Um dos princípios básicos da meditação é o “não fazer”, que não deve ser confundido com o “nada fazer”. O “não fazer” significa deixar as coisas serem como são, permitir que se desdobrem a seu modo, a seu tempo – há consciência e intenção nesse gesto de aceitação. A alegria do “não fazer” soa estranha no quadro de uma cultura que coloca tanta ênfase no fazer e no progresso. A meditação é provavelmente a única atividade intencional, sistemática, que no fundo não visa melhorar a si mesmo ou chegar a algum lugar, mas simplesmente realizar, tomar consciência de onde já se está.
Uma canção de George Harrison ilustra de modo quase didático esse princípio do “não fazer”. Chama-se The Inner Light – “a luz interior” – e foi composta sobre um poema do Tao Te Ching (O Livro do Caminho e da Virtude), escrito originalmente em chinês. Lançada em agosto de 1968, a canção reflete a experiência dos Beatles com a meditação transcendental. Em fevereiro daquele mesmo ano eles haviam feito o famoso retiro espiritual na Índia, sob a orientação de Maharishi Mahesh Yogi. Voltaram com cerca de 30 canções, que formariam a base do antológico Álbum Branco.
The Inner Light saiu alguns meses antes do álbum, como o lado B do compacto simples Lady Madonna. Eis um trecho da letra:
Without going out of my door
I can know all things of earth
Without looking out of my window
I could know the ways of heaven
A sonoridade é evidentemente indiana: a parte instrumental foi gravada em Bombaim, com músicos e instrumentos locais. A tônica (a nota mais grave) soa ao fundo o tempo todo, oferecendo um apoio contínuo ao ouvido. A presença continuada da tônica nos dá a impressão de que não saímos do lugar. Como acontece no estado meditativo, há mudança, mas não há movimento. Alguns poucos acordes transitam por debaixo do som contínuo do bordão, comunicando no tecido musical a mistura de estaticidade e movimento que emana do poema – “Without going out of my door / I can know all things on earth”.
Descendo um pouco mais na estrutura da canção, percebemos que os acordes que mudam sob a tônica, e também as notas da melodia (especialmente a sétima menor, que cobre o trecho “out of my” no primeiro verso), remetem ao modo mixolídio, um modo de caráter estático. O que define o mixolídio é o fato de que o sétimo grau não está mais a meio tom da tônica (como acontece no modo maior convencional, o dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó), e sim a um tom inteiro. Isso lhe retira parte da dinâmica de movimento, pois parece que a nota de maior tensão já não “quer” (ou não faz muita questão de) resolver na tônica. Ou seja, o impulso de resolução é amenizado; o movimento musical torna-se mais apaziguado; já não há ânsia de mudança, evolução, progresso etc. Por isso o modo como os musicólogos ocidentais se referem-se a ele: “preguiçoso mixolídio”.
O modo mixolídio pode ser visto como figuração musical de certa fixação no instante, uma ampliação do tempo presente em detrimento do passado e do futuro. Sua ambiência estática é mais contemplativa do que ativa. É o modo da rotina, da não mudança, do não fazer, da paciência, do eterno retorno de tudo, das novidades triviais. Com ele, os Beatles buscaram uma “redução” harmônica cada vez maior. Sua presença transparece na estranheza de canções como Norwegian Wood (que se passa inteiramente num quarto), Good Morning, Good Morning (que traz a recorrência, agora opressiva, da rotina), e sobretudo naquelas do chamado “período indiano”, como Tomorrow Never Know; It’s All Too Much; Love To You – e, evidentemente, The Inner Light.
Com essa premissa de stasis harmônica, pelo uso contínuo da tônica e do modo mixolídio, com o qual a música parece se tornar mais espacial do que temporal, os Beatles conseguiram comunicar através das canções seu recém-adquirido gosto pela filosofia e pelos ideais do Oriente.