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    Glauber Rocha em 1979. Para Hélio Pellegrino, um dos "grandes cineastas do mundo”. FOTO: MANOEL PIRES_FOLHAPRESS

questões cinematográficas

50 anos esta noite

Um texto de Hélio Pellegrino e uma conversa com três participantes do histórico debate sobre Terra em Transe, a polêmica obra de Glauber Rocha

Eduardo Escorel | 16 maio 2017_12h51
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Mantido inédito durante catorze anos, o artigo do psicanalista Hélio Pellegrino (1924-1988), transcrito a seguir, foi publicado pela primeira vez nove dias após a morte de Glauber Rocha, falecido em 22 de agosto de 1981, aos 42 anos.

Pellegrino foi o mais eloquente defensor de Terra em Transe no debate que houve no Museu da Imagem e do Som, em 16 de maio de 1967, na semana seguinte à estreia do filme no Rio de Janeiro. A publicação póstuma do artigo, em 1981, serviu para homenagear Glauber, considerado no texto de Pellegrino um dos “grandes cineastas do mundo”.

No mês em que se comemora o 50º aniversário da estreia mundial de Terra em Transe, ocorrida no Festival de Cannes, ouça o podcast gravado em meados de abril deste ano, quando a piauí reuniu três participantes do debate no MIS para revisitarem a polêmica que se tornou histórica. Clique abaixo:

E leia a íntegra do texto original de Hélio Pellegrino:

Eldorado, visto do alto, é um mar faiscante de onde a luz tropical arranca reflexos ambíguos. A superfície atlântica se expõe ao sol como um dorso de peixe, as escamas refulgem, a mole de água longe é uma fornalha de ouro líquido, terra em fusão, magma de possíveis. Visto por dentro, Eldorado é um bicho áspero, revestido de florestas, recheado de vísceras sonolentas cujo trabalho se desdobra a partir de ritos e ritmos primitivos. A macumba é o hino nacional de Eldorado. Ao tantã dos tambores, a terra comemora suas utopias místicas e invoca as forças do Cosmo, para salvá-la.

Eldorado, além do mais, é um país subdesenvolvido e, neste sentido, tem afinidade conosco. Há homens e mulheres em Eldorado, há governantes e governados, militares, políticos, padres, crises de conjuntura e de estrutura. Há, principalmente, no país, uma indolência que o encharca todo: ossos, nervos, músculos, cartilagens, sangue e linfa. A um primeiro olhar, esta indolência se oculta sob crispações barrocas. O país parece avançar obstinado na conquista de seu futuro. As massas se movem, os brônquios da nação regougam, suas tripas fermentam alguma coisa parecida com esperança. Tudo isto é ilusório, porém. Eldorado assenta seus alicerces sobre um mucoso rio subterrâneo, onde se afogam as decisões cortantes. Há que lutar, em Eldorado, há que empunhar ferramentas de aço, não de plástico. O aço de Eldorado é cego, entretanto, numa terra cujo esqueleto geológico é ferro de lei. Nas mãos dos homens, o aço se corrompe e se transforma num tecido tíbio, fêmur sem tutano.

Assim transcorre Eldorado, nação coloidal cujas raízes profundas mergulham num pântano engolfante. Faltam arestas à alma eldoradense, falta o granito com sua catadura abrupta, falta o punho de pedra. Isto não significa que o povo de Eldorado seja infenso à luta e ao sacrifício. O povo é capaz de lutar, de sacrificar-se, de morrer. Aliás, morre-se em Eldorado com grande facilidade. Em certas regiões suas, a mortalidade infantil alcança níveis dos quais o país pode, com justa razão, orgulhar-se: são dos mais altos do mundo. Mas este fato – e outros muitos, da mesma índole – não conseguem destruir, no inconsciente geral, a ideia de que Deus nasceu em Eldorado. O país, ao invés de assumir sua missão, aguarda a promissão.

Eis aí, em nível arcaico, o transfundo mítico e mágico sobre o qual Eldorado se levanta. O país tem uma confiança ingênua e feroz no milagre que há de converter suas pedras em pães, seu sertão em mar, sua sede em fonte. Eldorado dança suas danças bárbaras, ilumina a noite com o fulgor de seus tambores, convocando o mel da primavera. Em verdade, tratar-se de um país infante, deitado em seu berço, à espera do Messias triunfal que virá cavalgando as nuvens com seu diadema de estrelas. Eldorado sonha, e sonha, infestado de vermes, de úlceras, trespassado de miséria, de secas, de flagelos. O sofrimento de Eldorado, longe de despertar-lhe a consciência, representa dentro do enorme sono eldoradense o penhor de uma eleição, e a garantia de uma futura abundância sem limites. Deus castiga aqueles que ama, para provar-lhes a fé. Bem aventurados os que se regozijam sob o chicote do tirano, ou do destino, pois a estes é reservado o trigo do porvir.

São estas as linhas mestras que definem a estrutura do inconsciente coletivo de Eldorado. Trata-se de um país fascinante, uterino, denso de um peso arquetípico que o solda ao chão, como um elefante fumador de ópio. Eldorado tem a força de um paquiderme primitivo, atolado num mangue. Nas águas do mangue a vegetação apodrece e gera o caos fecundo onde a vida fervilha. Há vida, paixão e morte em Eldorado, há o homem que explora o homem e o reduz a nada, há o processo espoliativo das nações imperialistas sobre um povo subdesenvolvido, há camponeses sem terra e vastas terras sem camponeses, há uma fome antiquíssima para milhões de bocas e milhões de pães para reduzidos dentes, há jovens revoltados ardendo de generosidade e velhos corruptos consumidos de cupidez, há subversivos, ladrões, pulhas implacáveis, líderes de fancaria, renúncias ao poder e corridas para o poder, estratégias, táticas, esquerdas, direitas, centro e periferia, há frentes largas e estreitas, testas-de-ferro e testas pensantes – há de tudo e de todas as coisas, em Eldorado. O pântano fermenta, o futuro quer nascer da água parada, bolhas de gás borbulham no negro lençol inconsciente de onde a nação emerge.

O país, entretanto, teme acordar do porre de maconha, que o envenena em suas matrizes. Este é o grave preço que paga para manter intocado o seu projeto nacional de onipotência. Eldorado se afunda na frustração e no impasse, na estagnação e na miséria, sem querer e sem poder, limpo de ilusões, contar com as próprias energias profundas que poderiam levá-lo à decisão de salvar-se. Só se salvam aquele povo ou aqueles homens que, numa tomada radical de consciência, venham a assumir sua própria perdição. A lúcida consciência do próprio fracasso, seja nacional, seja pessoal, é a véspera do salto capaz de transcendê-lo. Jaspers, na sua obra filosófica, faz a apologia das situações limites a partir das quais o ser humano, brutalmente barrado por muros existenciais que o encarceram, encontra na consciência e assunção destes muros o estímulo para transpô-los. Os homens e as nações quando jovens – ou melhor, quando ainda imaturos – aceitam apenas pela metade a responsabilidade de construir-se. A outra metade dorme na expectativa do milagre que há de vir. É preciso, num momento determinado, que homens e nações assumam seu tempo humano e histórico, seus limites e grandezas. A partir daí, todos os milagres são possíveis. O divino, no homem, tem que ser obra do homem, não dos deuses. Assim o quer a Providência, que nos criou à sua imagem e semelhança para que possamos realizar, através da praxis e do amor ao concreto, a liberdade e a dignidade que nos é inerente, como presença do Deus vivo em nós.

Terra em Transe, filme de Glauber Rocha que o coloca entre os grandes cineastas do mundo, nos conta em estilo épico a história de Eldorado, terra de sonho e ópio onde o sofrimento do povo, ao invés de forjar instrumentos redentores, escorre pelo chão como um rio gigantesco, feito de sanguinosa saliva, de lágrimas inúteis, de esperanças estilhaçadas, de esquecimento e desprezo. A revolta em Eldorado não consegue transpor o nível de consciência ingênua para tornar-se o encontro do povo consigo mesmo, com suas energias maduras, com o aço de sua vontade. Por isto, os líderes políticos oficiais de Eldorado são traidores em ato ou em potência.

Porfirio Diaz, napoleão de opereta, alma de escorpião e fariseu empunhando o crucifixo e a negra bandeira fascista, serve de corpo inteiro à Compañia de Explotaciones Internacionales, sob pretexto de servir ao Cristo. O senador Diaz, odiando o povo, pretende coroar-se imperador de Eldorado para impor aos sub-homens eldoradenses sua toda-poderosa vontade de super-homem. Vieira, governador de Alecrim, província de Eldorado, é um demagogo populista que se elege à custa do voto dos camponeses e operários para depois, no poder, ordenar o fuzilamento de seus líderes. Don Julio Fuentes é a expressão máxima da burguesia progressista de Eldorado. Dono de tudo – minério, petróleo, siderurgia, imprensa, televisão – sente-se, em determinado momento, esmagado pela concorrência da Compañia de Explotaciones Internacionales e, num furor impotente, admite aliar-se às forças populares para chegar ao poder. Fuentes, entretanto, é branco, e com os brancos se entende. Ao frigir dos ovos, manda ao diabo suas boas intenções nacionalistas e se transforma em tapete para Diaz, pinça do caranguejo imperialista em Eldorado.

Há o poeta, Deus meu, o sórdido, o belo, o generoso, o ingênuo, o puro e maculado poeta Paulo Martins, homem dividido como um pedaço de víscera é dividida por uma faca, homem que sangra e sonha, se encontra, e se aliena, e dança, e regouga, e tenta, e busca, e ama, e rodeia. Paulo Martins é a consciência em transe de Eldorado. Ele, poeta e soldado, soldado e poeta, truão e herói, se dilacera na tentativa de abraçar as contradições de Eldorado para, no escuro do caos, forjar o instrumento de luta capaz de redimir o país. Paulo Martins tenta confiar, tenta acreditar, tenta submeter-se aos esquemas burocráticos de uma dialética esvaziada de originalidade e de heroísmo. Tudo e todos falham, falha Diaz, de quem o poeta era amigo, falha Vieira, a quem o poeta procurou servir, falham os revolucionários que, em nome de velhas fórmulas esclerosadas, pretendem manipular a realidade, longe, muito longe de seu selvagem coração.

Há um momento em que Paulo Martins está só. Arma-se o golpe de morte nas derradeiras possibilidades democráticas de Eldorado, o imperialismo desfere sobre o crânio do país uma porretada que o fende, Vieira renuncia à luta, o povo, perplexo e manietado, não sabe o que fazer, os burocratas, articuladores abstratos de uma estratégia inviável, usam suas jaculatórias como quem recita um exorcismo impotente. O golpe está em marcha, a negra bandeira fascista se abate sobre o país. O poeta está só, na sua insônia. Esta insônia, porém, se ilumina com o clarão de uma consciência que arde. O poeta arde na noite de Eldorado, e sua solidão solidária se enche de rumores, queixas, gemidos, sofrimentos e lágrimas que a noite do país absorve e emudece.

Eis que o poeta – consciência em vigília – decide assumir, ao preço da própria vida, a situação limite que o dilacera, dilacerando Eldorado. Sozinho, sozinho, tão só como quem nasce – ou como quem morre – o poeta, com o povo, pelo povo e para o povo, lança seu peito de encontro aos fuzis que condenam Eldorado ao papel de um país que se agacha. Em nome de todos, encarnando o direito de todos à vida, à liberdade e à dignidade humana, o poeta arromba as barreiras da polícia e tomba crivado de balas.

Anarquismo? Romantismo pequeno-burguês antidialético e anti-histórico? Orgia individualista de alguém que não acredita na ação das massas e na sapiência dos burocratas que pretendem dirigi-la? Nada disto. Os homens só vivem bem na medida em que se tornam capazes de morrer pelos valores que amam. Um país só conquista o seu destino e a sua liberdade na medida em que seus cidadãos, modesta e concretamente, se tornam cada vez mais capazes de sacrifício em nome desse destino e dessa liberdade.

Terra em Transe – e seu personagem central, o poeta Paulo Martins – não fazem, em absoluto, a apologia do desespero e da violência. Eldorado precisa amadurecer. Um país amadurece na medida em que, amargamente purgado de seus fantasmas e fantasias mágico-animistas, funda sua decisão de paz e progresso numa lúcida e corajosa vontade de jogar o seu jogo. Quem é capaz de perder é capaz de ganhar. O poeta jogou tudo e perdeu. Para que Eldorado – quem sabe? – possa começar a encontrar-se.

* – Este artigo, inédito, foi escrito em 1967, quando do lançamento de Terra em Transe. Não lhe fiz nenhum retoque, para preservar seu caráter de documentário de uma década. A ênfase também corre por conta dela. Publicado originalmente na edição de domingo, 30 de agosto de 1981, do Jornal do Brasil.

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