Fui tirar no violão algumas versões de João Gilberto. Visitadas por dentro, as catedrais sônicas de João são cristalinas, luminosas. Possuem aquela junção de clareza matemática e conteúdo espiritual. É uma alegria para os ouvidos e para as mãos à medida que a sensibilidade vai descortinando o trabalho do artesão obsessivo em seus ajustes finíssimos. Os encadeamentos dos acordes alcançam uma fluência e precisão tamanhas que é difícil flagrar a marca do ofício humano. São colagens perfeitas, necessárias, orgânicas, que não exibem qualquer traço de artificialidade. A vitalidade dos acordes não vem apenas do arranjo de notas ou das funções desempenhadas por eles, mas também emanam de um sofisticado jogo de timbres e da pulsão rítmica que reside, latente, dentro do próprio acorde. “O ritmo que está dentro do acorde”, como diz Aderbal Duarte, o músico baiano que há anos e anos estuda a obra de João. Ou, como dizia Tom Jobim: o problema não são os acordes – que são conhecidos de todos –, mas a “colocação” deles.
Como todo grande criador, João Gilberto se encontra a meio caminho entre invenção e descoberta. Algumas soluções são simples e belas, baseando-se em jogos internos de vozes no interior da harmonia. Por exemplo: em Estate, numa versão recente, quando, na passagem para o refrão, a canção modula para o tom maior (0:54, no vídeo abaixo). João primeiro nos apresenta o acorde de tônica em sua configuração normal, para logo depois tocá-lo invertido, com o quinto grau no baixo (0:58), adicionando um fio melódico que leva da sexta do acorde para sétima maior. Ao mesmo tempo, essa alteração é acompanhada por uma mudança na disposição rítmica (o som do acorde dura mais) e por uma mudança no dedilhado das cordas. Em 2 segundos João cava um tempo inteiramente novo dentro da canção, uma janela clara que anuncia a mudança de estação, e tudo isso com uma substituição musical mínima, apoiada apenas na revelação efêmera de notas agudas de felicidade – notas que estavam, justamente, dentro do acorde mais banal, a tônica.
Passei dias tirando Da Cor do Pecado. João disse a Aderbal que ficou preparando um ano a canção de Bororó, refazendo-a trecho por trecho. Contei cerca de noventa mudanças de acordes, e é possível (quase certo) que eu tenha engolido algumas moscas – Aderbal contou 110 mudanças em Pra que Discutir com Madame, na versão do disco gravado em Montreux, e quase 150 na versão italiana. Entre momentos de grande dificuldade e outros de satisfação, fui desfazendo, fio a fio, a intricada teia polifônica tecida pela aranha de Juazeiro. Todos os caminhos melódicos que circulam livres sob os acordes, as junções perfeitas entre a dimensão horizontal e melódica, e a dimensão vertical e harmônica. João realça esses caminhos ressaltando sutilmente notas específicas dentro do acorde. É um prodígio de concentração e habilidade. Difícil entender como consegue dar conta de tamanha simultaneidade. Como consegue manipular com tal consciência e precisão tantos parâmetros escapadiços, parâmetros dinâmicos. Como consegue conciliar num gesto a dimensão temporal e a dimensão espacial da música. Como domina a dialética entre movimento e suspensão, peso e dispersão, concentração e rarefação. E isso porque eu ainda nem falei do papel da voz…
Pois quando vou tirar no violão as versões de João, a voz coloca um problema específico. Sou obrigado a cantar junto com o que vou tocando. A voz é, de fato, a “sétima corda” do violão. Foi uma estratégia consciente de João: adequar seu timbre de voz ao timbre do violão. Melhor dizendo, cantar na mesma faixa de frequência em que soam as cordas. Não era o que ele fazia no início da carreira, nos anos que antecedem a bossa nova. O resultado disso é que a voz mergulha no mesmo caldo sonoro do violão – está dentro do ambiente harmônico, participa dele e, mais importante, ajuda ativamente a constituí-lo. Sua colocação ambígua faz com que ela seja ao mesmo tempo a “sétima corda” do violão e a voz que canta uma letra. Ao contrário do que acontece com a maioria dos cantores, a voz não está sempre “na frente”. Por vezes ela recua, deixando-se cercar pela floração harmônica, tornando-se apenas mais um dos elementos do ecossistema sonoro. Em outros momentos ela se expande – em geral, não tanto pelo volume, mas pela qualidade da nota alcançada, ou pelo ritmo desencaixado, ou pela textura que as palavras imprimem ao tecido musical – e aí os sons do violão formam em torno dela uma aura brilhante, uma coroa de luz, um verdadeiro eclipse lunar.
Lembro de um comentário de José Miguel Wisnik sobre o uso da voz na canção Eclipse, de Lecuona. Ao modificar seu timbre, deixando-o mais anasalado e encoberto, João cria uma veladura, fazendo com que a voz tenha o efeito de um eclipse sobre a canção. Trata-se de um fino jogo de figura e fundo. Nesses momentos, costumo mudar de posição em relação às caixas de som. Tomo distância da fonte sonora, vou para o fundo da sala. Às vezes, deixo o som bem baixo, beirando o silêncio. Existem dimensões da música de João que só acessamos quando a escutamos e a ouvimos ao longe…