A epidemia de coronavírus chegou com tudo na periferia de São Paulo. Com o sistema de saúde sobrecarregado, a região vê o número de casos e mortes subir cada vez mais. Luana Almeida, produtora cultural e moradora da Vila Jacuí, extremo Leste da cidade, acompanhou a chegada do vírus na sua quebrada e os efeitos da pandemia na região. Mas desta vez Luana conta sua própria história à piauí. Ela se tornou mais uma entre as milhares de pessoas infectadas pelo vírus Sars-Cov-2 na Zona Leste. A seguir, Luana relata como enfrentou a doença em um lugar com uma estrutura de saúde precária e quais as consequências da Covid-19 na sua saúde.
(Em depoimento a Camille Lichotti)
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No dia 6 de maio eu acordei com muita dor no corpo. Mandei um áudio perguntando pra minha mãe o que ela tomou para melhorar o mal-estar que tinha sentido antes também. Ir para o hospital não estava nos planos no primeiro momento. Mesmo com todos os sintomas [da Covid-19], a gente ainda fica pensando “será?”. Aí, durante uma semana, tive dor no corpo, dor de cabeça, tosse seca. Foi a pior semana da vida. Eu estava muito fraca, não conseguia ficar com o corpo parado de tanto que tremia. No dia 11, peguei o carro para ir com a minha mãe ao hospital. Os hospitais mais próximos daqui são o Tide Setúbal ou o Ermelino Matarazzo, mas eu não fui a nenhum deles porque sei que estão lotados. São os principais hospitais da região e não têm condições de atender. Tanto que tá rolando uma campanha muito forte por hospitais de campanha na Zona Leste. Fui com a minha mãe ao hospital Tatuapé, que fica a uns quarenta minutos de carro de onde eu moro. Fui com ela do meu lado, a gente meio que se fortalecendo. Minha mãe tava bem, mas “bem” naquela, né, muita tosse. Chegando lá, no hospital já tinha uma área de gripário, com pessoas esperando, todo mundo de máscara e tal. Quando eu fui ser atendida, já colocaram uma etiqueta em mim. Não lembro direito se era vermelha ou amarela, mas ela classifica o nível de urgência para o atendimento. Cheguei lá falando de todos os meus sintomas. Não fiz o teste [para Covid-19] porque falaram que os exames estavam sendo destinados às pessoas internadas. O médico pediu uma tomografia e no resultado saiu que eu estava com Sars-Cov-2.
Na tomografia já constataram também uma pneumonia. No laudo da minha mãe deu uma mancha no pulmão maior que a minha. Ela teve alguns sintomas, um pouco de dor no corpo, mas nada muito grave. Ela estava ótima, o que me ajudou, né? Se estivéssemos as duas do jeito que eu estava, ferrou… Eu nunca tive pneumonia antes, então pra mim foi meio assustador sentir meu peito parecer que estava com uma faca enfiada. Essa era a sensação. Doíam o peito e as costas, e não tinha muito o que fazer, eu não tinha ar suficiente para respirar. Me receitaram vitamina C e azitromicina, que eu não tomei porque estava muito fraca, fiquei com muito medo. Falei: “Vou me recuperar de outra forma, a mais natural possível”, porque meu corpo já não estava aguentando, se eu começasse a colocar um monte de medicamento, um monte de química, eu ia morrer.
Na casa da minha mãe, onde eu voltei a me recuperar, tinha um inalador que eu usava para dormir. Um amigo meu também me indicou inalação com eucalipto, que é o que está me salvando até hoje. Eu faço essa inalação natural pra pelo menos conseguir dormir, porque dormir com o peito pra cima é horrível, com o peito pra baixo é mais horrível ainda. Semana passada eu tive uma crise respiratória tão forte que eu desaprendi a respirar. Eu só tive isso uma vez, mas ali eu achei que fosse morrer. Era 1 hora, 1h15 da manhã, e eu moro sozinha, imagina, eu ia pensar em fazer o quê? Eu tava pensando em sobreviver, em voltar a respirar. A primeira coisa que eu fiz foi pegar o telefone e procurar no Google “como respirar”. Aí eu vi uns vídeos de respiração com o diafragma para aprender todo o movimento… Eu comecei a pensar pra respirar.
Eu não sei por que as pessoas não estão acreditando nisso tudo, não estão acreditando nessa doença, na gravidade dela. Eu nunca senti algo nem ao menos parecido, e tudo ao mesmo tempo, é coisa de louco. Eu nunca pensei “meu Deus, se eu tiver [a doença] eu vou morrer”, mas eu pensava “caraca, se eu tiver é muita mancada porque eu tô isolada, tava saindo super pouco”. Desde que começou isso tudo, eu só fui ao mercado duas vezes com a minha mãe. Eu não estava nessa circulação toda e mesmo assim fui uma vítima. Não sei o que faz as pessoas acharem que elas não podem ser contaminadas. Eu estava tomando todos os cuidados, chegava da quitanda e colocava as compras, as comidas, tudo na lavanderia para depois trazer pra dentro de casa. A gente tá falando de como isso chega na periferia, mas olha como está o sistema de saúde. Que atendimento está sendo feito? Se somos maioria sendo vítima de um vírus, acho que é muito mais sobre pensar que assistência está sendo dada a essas pessoas. Não sei se ainda existem na quebrada pessoas com dúvidas de como sejam os sintomas. Isso já foi entendido, ainda que tardio. Eu temo que as informações tenham chegado depois das vítimas.
Antes eu falava [sobre a epidemia] de forma superficial, mas agora estou falando de mim na primeira pessoa, ou seja, eu fui uma vítima. E agora que chegou aqui, na área onde existem mais contaminações, o que a gente vai fazer? Eu trabalho na cultura, que foi a primeira a cair, e vai ser a última a voltar. Então todo e qualquer apoio é muito importante. Eu escrevi uma campanha de crowdfunding, chamada “Me ajuda nessa conta”, que é para ajudar pessoas que têm a mesma profissão que eu, que trabalham na arte e na cultura, a conseguirem pagar contas que ficaram em atraso e que tá gerando um supercaos. A gente sabe o que teria funcionado para que a gente não tivesse assim agora. Agora é lidar com as consequências mesmo e entender o que vai ser feito por essa população. O que será feito para socorrer essa população, com os riscos que correm aqui? Pensar no isolamento social quando tudo isso já está acontecendo…