Em uma madrugada de domingo – precisamente em 11 de dezembro de 2011 –, Luís Cláudio Lula da Silva despejava tinta sobre o gramado do Estádio do Ibirapuera, em São Paulo. Ao lado de três ajudantes, ele se apressava para retocar as linhas de cinco jardas do campo onde, horas mais tarde, as equipes do Vila Velha Tritões e do Corinthians Steamrollers fariam a final do Touchdown – o equivalente ao último jogo do Brasileirão no mundo do futebol americano. Ainda que o serviço pudesse ser feito por estranhos, ele fez questão de pôr a mão na massa. O evento era quase um momento de consagração para o caçula do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Como diretor da LFT Marketing Esportivo e sócio majoritário da competição, o filho de Lula havia reunido dezessete equipes de sete estados, e dava os primeiros passos em direção a gordos patrocínios e transmissões em canais de abrangência nacional – um feito inédito na história do esporte no Brasil. Chamava ainda mais atenção o fato de ele ser alguém estranho ao esporte. Antes de entrar no Touchdown, ele jamais tivera qualquer contato profissional com o futebol americano.
Luís Cláudio Lula da Silva construiu sua carreira – que teve certa repercussão na imprensa por motivos familiares óbvios – como preparador físico do Corinthians, time do qual o pai era um dos torcedores mais ilustres. Também desempenhou a mesma função no São Paulo, no Palmeiras e no Santos. Daí, a estranheza quando veio à tona o fato de ser ele o operador do maior torneio brasileiro de futebol americano, esporte pouco popular que, na edição anterior do campeonato, tivera 10 mil espectadores na soma de público dos dezessete jogos.
A história de como ele passou a operar o maior torneio nacional tem ingredientes pitorescos, como um racha interno, brigas entre dirigentes e o padrinho do campeonato e uma rebelião de times que esvaziou a competição a ponto de feri-lo quase de morte.
A liga se organizou formalmente em 2008, juntando times que participavam de diferentes campeonatos amadores pelo Brasil. Os torneios aconteciam em redutos locais de aspirantes a atletas e eram frequentados apenas por aficionados no Rio de Janeiro, em São Paulo e Santa Catarina. Era latente o desejo dos atletas amadores de criar um campeonato interestadual, que comportasse todas as equipes do país. Um deles era Mario Lewandowski, fundador e linebacker do São Paulo Storm, sobrinho do ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski – cuja família, que também é de São Bernardo do Campo, tem estrita ligação com os Lula da Silva. Por meses, Lewandowski tentou se articular com outros dirigentes e atletas para viabilizar a competição.
O projeto teve o impulso necessário em dezembro de 2008, quando Lewandowski convenceu o locutor André José Adler a se unir ao grupo. Dono da voz rouca que narrava os jogos da liga norte-americana NFL durante as transmissões da ESPN nos anos 90 no Brasil, Adler amargava o desemprego havia um tempo. Mesmo assim, mantinha a veia de ícone do futebol americano entre os aficionados brasileiros. O convite de Lewandowski o catapultou para o meio da cartolagem.
Além de conhecedor do futebol americano, o locutor tinha bom trânsito na imprensa e um trunfo digital: era administrador da Lista Redzone, um mailing com milhares de entusiastas do esporte no Brasil. A ideia da organização era convidá-lo para ser conselheiro da competição e “chamar mídia”, como lembrou Lewandowski, por telefone. Ele aceitou, mas impôs uma condição: o torneio deveria se chamar Touchdown, em alusão ao programa homônimo que ele próprio apresentara durante uma passagem pela Hungria – a família de Adler é natural de Budapeste e seu nome de nascença é Endre József Adler.
Assim nasceu o grupo gestor da competição. Os custos do torneio seriam rateados entre equipes e atletas. De agosto a dezembro de 2009, oitos times de seis estados disputaram dezessete partidas entre si. A última, entre São Paulo Storm e Rio de Janeiro Imperadores, foi marcada por um episódio inusitado: no intervalo, enquanto os cariocas venciam por 14 a 0, um raio fulminou um gerador e deixou o Estádio do Ibirapuera às escuras. A segunda metade final só aconteceria vinte dias depois, em dezembro, na cidade de Sorocaba. Um half time e tanto.
Apesar do incidente, a primeira edição do campeonato terminou com um legado promissor. Até aquele momento, o Touchdown fora o maior torneio de futebol americano já realizado no Brasil. A repercussão extrapolou os limites da blogosfera especializada e ganhou espaço em veículos como Gazeta do Povo, Globo Esporte, UOL e ESPN – este, com inserções semanais no quadro The Book is on the Table, negociadas por Adler. Nos bastidores, contudo, alguns conflitos minavam a relação entre os gestores do torneio.
“O Adler estava lá para dar conselhos, sugestões. Em tese, nenhuma decisão era dele. Na prática… Era um sujeito expansivo”, comentou Lewandowski, medindo as sílabas como quem parece escolher com cuidado o adjetivo. Adler determinou, por exemplo, que todos os jogos deveriam contar com um narrador gabaritado e devidamente remunerado – o cachê seria de 1 mil reais por partida. “Ele inventou isso para ele próprio narrar, porque precisava da remuneração”, lembrou Ricardo Trigo, diretor do Corinthians Steamrollers. Para um campeonato no qual os atletas pagavam do próprio bolso para jogar, o investimento era questionável.
Havia, ainda, rumores de que Adler usava o material de divulgação – custeado pelas próprias equipes – para ganhar dinheiro da ESPN. Adler estaria sendo pago pelas inserções no canal, enquanto os gastos de produção recaíam sobre os times. Em fevereiro de 2011, em carta aberta dirigida às equipes do torneio, se explicou: “Vendi para a ESPN a ideia de reportagens para o The Book is on the Table. A verba com a qual queriam que eu fizesse quatro [programas] eu desdobrei em oito, para dar o máximo de visibilidade [à competição]. Nas primeiras matérias, apenas times que pudessem custear minhas viagens e captação de imagens apareceram.” A carta não convenceu os dirigentes que descobriram a transação, e a ESPN, até hoje, nega a versão: “Nenhum tipo de direito ou conteúdo foi comprado de André José Adler”, afirmou, em nota.
A atuação de Adler causou fissuras irreversíveis no grupo. Insatisfeitos, os oito times abandonaram o Touchdown de uma só vez e anunciaram um campeonato concorrente – a Liga Brasileira de Futebol Americano (LBFA), com um total de quatorze times de sete estados. Vendo seu torneio ferido de morte, Adler reagiu rápido. Com acesso a dirigentes e jogadores de outras equipes, ele conseguiu tapar o buraco com sete novos times de cinco estados. O esforço foi insuficiente, e seu empreendimento ficou à sombra da novíssima LBFA, dona das estrelas emergentes dos gramados. A Liga Brasileira reinou absoluta em 2010, mas atritos entre os dirigentes devolveram algumas equipes para Adler. Não seria suficiente para reerguer o Touchdown. Sem um plano aparente, somente um milagre poderia salvar seu torneio da dissolução. E ele veio, por meio de um telefonema.
Não se sabe ao certo como Adler e Luís Cláudio Lula da Silva se aproximaram. Quem conviveu com eles costuma dizer que partiu do filho do ex-presidente a aproximação: Lula da Silva teria ligado para Adler – que não o conhecia até então – e se apresentado como um entusiasta de futebol americano. O caçula de Lula teria feito, então, uma proposta: queria investir no Touchdown. Nos bastidores, Lula da Silva já admitia a interlocutores próximos que desejava sair do futebol de campo para se tornar gestor na área de esportes, em qualquer esporte. Com o Touchdown em crise e ameaçado pela novíssima LBFA, Adler viu nele uma boia de salvação.
Em setembro de 2011, Adler convidou os dirigentes das equipes remanescentes no Touchdown para uma reunião em um hotel em Guarulhos. Queria causar impacto, girar novamente os holofotes para o seu torneio. Reunidos, os diretores não imaginavam o que ele estava prestes a anunciar. Diante de uma plateia atônita, apresentou o novo investidor e diretor da competição: Luís Cláudio Lula da Silva. “Ninguém jamais tinha ouvido falar nele”, contou-me um atleta presente na reunião. Lula da Silva pagou 70 mil reais – como se fosse um passe – para fazer parte da diretoria, e prometeu investimentos.
Com o filho do ex-presidente no jogo, o Touchdown decolou. A LFT, capitalizada, entrou com dinheiro e poder de articulação com patrocinadores; já Adler manteve a aura e o carisma, moldando na liga uma personalidade capaz de impulsionar a audiência. Rapidamente, o futebol americano alcançava jardas inéditas de projeção e faturamento no Brasil. A empresa fechou contratos de patrocínio com marcas como Caoa Hyundai, Budweiser e TNT (energético do Grupo Petrópolis).
Aos times – entre dezoito e 20, dependendo da edição –, a LFT arrumou uma bolsa anual de 20 mil reais. A organização também cedia ambulâncias e pagamento de árbitros. “Era lindo”, disse-me um ex-dirigente. Com a transmissão da final realizada ao vivo pela ESPN, o Touchdown tinha conseguido a projeção que o torneio oficial da CBFA, a liga dissidente, jamais alcançara. Havia engolido a concorrência e voltado ao jogo em grande estilo.
O sucesso parecia ganhar uma curva exponencial quando um evento trágico desabou sobre as equipes: sem que tivesse anunciado qualquer doença publicamente, André José Adler morreu fulminado por uma parada cardíaca em dezembro de 2012, em um quarto de hotel em São Paulo, aos 68 anos. Sem que seus parceiros soubessem, o locutor colecionava uma série de problemas respiratórios, como um enfisema em decorrência do tabagismo e uma pneumonia. Faltavam seis dias para partida entre Vasco da Gama Patriotas e Corinthians Steamrollers, na segunda grande final organizada em parceria com a LFT. “Eu tinha o André como um pai, alguém da família”, lembra Trigo. O locutor foi homenageado por sua antiga casa, a ESPN, durante um programa. Mesmo abalado, Luís Cláudio Lula da Silva continuou tocando o projeto.
Após a morte do sócio, ele articulou sozinho passos importantes para a liga. Fez vingar um programa semanal – o Bandsports Football – na grade da Bandsports, pertencente ao Grupo Bandeirantes de Comunicação. Em 2014, a final do torneio foi transmitida com exclusividade pelo canal FOX Sports 2. A soma de dinheiro transferida diretamente às equipes era ainda irrisória, mas as transmissões dos jogos e a projeção prometida credenciavam os times a buscar patrocínios mais gordos.
A trajetória promissora do Touchdown começou a ser interrompida por volta das 6h da manhã de 26 de outubro de 2015, uma segunda-feira, quando dois carros da Polícia Federal e um da Receita Federal estacionaram no número 450 da rua Padre João Manuel, nos Jardins, em São Paulo.
Os agentes ficaram por duas horas no conjunto 74, onde funcionava a sede da LFT Marketing Esportivo. Deixaram o local levando sacos de documentos. Em pouco tempo, os sites dos principais veículos do país estampavam em suas páginas: “PF faz busca e apreensão em empresa de filho de Lula”, “Operação Zelotes prende cinco e faz buscas em empresa de filho de Lula”, “PF prende lobista e faz buscas em escritório do filho de Lula”, “Na nova etapa da Zelotes, PF faz busca em empresa de filho de Lula.” Autorizada pela então juíza substituta da 10ª Vara Federal, Célia Regina Ody Bernardes, a ação de busca e apreensão fazia parte da Operação Zelotes, que investigava casos de corrupção no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o Carf.
A magistrada suspeitava que a LFT havia sido usada para lavar o dinheiro de um esquema de compra de medidas provisórias que favorecia a indústria automotiva. Segundo os investigadores da PF, o lobista Mauro Marcondes Machado, dono da consultoria Marcondes & Mautoni Empreendimentos, havia recebido 8,4 milhões de reais das montadoras Caoa Hyundai (patrocinadora oficial do Touchdown) e MMC Automotores – controladora da Mitsubishi – para passar uma medida provisória prorrogando incentivos fiscais ao setor automotivo. Desse montante, Marcondes teria repassado pelo menos 1,5 milhão de reais às contas da LFT.
Àquela altura, o Touchdown estava na fase dos playoffs, com as partidas decisivas que antecedem a grande final. E não demorou para que a notícia da devassa na sede da LFT começasse a repercutir no grupo de WhatsApp do torneio – que incluía o telefone de Lula da Silva. Atletas e dirigentes pareciam desnorteados, mas ele tratava de tranquilizá-los, alegando que todos os impostos estavam pagos e não havia o que temer. Em 11 de novembro de 2015, Lula da Silva aumentou o capital da Touchdown, saltando dos mil reais iniciais para 501 mil reais, em um sinal claro às equipes.
Pelo WhatsApp, os dirigentes pediram, então, para conferir as planilhas que apontavam de onde vinham os recursos da Touchdown Promoção de Eventos Esportivos, a empresa criada com Adler para gerenciar a competição – eles desconfiavam da ligação do filho do ex-presidente com a máfia do Carf. Lula da Silva se negou a revelá-las. Diante da negativa, num grupo de WhatsApp paralelo, sem ele, os representantes dos times começavam a articular uma nova debandada.
À Polícia Federal, o filho de Lula alegou que os pagamentos recebidos pela LFT se referiam a quatro projetos desenvolvidos para a empresa de Marcondes. O advogado Cristiano Zanin Martins – que também defende o ex-presidente e outras personalidades do PT investigadas na Operação Lava Jato – divulgou uma nota usando um argumento cronológico: a medida provisória sob suspeita havia sido editada em 2009 – logo, não poderia contar com a participação da LFT, que havia sido criada somente em 2011. “A simples observação da data da constituição da empresa é o que basta para afastá-la de qualquer envolvimento com as suspeitas levantadas”, afirmou Zanin, na época.
Em meio ao caos, em 2 de fevereiro de 2016, o site oficial do torneio divulgou a lista das dezesseis equipes que disputariam o título daquele ano. No mesmo dia, a LFT injetou mais 500 mil reais no Touchdown – uma dose de adrenalina financeira para tentar manter a liga viva. Quarenta e dois dias depois, Ricardo Trigo, do Corinthians Steamrollers, ligou para Lula da Silva. Durante uma conversa curta por telefone, ele disse: “Ó, está todo mundo inseguro. Ninguém sabe o que fazer, mas eu estou fora.” A conversa rápida terminou com o agradecimento de Lula da Silva: “Obrigado pela honestidade.” Depois da ligação, Trigo saiu do grupo de WhatsApp.
Os outros dirigentes fizeram o mesmo. Lula da Silva assistiu sozinho à debandada, recebendo notificações de um a um à medida em que saiam. No dia 16 de março, em seu perfil no Facebook, a organização do Touchdown informou que o campeonato estava suspenso, mas os times já o consideravam definitivamente encerrado.
Um relatório de investigação da Procuradoria da República no Distrito Federal, com data de 9 de dezembro de 2016, envolveu o ex-presidente Lula. Nos documentos, a Polícia Federal apontou que a LFT teria sido usada como ponte para os pagamentos que a máfia do Carf pretendia destinar ao pai de Luís Cláudio. O ex-presidente teria feito lobby – amparado pela então presidente Dilma Rousseff – para a compra de 36 caças da empresa sueca Saab, em 2014, e também para a conversão em Lei da medida provisória 627, de 2013, que alterava a tributação dos lucros obtidos por multinacionais brasileiras.
“Entre junho de 2014 e março de 2015, a empresa Marcondes & Mautoni efetuou nove transferências bancárias à LFT Marketing Esportivo (…), no total de R$ 2.552.400,00”, aponta o relatório, valor ainda maior do que o despacho usado para a batida policial na sede da empresa, meses antes. A documentação é farta e traz uma anotação enigmática sobre um dos encontros entre os envolvidos, anotada de modo telegráfico: “falou do filho que a Caoa deve 300 mil por ano futebol americano”.
Em novembro de 2016, o futebol americano voltaria a ser citado nas investigações, desta vez no âmbito da Operação Lava Jato. Durante um depoimento à Procuradoria-Geral da República, o ex-diretor de Relações Institucionais da Odebrecht, Alexandrino Alencar, afirmou que havia um acerto entre Lula e Emílio Odebrecht, o patriarca do grupo empresarial, para assessorar Luís Cláudio Lula da Silva no começo da Touchdown.
No Instituto Lula, em 2011, Emílio teria pedido ajuda ao ex-presidente para tornar “mais fluido” o relacionamento entre Marcelo Odebrecht, seu filho e então presidente da companhia, e Dilma Rousseff. Em contrapartida, Lula reivindicou que o empreiteiro também desse uma mãozinha nos negócios de seu caçula. Alexandrino ficou encarregado de fazer o “coaching” e a Odebrecht pagaria 90% do custo com marketing da Touchdown. O esquema teria durado três anos. Mas o trabalho não vingou porque o dono da LFT, Luís Cláudio, seria “muito turrão”, segundo afirmou o delator à Justiça.
Mais tarde, outro patrocinador da liga, o Grupo Petrópolis, também caiu na rede da Lava Jato. Segundo denúncias da força-tarefa, a empresa – que participava do torneio com a marca TNT – servia como uma espécie de barriga de aluguel das propinas gerenciadas pela Odebrecht. Depois de o dinheiro ilícito ser enviado ao exterior, empresas do Grupo Petrópolis, como a Praiamar e a Leyroz de Caxias, o repassavam para campanhas de políticos, sob ordens da empreiteira.
Lula pai e Lula filho agora brigam na Justiça para que sejam aceitas oitenta testemunhas de defesa no esquema deflagrado pela Zelotes. “Uma pena”, disse Trigo. “No futebol americano, o Luís Cláudio conseguiu fazer aquilo que era preciso, mas para o qual faltava recursos. Era muito cabeça-dura, mas era bom administrador.”