim, nesse pequeno intervalo, recebeu a visita de seu amigo de infância e de letras na Uerj, José Souza, o Zekinha, que estava visivelmente emocionado ao lado da amiga naquele momento especial. “Se eu pudesse descrever a Teresa em dois adjetivos seriam: amorosa e generosa”, disse o técnico administrativo. Teresa foi muito presente e participativa na vida de Souza. “Ela é uma das pessoas mais importantes da minha vida. Sou muito grato”, afirma.
Colada no palco estava Rosa, uma fã que acompanhou Teresa desde o início da carreira. Ela segurava um CD da cantora autografado, que ficou em suas mãos ao longo de toda a apresentação. Um pouco antes de o show começar, a piauí conversou com ela e quis saber o que achava da presença cada vez maior de jovens nos shows de Teresa e nas rodas de samba na cidade. “Eu acho que foram aquelas lives que ela fez, né? Na pandemia”, referindo-se às apresentações que a cantora fez em suas redes sociais no período de isolamento, em que cantava, falava sobre cultura, história e reunia grandes nomes da música brasileira. Teresa diz que as lives abriram um leque para muita gente que não conhecia o seu trabalho. No final de 2020, a cantora foi eleita pela Veja Rio uma das cariocas do ano e, em 2021, recebeu da prefeitura da cidade a Ordem do Mérito Cultural Carioca.
“Nem a Lapa, que, dada como morta, salvou-se por milagre, iluminou-se, encheu-se de música e, quem diria, voltou a pertencer a quem tem hoje 20 anos.” Este é o final da apresentação escrita pelo jornalista Ruy Castro para a segunda edição do romance Lapa, de Luís Martins, publicado pela primeira vez em 1936. A ficção retrata os dramas e as belezas do bairro boêmio carioca no início do século XX. Martins foi perseguido e o livro, apreendido, parou de circular. Entre idas e vindas, abandonos e efervescências, a Lapa do Circo Voador sobrevive.
“Eu acho que a Lapa tem um movimento cíclico”, pontua Teresa. Ela lembra que, no início da carreira, época em que se apresentava no Bar Semente, esquina das ruas Joaquim Silva com Evaristo da Veiga, o bairro tinha um aspecto de decadência, muito impulsionada pela atitude do prefeito da época, Luiz Paulo Conde, que ordenou o fechamento do Circo Voador. “Fechar o Circo foi uma atitude muito elitista, uma coisa meio vingativa”, afirma. “O samba voltou para Lapa, porque o samba já esteve na Lapa, é uma força ancestral.” Hoje a Lapa surfa um dos momentos de auge. Alguns sambistas da ala mais tradicionalista tecem críticas a essa ocupação de lugares históricos do bairro, como o Beco do Rato e a Pedra do Sal, por uma maioria branca que não tem uma relação visceral com o samba, mas está ali talvez por status ou porque é moda.
“Ninguém canta samba à toa. Esse termo branquitude não está falando especificamente de uma cor de pele, mas de uma atitude”, explica Teresa. O mais importante, segundo ela, é que se tenha respeito com a história e com a carga que esses lugares carregam. A Pedra do Sal é um local muito importante para a história do samba, há mais de um século como um ponto de encontro de sambistas. “Aquele chão tem história. Você não pode achar que pode chegar ali e cantar qualquer tipo de música. Ou se deparar numa roda de samba e achar que é melhor que aquelas pessoas ali”, diz.
Para sintetizar o raciocínio, Teresa entoa os versos de Filosofia do Samba, de Candeia:
Pra cantar samba não preciso de razão/Pois a razão está sempre com dois lados/Amor é tema tão falado/Mas ninguém seguiu nem cumpriu a grande lei/Cada qual ama a si próprio/Liberdade igualdade onde estão
A cantora lembra de situações em que sentiu de perto o menosprezo das pessoas pelo samba — uma delas, foi em São Paulo. Ela estava no interior do estado para um turnê em uma cidade cujo nome não se lembra. “Nós paramos num bar, assim de cadeira na calçada. Todos os bares da rua estavam com televisão tocando sertanejo”, conta. Passada uma hora, Teresa se levantou e foi até a garçonete solicitar se poderiam trocar um pouco o gênero musical do ambiente. “Eu falei: ‘Vem cá, você não pode botar um Fundo de Quintal, um Zeca Pagodinho, um Jorge Aragão?’ Ela falou: ‘Não, aqui é proibido tocar samba. O dono não deixa. Só pode tocar sertanejo’”, lembra.
“Eu fiquei tão revoltada, que a gente [a banda] levantou e começou a tocar samba ali, batendo na palma da mão e só no gogó.” Teresa conta que ficaram por horas no lugar e cantaram mais de trinta sambas. “Pra ser bem sincera, só quem chegou na gente foi o povo preto. Teve uma galera que levantou e foi embora. Mas eu caguei”, diz, rindo.
Para 2024, a sambista carioca já tem novos projetos em mente e pretende dar continuidade a outros, como o show Therezinha, com canções de Maria Bethânia. Uma das novidades que ela planeja é uma apresentação com repertório de composições de Zeca Pagodinho. “Quero muito mostrar o Zeca compositor, ele tem muitas músicas incríveis”, conta. A cantora também pretende lançar seu álbum autoral – seria o primeiro só com canções próprias.
Em janeiro, Teresa voltou aos palcos cariocas em um show em homenagem aos 100 anos da Portela, escola de samba de Madureira, na Zona Norte do Rio. No evento, que ocorreu na casa de shows Vivo Rio, no Aterro do Flamengo, a sambista foi acompanhada pela Velha Guarda da escola centenária e por alguns convidados especiais. Curiosamente, a música que abriu o show do Circo Voador foi um samba de Paulinho da Viola, um portelense ilustre. Dos versos do refrão de Meu Mundo é Hoje, Teresa Cristina passa o recado: “Eu sou assim/Quem quiser gostar de mim, eu sou assim.”
O show que celebrou os 25 anos de carreira da cantora já ia varando a madrugada, mas o público do Circo Voador estava cheio de energia.
Para o bis, Teresa voltou ao palco com uma coroa dourada e terminou a apresentação com um pot-pourri de nove sambas.
A piauí quis saber o que a Teresa de hoje daria como dica para a de 25 anos atrás.
“Não dar a importância a tudo que as pessoas vão falar de você”, diz a cantora. Ela lembra que muitas vezes mudava de atitudes ou de repertório por conta do que os outros julgavam ou diziam.
“A outra dica é não desanimar e não se abater com o tanto de não que recebi.”