Ao completar um mês, o governo federal sofre de envelhecimento precoce – quem faz esse diagnóstico, baseado na manifestação de sintomas típicos, é o jornalista Bernardo Mello Franco, em sua coluna no Globo. Não seria talvez mais apropriado, porém, considerar meramente que a máscara caiu e revelou peculiaridades já conhecidas dos atuais ocupantes do poder?
As trapalhadas financeiras e os expedientes irregulares do senador eleito prestes a tomar posse, primogênito do presidente, além das suas moções de louvor a policiais militares, integrantes da milícia de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, seriam suficientes para provocar o desgaste da primeira-família.
Mas há mais: chamado por seu pai de zero um, o então deputado estadual empregou em seu gabinete, na Assembleia Legislativa, a mãe e a mulher do ex-capitão do Bope, hoje foragido, considerado chefe do Escritório do Crime. Condenado por homicídio, em 2005, o foragido foi chamado de “brilhante oficial”, em discurso feito no plenário da Câmara dos Deputados, pelo então deputado federal, Jair Bolsonaro. Tal pai, tal filho.
Semelhante rol de peripécias bastaria para abalar a credibilidade de qualquer presidente. No âmbito específico do governo federal, no entanto, pequena amostra de ocorrências registradas nos últimos trinta dias confirma as piores previsões: flexibilização da posse de armas que, segundo especialistas, aumentará a criminalidade; intenção de excluir as Forças Armadas do projeto de reforma da Previdência, preservando seus privilégios, apesar da posição contrária do setor econômico do próprio governo; reconhecimento precipitado do autoproclamado presidente da Venezuela, contrariando a tradição moderadora da diplomacia brasileira ao interferir na crise política interna do país vizinho; participação apagada do presidente e alguns ministros no Fórum Econômico Mundial, em Davos, com destaque para o constrangimento do ministro da Justiça ao dizer que “não lhe cabe comentar” a possibilidade de o governo ser afetado por investigações motivadas pela movimentação financeira atípica do ex-assessor do filho querido zero um.
Mesmo diante de tamanhos malfeitos, só eleitores de Bolsonaro arrependidos, de um lado, e de outro iludidos de boa fé, deveriam considerar caduca a recém-iniciada Presidência. Para se dizer decepcionado, é preciso ter acreditado, em algum momento, que ao tomar posse o presidente eleito poderia ter desempenho à altura da responsabilidade do cargo, ou se transformaria magicamente em algo diferente do que sempre foi: um político de ideias retrógradas, notoriamente despreparado para qualquer função executiva.
A tendência a se iludir é considerada própria da natureza humana, de modo a suportar a chamada “imperiosa prerrogativa do real”, expressão de Clément Rosset em O Real e Seu Duplo. Ainda assim, chama atenção a recorrência da propensão a se deixar enganar por candidatos a cargos públicos e a cometer equívocos ao escolher quem apoiar, com consequências da maior gravidade.
Caso emblemático de autoengano é o do apoio inicial dado ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, antigo tenente-coronel do Comitê de Segurança do Estado (KGB), que foi a principal agência do serviço secreto da União Soviética. No poder há vinte anos, Putin está no seu quarto mandato presidencial, que vai até 2024.
Primeiro, foi nomeado por Yeltsin, em 1998, diretor do Serviço Federal de Segurança (FSB) da Federação Russa, sucessor do KGB, e, no ano seguinte, primeiro-ministro, o quinto em um ano e meio. Depois, ao anunciar sua inesperada renúncia à Presidência, em 31 de dezembro de 1999, Yeltsin informou pela televisão ter assinado decreto “colocando os deveres do presidente da Rússia”, nas mãos do “chefe do governo, Vladimir Vladimirovich Putin”, até a eleição marcada para março do ano seguinte, conforme consta do documentário Svideteli Putina (Testemunhas de Putin), de Vitaly Mansky.
“Inchado e gaguejando”, Yeltsin falou “em frente a uma tradicional árvore de Ano-Novo decorada com futilidades, luzes cintilantes e enfeites baratos”, escreveu Christopher Goodwin, para o jornal The Times.
“À meia-noite”, escreve Goodwin, “falando à nação pela primeira vez como presidente em exercício, Putin procurou tranquilizar quem estava preocupado por ele ser egresso das fileiras do KGB soviético: ‘A liberdade de expressão, a liberdade de culto, a liberdade de imprensa, a liberdade dos direitos de propriedade – esses fundamentos da sociedade civilizada – serão protegidos de modo confiável pelo estado”, declarou.
Recém-nomeado primeiro-ministro, ainda em 1999 Putin impôs sua liderança graças à sua firmeza ao lidar com uma série de explosões em prédios residenciais, ocorridas em Moscou e em outras duas cidades. Embora os atentados tenham sido atribuídos inicialmente a rebeldes chechenos, nenhum dos comandantes militares, nem o presidente da Chechênia, assumiram responsabilidade pelos atos terroristas, nos quais morreram cerca de 300 pessoas e mais de 1.000 feridos.
Na entrevista citada, o diretor de Testemunhas de Putin diz “estar convencido que Putin não teve ligação com as explosões”, apesar de ter sido acusado de cumplicidade. Para Mansky, é inegável, no entanto, que “o índice de popularidade dele era zero quando foi feito primeiro-ministro. Duas semanas depois, as bombas explodem e sua avaliação sobe imediatamente. Em alguns meses, [com a retaliação da Rússia, bombardeando Grozny, capital da Chechênia] a popularidade de Putin passa de 50%. Esses são apenas os fatos”.
Em retrospecto, o currículo de Putin parece coerente com o longevo autocrata em que ele se transformou – “suprimiu a mídia independente, liquidou empresas privadas, tomou posse da Crimeia e invadiu a Ucrânia, interfere nas eleições de outros países, envenena inimigos no exterior e bem pode ter informações comprometedoras sobre o presidente dos Estados Unidos”, escreve Goodwin.
Ao ser eleito presidente pela primeira vez, porém, muitos acreditaram que Putin representava uma mudança drástica em relação à corrupção generalizada do período anterior e à desmoralização de Yeltsin, causada pela desastrada intervenção na Chechênia, em 1996, por suas impertinências e célebres bebedeiras.
Foi o desencanto de Mansky com Putin que o levou a realizar Svideteli Putina (Testemunhas de Putin), produção da Látvia, Suíça e República Tcheca. Trata-se de um exercício de penitência do diretor, feito em grande parte com imagens inéditas que ele mesmo gravou e comenta.
Iniciado na noite de Ano-Novo, em 1999, o registro feito ao longo do ano seguinte acabou adquirindo valor adicional ao que teria se fosse uma mera observação dos bastidores do poder. O mérito do documentário resulta da interação do diretor com quem está diante da câmera, Yeltsin e Putin inclusive; das situações propiciadas por sugestão de Mansky especialmente para serem gravadas; e, em particular, do comentário que conduz a narrativa, feito por ele em voz off, quase vinte anos depois da gravação.
Premiado, em julho do ano passado, com o Globo de Cristal, dado ao melhor documentário no 53º Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary, na República Tcheca, Testemunhas de Putin foi exibido também, em meados de novembro, no Festival Internacional de Documentário de Amsterdã (IDFA, sigla do inglês). Este mês recebeu, há quatro dias, o Grande Prêmio no Festival Internacional de Documentário (FIPADOC), de Biarritz. Para o júri, “esse documentário parece um filme de família, sendo um retrato crítico e relevante. O novo olhar crítico para essas imagens deverá ter significação histórica à qual devemos render tributo através deste prêmio.”
Para Susan B. Glasser, em sua Letter from Trump’s Washington, na New Yorker, Testemunhas de Putin é “um incrível olhar sobre a maneira de uma democracia morrer – ou ser morta, como Mansky me corrigiu no palco – ajudada e induzida por aqueles que não conseguem acreditar de todo no que estão vendo”.
Após um prólogo breve, mas premonitório, iniciado com o mecanismo interno de um relógio de pêndulo e encerrado com o cortejo de carros pretos, o último cercado de motociclistas, vistos do alto se afastando do Kremlin, Testemunhas de Putin começa na virada do ano. Depois de abrir seu presente, Natalya, mulher de Mansky, dá uma demonstração de perspicácia, com a qual ele chega a concordar em duas palavras: “Estou chocada. A mão firme que a nação tanto admira chegou. Vamos ver como ele aperta os parafusos. É horrível. Nos lembraremos do tempo de Yeltsin como uma época de felicidade. Pensaremos ter vivido na Utopia”, ela diz e pergunta a Mansky se ele concorda. “Claro, concordo!”, ele responde.
“Eu acho que é um pesadelo. Nossa Utopia se foi de repente. O que será de nós? Nunca houve um presidente como o que vai assumir. Que golpe baixo na noite de Ano-Novo! Palavras me faltam. O mundo está abalado. Terá medo de nós de novo”, completa Natalya.
Além dela, a filha mais velha tampouco se deixa iludir: “Nosso novo presidente é como Mao Tsé-Tung, como mamãe disse. Ele também era um ditador.”
Apesar de se declarar de acordo com Natalya, Mansky começou dias depois a filmar um documentário de propaganda sobre Putin para ser usado na campanha eleitoral dele para a presidência. Quem é o Sr. Putin? foi exibido pouco antes da eleição no principal canal de televisão da Federação, Rússia 1, do qual Mansky era diretor-chefe do setor de documentários.
Ao rever o material após duas décadas, Mansky diz ter notado que “já como presidente em exercício Putin definiu de maneira precisa o que o faz ser idolatrado por uns e amaldiçoado por outros”. Em close, olhando para a câmera, o então candidato afirma: “Nosso principal objetivo é fazer a população acreditar em tudo que dizemos e fazemos; que a nossa posição é sincera, ditada apenas e tão somente em consideração aos interesses da nação. Somente isso. Essa é a chave do sucesso. Se as pessoas acreditarem nisso… essa é a coisa principal.”
O que Putin está dizendo, Mansky explica, é que “os interesses do estado vêm em primeiro lugar, o da população em segundo”.
Em 2004, Mansky renunciou ao cargo de diretor-chefe do setor de documentários do canal Rússia 1 – suas propostas haviam passado a ser censuradas a partir do momento em que Putin começou a exercer controle sobre a mídia. Desde 2014, Mansky e sua família estão exilados, vivendo na Látvia. E Testemunhas de Putin não pode ser exibido na Rússia.
Na entrevista a Goodwin, Mansky admite que “é impossível entender [agora] como ele pôde cometer o erro fatal de desempenhar um papel chave para o homem que cresceu no KGB soviético, e ficou imbuído de sua ideologia amoral, conquistar o poder”.
Mansky pode se considerar afortunado. Afinal, está vivo. Há um momento em Testemunhas de Putin em que ele informa o destino de várias pessoas do círculo íntimo que trabalharam para eleger Putin – estão hoje no exílio ou na oposição, desacreditados ou mortos. Entre outros, Alexander Litvinenko, ex-oficial de inteligência, envenenado com polônio na Inglaterra.
Nas palavras finais do comentário em voz off de Testemunhas de Putin, Mansky diz: “Putin ainda governa na Rússia. Muita coisa aconteceu durante os anos de sua administração. […] houve emigração, prisões e as mortes daqueles que tentaram falar abertamente contra o próprio Putin. Houve também o preço que eu tive de pagar por supor ingenuamente que era apenas uma testemunha. Mas a vida provou que consentimento tácito transforma testemunhas em cúmplices. Então nós todos acabamos sendo reféns da pessoa que estava nos liderando rumo ao futuro glorioso, que faz lembrar o passado tétrico.”
“Quando aprenderemos finalmente”, pergunta Susan B. Glasser na citada Letter from Trump’s Washington, que “só por que é impensável, não significa que não possa acontecer?” O primeiro mês do novo governo brasileiro, prestes a ser completado, oferece vários exemplos de fatos impensáveis que, no entanto, aconteceram. O prognóstico do que ainda ocorrerá é incerto. Pensando na experiência de Mansky, revelada em Testemunhas de Putin, uma lição a ser aproveitada parece ser a de evitar o papel de testemunha para não se tornar cúmplice.