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    Escola em Buriti, no interior do Maranhão - Foto: Avener Prado/Folhapress

questões educacionais

Tirando do paupérrimo para dar ao pobre

Se governo pegar parte do dinheiro da Educação para bancar substituto do Bolsa Família, os mais prejudicados serão os municípios com menos recursos

Demétrio Weber | 07 out 2020_16h25
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Se tirar recursos do novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) para criar o Renda Cidadã, o governo estará penalizando as redes de ensino mais pobres do país. De uma tacada − e com precisão cirúrgica −, cortará até 8 bilhões de reais que o novo Fundeb teria capacidade de repassar anualmente aos municípios onde mais falta dinheiro.

Mais de 2 500 redes de ensino municipais funcionam em condições de subfinanciamento educacional crítico − cerca de 46% das cidades brasileiras, de acordo com projeção da organização não governamental Todos pela Educação. Pois bem, no novo desenho do Fundeb, a complementação federal mais que dobrará até 2026, abrindo caminho para que esses municípios deixem a situação crítica. Isso, claro, se a complementação federal for mantida. O que está em jogo, portanto, é um salto estrutural na capacidade de financiamento das redes que atualmente dispõem de menos dinheiro por aluno. 

Buriti, uma cidadezinha de 28 mil habitantes no interior do Maranhão, tem um dos menores orçamentos por aluno no país, apontou estudo da Câmara dos Deputados. Uma outra estimativa do Todos pela Educação mostrou que Buriti teria o menor valor total por aluno do Brasil, cerca de 2 900 reais ao ano – menos de 250 reais por mês. Se o governo levar adiante a ideia de usar 5 pontos percentuais da nova complementação federal ao Fundeb para bancar o Renda Cidadã, o município maranhense deixará de receber 9,5 milhões de reais por ano, a partir de 2026, conforme projeção da consultoria da Câmara. Esse montante corresponde a 25% de toda a receita do município com o Fundeb em 2019 ou a um terço do que a rede municipal usou para pagar os salários dos professores e dos demais profissionais da educação naquele ano.

Hoje, por melhor gestão que tenham, redes com baixíssimo investimento dificilmente conseguem oferecer ensino de qualidade. Cobrar isso delas seria o mesmo que exigir de um nadador que atravessasse uma piscina vazia. “O novo Fundeb põe água nessa piscina”, diz Lucas Hoogerbrugge, líder de Relações Governamentais do Todos pela Educação.

O debate em torno do novo fundo, aprovado e promulgado pelo Congresso Nacional em agosto de 2020, teve como uma de suas preocupações torná-lo mais redistributivo. Ou seja, combater desigualdades não apenas entre diferentes regiões e estados, mas entre todos os municípios, elevando o piso de investimento por estudante em cidades onde, na média, as receitas vinculadas à educação não bastam para assegurar ensino de maior qualidade. Para isso, o Congresso mais que dobrou a complementação federal ao Fundeb: dos atuais 10% para 23% dos recursos aplicados por estados e municípios. (Sim, a maior parte do dinheiro do fundo sai dos cofres estaduais e municipais, cabendo ao governo federal papel suplementar). 

Os parlamentares tiveram o cuidado de manter o atual critério de complementação federal no mesmo patamar de 10%. Dessa maneira, nenhum município perderá recursos em relação ao formato adotado hoje. A novidade foi a criação de dois novos critérios para redistribuir a parcela adicional de verbas da União. Um deles contempla as cidades mais pobres − aquelas que, somadas todas as receitas da educação, têm os menores valores disponíveis por aluno, independentemente do estado onde estão localizadas.

O atual formato só permite complementação federal aos municípios de estados com menor valor médio por aluno. Assim, cidades pobres localizadas em estados com maior capacidade de investimento ficam sem ajuda federal.

 

Foi justamente o dinheiro desse novo mecanismo − que busca aumentar as receitas dos municípios com menor capacidade de investimento por aluno em qualquer lugar do país − que entrou na mira do governo para financiar o futuro Renda Cidadã. Conforme anunciado em 28 de setembro, a ideia discutida pelo presidente Jair Bolsonaro com ministros e parlamentares seria incorporar quase metade dessa rubrica do Fundeb para bancar o programa de transferência de renda com o qual o governo pretende substituir o auxílio emergencial e o Bolsa Família. Algo em torno de 8 bilhões de reais por ano, considerando o valor da complementação a partir de 2026, que deixariam de ser investidos em educação nos municípios mais necessitados.

Não está em questão a relevância da assistência social e dos programas de transferência de renda, indispensáveis em qualquer projeto de desenvolvimento em sociedades desiguais como a brasileira. O ponto, nas palavras de Hoogerbrugge, é a criação de um falso dilema, do tipo “ou se usa a verba do Fundeb ou não tem dinheiro para o Renda Cidadã”. Em nota, o Todos pela Educação bateu nessa tecla: “Há outros caminhos para financiar o mecanismo de transferência de renda sem desequilibrar a balança da justiça social quanto a responsabilidade fiscal − basta olhar para os privilégios que têm sido mantidos, mesmo durante o momento de crise que assola o Brasil. Sacrificar o orçamento da Educação custará décadas de desenvolvimento socioeconômico no nosso País”, diz texto divulgado pelo movimento.

O Fundeb financia as redes estaduais e municipais de todo o país, das creches e pré-escolas até os ensinos fundamental e médio. Em valores atuais, o novo Fundeb ampliará a complementação federal de 15,8 bilhões de reais (em 2020) para 36,3 bilhões (em 2026). Um acréscimo de 20,5 bilhões de reais correspondente ao aumento de 10% para 23% da contribuição da União ao longo dos próximos seis anos. Em 2021, esse percentual será de 12%.

O anúncio do governo de que estuda dar outro destino ao dinheiro do Fundeb provocou reação contrária em diferentes setores ligados à educação. O movimento Todos pela Educação entende que a medida tenta burlar o teto de gastos públicos instituído pela Emenda Constitucional 95, que impede, por vinte anos, aumento das despesas do governo acima do que foi desembolsado em 2017, exceto a correção inflacionária. A complementação federal ao Fundeb não está sujeita ao teto de gastos. Outro problema é que os recursos do Fundeb, por lei, devem ser aplicados na educação, e não em assistência social.

A retirada de recursos do Fundeb prejudicaria os municípios mais pobres num momento de queda da arrecadação devido à pandemia de Covid-19. Com a retomada das aulas, muitos municípios terão de fazer gastos adicionais, como a compra de equipamentos de proteção individual e a necessidade de fracionar turmas, o que talvez exija a contratação de professores. 

No formato em que foi aprovado e promulgado pelo Congresso, o novo Fundeb elevará o investimento mínimo por aluno/ano nas redes municipais e estaduais dos atuais 3,7 mil reais para mais de 5,7 mil, conforme projeção do Todos (a consultoria da Câmara estimou um piso nacional de 5 508 reais ). Já em 2021, municípios de quinze estados deverão receber complementação federal: 1 471 redes de ensino das mais pobres do país, responsáveis por 7,3 milhões de alunos, ganhariam recursos adicionais. 

O novo Fundeb entrega a Buriti um acréscimo superior a 20 milhões de reais no aporte federal, a partir de 2026, conforme projeção da Câmara. Dinheiro para tirar a cidade da condição de subfinanciamento educacional crítico. Não faz sentido desidratar um modelo de financiamento capaz de ajudar o Brasil a deixar para trás anos de desigualdades.

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