Escolhida pelo presidente eleito Jair Bolsonaro para comandar o Ministério da Agricultura, a deputada federal Tereza Cristina, do DEM de Mato Grosso do Sul, acumula dívida de 9,8 milhões de reais, em valores não atualizados, com bancos e fundos de investimentos agropecuários. O calote resultou em cinco ações na Justiça contra a parlamentar. Um juiz de São Paulo chegou a confiscar os 40,5 mil reais mensais de verbas indenizatórias que Cristina tem direito como parlamentar a fim de pagar parte desse passivo.
Do total da dívida, a JBS S/A é credora de 4,5 milhões de reais, cobrada por meio de dois processos judiciais. Conforme informou a Folha no domingo, dia 18, Cristina, líder da bancada ruralista no Congresso Nacional, manteve negócios particulares com os irmãos Joesley e Wesley Batista ao mesmo tempo que comandava a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Agrário da Produção, da Indústria, do Comércio e do Turismo, a Seprotur, nas duas gestões do governador André Puccinelli (2007-2014). Os valores cobrados pela JBS dizem respeito à parte privada do acordo – a empresa arrendou um terreno da família da deputada enquanto gozava das isenções fiscais concedidas por Cristina na secretaria.
Em outro processo, Cristina é acusada de dar calote de 3,1 milhões de reais, em valores da época, na Eco-Multi Commodities Financeiros Agropecuários. A dívida é decorrente de uma cédula de produto rural, CPR. A CPR é um título de promessa de entrega de um bem rural. Nele, a instituição financeira antecipa o valor a ser pago pelo produto agropecuário. Em 2013, as partes chegaram a firmar um acordo, mas Cristina teria descumprido o trato meses depois, o que gerou penhora de 17 mil reais na conta da deputada. Um juiz chegou a determinar o confisco das verbas indenizatórias pagas à parlamentar pela Câmara, para custeio de combustível, viagens, aluguel de escritório e outras despesas parlamentares. “Cota para exercício de atividade parlamentar não é verba absolutamente impenhorável”, justificou o juiz Valdir da Silva Queiroz Júnior, da 9ª Vara Cível de São Paulo. Em abril deste ano, o processo foi suspenso por seis meses para tentativa de acordo entre as partes.
Há outras duas ações judiciais contra a deputada: o Banco do Brasil cobra 1,3 milhão de reais de Cristina e a empresa RC Soluções em Agropecuária, outros 927,5 mil reais. Nesse último processo, a juíza Vânia de Paula Arantes, da 4ª Vara Cível de Campo Grande, determinou a penhora de uma fazenda do espólio de Maria Manoelita Alves Lima Corrêa da Costa, mãe de Cristina, avaliada em 14,8 milhões de reais. Procurada, a assessoria da deputada federal não se manifestou sobre essas três ações cíveis. Em 2017, Cristina trocou o PSB pelo DEM. Ao Tribunal Superior Eleitoral, ela declarou patrimônio de 5,1 milhões de reais.
Durante a campanha, Cristina declarou apoio a Bolsonaro. Questionado no domingo sobre as denúncias contra a deputada, o presidente eleito, que compareceu a um campeonato de jiu-jítsu no Rio, declarou: “Também sou réu no Supremo, e daí? Tenho que renunciar ao meu mandato? Ela já foi julgada? Eu desconheço. Ela já foi julgada? Apenas um processo foi apresentado? Como eu já fui representado umas trinta vezes na Câmara, não colou nenhum. Afinal de contas sou um ser humano, posso errar. Ela goza de toda nossa confiança.”
A deputada Tereza Cristina telefonou na tarde desta segunda-feira para dar sua explicação sobre a origem das dívidas. Segundo ela, os empréstimos e financiamentos foram contraídos por sua mãe, em nome das empresas da família, na década passada. Após a morte da matriarca, o patrimônio e as dívidas entraram em processo de inventário. Houve um desentendimento entre os herdeiros, e as obrigações com os credores deixaram de ser pagas, o que acabou levando à execução de bens da inventariante, que é a deputada. Tereza Cristina afirma que os irmãos chegaram a um acordo, e que os advogados do espólio e dela estão negociando o pagamento das dívidas remanescentes. “Não tem calote nenhum. O patrimônio é maior do que a dívida. Tudo vai ser pago.
No caso da JBS, entre suas funções à frente da Seprotur, Cristina gerenciava o programa estadual de incentivos fiscais, cujo objetivo é atrair empresas para Mato Grosso do Sul. A JBS esteve entre as beneficiadas pelo programa, com desconto de até 75% no ICMS – uma CPI na Assembleia Legislativa do estado estimou que, entre 2007 e 2016, o estado deixou de arrecadar mais de 1 bilhão de reais da empresa dos Batista.
Beneficiada pelo programa, a JBS assumiu um frigorífico em Terenos, interior do estado, antes controlado pelo grupo Bertin. Para suprir a demanda por bovinos, no segundo semestre de 2009 Joesley firmou uma parceria com Cristina, uma das maiores pecuaristas do estado, para a criação de 12 mil cabeças de gado na fazenda Santa Eliza, de 1 031 hectares, distante 12 quilômetros do frigorífico que, na época, pertencia à mãe de Cristina, Maria Manoelita, então com 78 anos. Como parte do acordo, em 2009 e 2010, a JBS assinou três cédulas de produto rural, CPR, e uma cédula de crédito bancário (empréstimo). No total, Cristina levou um empréstimo de 1,9 milhão da JBS, em valores da época. Segundo a assessoria da JBS/SA, o valor atualizado dessa dívida é de 18 milhões de reais. Parte do dinheiro, segundo informam os advogados da parlamentar nas ações, seria utilizada na compra de bois e de insumos para a engorda dos 12 mil animais em confinamento, e parte abateria dívidas da família de Cristina com o banco BTG Pactual.
No entanto, na versão dos advogados da deputada, posteriormente Wesley teria desautorizado o negócio firmado pelo irmão. A parceria só seria retomada em 2012, quando a JBS firmou um contrato de arrendamento da fazenda Santa Eliza com Cristina, representante do espólio de Maria Manoelita, que morrera no ano anterior. A pecuarista alega que “questionou por diversas vezes” a JBS sobre o pagamento dos empréstimos, e que a empresa sempre dizia que o débito seria resolvido dentro do contrato de parceria, descontando a dívida dos valores que a empresa dos Batista pagaria pelo arrendamento da fazenda.
Em 2013 e 2014, porém, a JBS passaria a ingressar com ações no Fórum de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, exigindo o pagamento da dívida – com juros e correção monetária, o passivo atingia, naqueles anos, 4,5 milhões de reais. Mas o litígio judicial não impediu a JBS de financiar a campanha de Tereza Cristina a deputada federal pelo PSB, em 2014 – a multinacional dos irmãos Batista doou 103 mil reais a ela, via campanha do candidato a governador Nelson Trad Filho, do então PMDB, apoiado por Puccinelli. Cristina teve 75 mil votos e foi eleita; Trad Filho perdeu para o atual governador, Reinaldo Azambuja, do PSDB.
Em junho deste ano, tanto a JBS quanto a deputada pediram à Justiça um prazo de noventa dias para tentarem um acordo. Em setembro, o prazo foi prorrogado por mais trinta dias. Desde então, não houve mais nenhuma manifestação no processo judicial. Em nota, tanto a assessoria da JBS quanto a da deputada federal negaram que haja relação entre os negócios particulares do grupo com Tereza Cristina e os benefícios fiscais obtidos em Mato Grosso do Sul. “Nunca misturei assuntos de foro privado com o público. A JBS estabeleceu relações comerciais com a minha família pelo fato de a mesma atuar em atividade rural há mais de cinquenta anos e ter tradição nessa atividade. Também pela localização estratégica do imóvel rural onde está o confinamento”, afirmou Cristina em nota.
No acordo de delação firmado em 2017 com a Procuradoria-Geral da República, Joesley e Wesley Batista disseram ter pago propina a Puccinelli, ao seu antecessor no cargo, José Orcírio dos Santos, o Zeca do PT, e ao sucessor Azambuja, sempre em troca das isenções tributárias. Para o petista, segundo os Batista, o suborno era de 20% do total dos incentivos fiscais; com Puccinelli e Azambuja, a propina subiu para 30%. No total, a JBS calcula ter pago 150 milhões de reais em propina para os três governadores do Mato Grosso do Sul. O nome de Tereza Cristina não foi citado pelos irmãos, mas, posteriormente, Valdir Aparecido Boni, diretor tributário do grupo, entregou à PGR cópias de três aditivos aos acordos de incentivos fiscais assinados por Tereza Cristina. Zeca, Puccinelli e Azambuja negam o recebimento de propinas por parte da JBS.
Uma CPI instalada na Assembleia Legislativa do MS, dividida majoritariamente entre os três grupos políticos, analisou os cinco acordos de benefícios fiscais firmados com a JBS no estado. A comissão, encerrada no fim de 2017, constatou que a empresa utilizou notas fiscais em duplicidade para aumentar os créditos de ICMS com o governo de MS. Os deputados da CPI pediram a devolução de 731 milhões de reais pela JBS aos cofres do estado. Sobre a suposta propina aos três caciques políticos de Mato Grosso do Sul, nenhuma palavra.
*Esta reportagem foi atualizada às 19h do dia 19/11.