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    ILUSTRAÇÃO: CARVALL

questões de segurança pública

Tiros, terror e um milhão para o alto

Cena a cena, como foi o assalto cinematográfico que fez refém toda uma cidade de Santa Catarina

Tiago Coelho | 04 jan 2021_17h21
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Naquela segunda-feira, dia 30 de novembro de 2020, faltando dez minutos para a meia-noite, quatro funcionários da prefeitura ouviram uma série de estouros em Criciúma. Eles, que trabalhavam no setor de manutenção da Diretoria de Trânsito e Transporte, estavam pintando a faixa de pedestres da Rua São José, na região central do município catarinense. Por morarem numa cidade tranquila, com 217 mil habitantes, os homens imaginaram se tratar de fogos de artifício ou do escapamento desregulado de algum carro. Foi apenas quando houve uma segunda sequência de estampidos que Sérgio Eduardo Firme, de 51 anos, o responsável pela equipe, levantou a suspeita menos provável. “Tiros!”, disse, alarmado, para os colegas.

Não deu tempo de pensarem no que fazer. Uma BMW X6 derrapou diante deles. Quatro bandidos saíram do carro encapuzados, renderam os funcionários, ordenaram que tirassem as camisas e os puseram sentados em fila na faixa de pedestre. Depois, utilizaram o carro de manutenção da prefeitura para obstruir a Rua São José, que fica atrás de uma agência do Banco do Brasil. Armados com fuzis e metralhadoras ponto 50, os criminosos atiraram nas luminárias dos postes e nas câmeras de segurança que vigiavam as redondezas. Dois motociclistas que passavam pelo Centro naquele instante foram rendidos e se juntaram ao grupo de reféns.

Não demorou até que os bandidos explicassem o que estava acontecendo. “Isso é um assalto. Vocês só vão morrer se reagirem. Se ficarem quietos, sairão vivos e terão história para contar. Quando tudo acabar, nós vamos embora, e ninguém vai nos pegar”, garantiu um dos criminosos, de acordo com Firme. Nas próximas horas, os quatro ladrões e outros comparsas realizariam o maior assalto a banco de Santa Catarina.

A poucos metros de onde Firme se tornara refém, Lucimara Benedet, gerente de uma loja de roupas, escondia-se debaixo de um balcão. Ela e uma vendedora faziam hora extra decorando o estabelecimento para o Natal. Minutos antes do início do assalto, a gerente havia terminado de enfeitar outra loja da mesma rede e seguiu para decorar a segunda. A primeira ficou completamente destruída pelos disparos a esmo dos criminosos, que tinham a intenção de espalhar o terror pela cidade enquanto roubavam a agência do Banco do Brasil. No nono andar de um prédio residencial que se localiza na Praça do Congresso, o empresário André Freitas via televisão com sua esposa. Quando a saraivada de tiros eclodiu, ele se agachou na varanda e só foi entender o que estava ocorrendo ao espiar as imagens da rua que registrara pelo celular, com o braço esticado. Na tela do aparelho, avistou homens fortemente armados, desfilando tranquilos pela praça. Desesperado, se refugiou com a filha e a esposa no corredor do apartamento, onde montou uma cama improvisada com cobertores e passou a noite toda acordado, se informando sobre a confusão pelo WhatsApp.


O terror que Criciúma vivenciou naquela noite se deveu a uma modalidade de assalto a banco que tem se espalhado por todo o país, em municípios de pequeno e médio porte. Por lembrarem os ataques de cangaceiros a cidadezinhas do Sertão nordestino na primeira metade do século XX, as ações já ficaram conhecidas como Novo Cangaço. Trata-se de um crime meticulosamente organizado, que reúne um grande número de bandidos experientes, com armas sofisticadas, capazes até de perfurar blindagens. Na maioria das vezes, os assaltos acontecem à noite, quando o efetivo policial diminui. As forças de segurança são impedidas de agir rapidamente por causa de barricadas que os próprios ladrões montam. O poderio bélico dos criminosos é logo exposto para intimidar a repressão.

Naquele 30 de novembro, os assaltantes entraram em Criciúma por volta das 23h30. Às 23h40, incendiaram um caminhão na porta do 9º Batalhão de Polícia Militar e fizeram intensos disparos contra o local. As autoridades de Santa Catarina trabalham com a hipótese de que integrantes da quadrilha tenham alugado um apartamento perto do banco meses antes do assalto. Munidos de informações sobre os arredores e a rotina da agência, os criminosos botaram o plano em ação.

“É uma preparação de guerra. Entre outras coisas, os bandidos descobrem o número de policiais que se mantêm ativos em cada cidade durante a noite. Enquanto uma parte do bando se dirige para a sede das forças de segurança, a fim de obstruir a saída dos carros de polícia, a outra parte vai para o setor bancário, que costuma ficar num mesmo quarteirão”, explica a antropóloga Jânia Perla Diógenes de Aquino, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), que pesquisa assaltos a bancos há mais de duas décadas.

Ela afirma que essa modalidade de crime se desenvolveu à medida que as agências sofisticaram seus sistemas de proteção. Até os anos 1990, os assaltos aconteciam no horário comercial. “As agências não tinham portas giratórias nem sistemas eficientes de detectores de metal. A quadrilha invadia o estabelecimento, rendia os funcionários e geralmente trocava tiros com os guardas, o que podia resultar em baixas entre os criminosos”, relembra a pesquisadora.

No início dos anos 2000, a tecnologia de segurança melhorou, e os ladrões passaram a usar outro método. Sequestravam os familiares de gerentes ou tesoureiros dos bancos e pediam resgate. Não raro, forçavam os funcionários em questão a retirar das agências o dinheiro desejado. Em consequência, os bancos passaram a reforçar a proteção de seus empregados e instituíram horários fixos para a abertura dos cofres. Foi com o intuito de driblar tais medidas que, a partir da década de 2010, a tática atual entrou em vigor, segundo a professora da UFC.

 

Próximo ao batalhão de Criciúma, os assaltantes ainda trocaram tiros com um carro da PM. O policial Jeferson Esmeraldino teve o colete à prova de bala perfurado e foi internado em estado grave. Um mês depois, continuava no hospital. Por causa dos reféns e do fato de a área ao redor do banco ser residencial, a polícia preferiu evitar o confronto. À meia-noite, todas as ruas em torno da agência já estavam tomadas pelo bando. De tempos em tempos, os ladrões davam tiros para o alto.

Sérgio Eduardo Firme diz que sentiu muito medo. Um colega murmurou junto dele: “Vamos morrer.” Os criminosos que vigiavam os reféns andavam de um lado para o outro e se comunicavam por radiotransmissores com os comparsas dentro do banco. Àquela altura, não passava mais nenhum carro na Rua São José. O silêncio só era quebrado pelos tiros e pelas vozes dos assaltantes, que gritavam para quem estivesse nas janelas dos prédios: “Fecha senão vai morrer.”

Um dos bandidos se dirigiu aos reféns sentados no chão. Firme percebeu que o sotaque do assaltante era catarinense. “Quanto vocês ganham?”, perguntou o criminoso, que empunhava um rádio e um fuzil. “A gente respondeu que ganhava entre 1.500 e 2 mil reais”, conta Firme. “Vamos arrombar o cofre e levar o dinheiro. Depois, jogaremos 1 milhão de reais na frente do banco. Vocês podem pegar o quanto quiserem”, informou o ladrão. “Quando passar um tempo, a gente volta para beber com a mulherada da cidade.”

“O cara disse isso tudo com muita calma”, recorda o funcionário da prefeitura. “Parecia saber o que estava fazendo e que ninguém viria atrás deles.” Um carro da quadrilha passou a rondar o quarteirão. Firme, que é católico, sussurrava orações. Alguns dos demais reféns, evangélicos, faziam o mesmo. Por volta da meia-noite e dez minutos, os bandidos começaram a arrombar o cofre. Nesse momento, foi imprescindível o trabalho do explosivista, figura central em crimes do gênero. Ele é o responsável por calcular a quantidade de TNT necessária para abrir o compartimento blindado sem causar acidentes nem danificar as cédulas de papel. Além do explosivista, os bandos abrigam falsificadores de documentos, motoristas especializados em fuga, atiradores com boa pontaria e expertise para operar armas de grosso calibre e até especialistas em reconhecimento de área.

Às tantas, o criminoso que portava o rádio e o fuzil se aproximou de Firme e perguntou a hora. O funcionário da prefeitura respondeu que era uma e meia da manhã e ouviu o assaltante dizer para si mesmo: “Ainda dá tempo.” Logo depois, uma voz no rádio avisou: “Conseguimos arrebentar a boca. Manda os reféns para cá. Eles vão ajudar a pegar o dinheiro.” Os seis homens enfileirados sobre a faixa de pedestre se desesperaram. Outro ladrão fez sinal para os reféns se levantarem. O bandido com o rádio e o fuzil interveio: “Deixa dois aqui comigo. Vão servir de escudo caso aconteça alguma coisa.” Casado e pai de duas filhas, Firme permaneceu fora do banco com um colega. “Foi o momento em que mais tive medo.” O resto dos reféns entrou na agência.

Por volta de 1h45, o funcionário da prefeitura escutou no rádio o comando para “os carros descerem”. Terminava, enfim, o assalto que durou cerca de duas horas. Firme viu dez automóveis chegarem à Rua São José. Pouco depois, todos os reféns foram liberados. “A gente se abraçou, chorou e seguiu para casa. Minha família estava acordada me esperando. Acompanharam tudo pelas redes sociais”, relata Firme. Como prometido, os assaltantes jogaram parte do dinheiro roubado para o alto. Alguns moradores recolheram as notas, mas o funcionário da prefeitura não tocou em nenhuma. “Eu jamais faria isso.” Os ladrões levaram aproximadamente 80 milhões de reais do banco, segundo a Diretoria Estadual de Investigações Criminais.

 

No total, cinquenta criminosos participaram do assalto, ainda que nem todos estivessem presentes na ação. Até agora, catorze suspeitos, oriundos de diferentes estados, foram presos — em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, em São Paulo e no Ceará. Outra característica do Novo Cangaço é arregimentar bandidos de diversos lugares do Brasil. “Em 2018, no assalto à empresa de segurança Brink’s, em Ribeirão Preto, havia um criminoso de Uberlândia. Não tenho dúvida da interestadualidade dos delitos. Isso torna a investigação mais difícil e desafiadora. Não bastasse, os ladrões usam aparelhos muito modernos de comunicação, o que dificulta a interceptação telefônica”, afirma o promotor Leonardo Romanelli, do Gaesp de São Paulo (Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública).

Dois dias depois do roubo, Márcio Geraldo Alves Ferreira, o Buda, integrante do Primeiro Comando da Capital (PCC), foi capturado na serra gaúcha. Outros suspeitos de participarem do crime também podem estar ligados à facção paulista. A relação do PCC com assaltos a banco é antiga. Muitos criminosos, antes de entrarem para a facção, já tinham experiência nesse tipo de roubo. A sofisticada prática de explodir cofres e caixas eletrônicos foi aperfeiçoada e difundida no país justamente por membros do PCC. A cúpula da organização, no entanto, não costuma arquitetar as ações do Novo Cangaço nem as comanda. Os integrantes do PCC que vão a campo agem de maneira autônoma, em nome do lucro pessoal e na companhia de bandidos que não pertencem à facção.

No máximo, o Primeiro Comando da Capital atua como coadjuvante. Pode, por exemplo, alugar as armas usadas nos assaltos. A ponte com a organização é feita pelo armeiro da quadrilha interessada. Ele contacta o paiol do PCC, que libera o material bélico. Quando não lucra dessa maneira, a facção pode emprestar dinheiro a juros para financiar as empreitadas, que demandam altos investimentos. Roubos do Novo Cangaço chegam a custar entre 1 milhão e 5 milhões de reais tamanha a logística envolvida (compra de explosivos, aluguel de imóveis, armamentos e carros blindados etc).

Entre os dias 1º e 2 de dezembro, assaltantes empregaram o mesmo método para investir contra uma agência do Banco do Brasil em Cametá, no Pará. Tanto essa ação como a de Criciúma foram acompanhadas por relatos na internet de moradores apavorados com o que acontecia no entorno. Para a antropóloga Jânia de Aquino, a repercussão via redes sociais interessa aos criminosos. Quando desfilam com armamentos pesados, disparam tiros sem necessidade e berram frases aterrorizantes, eles almejam paralisar a população. “Os vídeos e áudios trocados pelas redes sociais assustam não só os habitantes do município onde ocorre o assalto como os das cidades vizinhas. Em decorrência, todo mundo fica dentro de casa”, afirma a pesquisadora. “Quanto mais negativa a imagem que os ladrões passam, melhor. Eles querem parecer rudimentares, impulsivos e brutais, capazes de perder o controle a qualquer momento e atirar em quem se aproximar.”

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