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    Ilustração: Carvall

questões da sexualidade

Transição de gênero às cegas

Diante da baixa oferta de serviços especializados na rede pública de saúde, pessoas trans realizam processo de mudança por conta própria e sem acompanhamento médico 

Felippe Aníbal | 08 mar 2022_11h20
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Quatro anos atrás, Maiara Amaro chegou ao ápice da insatisfação com a própria aparência. Mulher transexual, ela se sentia “aprisionada” em um corpo com o qual não se identificava. Diariamente, recordava-se de quando, aos 7 anos, desenhava nos cadernos escolares uma mulher “alta e bonita” e pensava: “Quando crescer, quero ser como ela.” Adulta, ao se olhar no espelho, porém, ela se sentia distante do corpo com que tanto  sonhava na infância. Desenvolveu ansiedade e sintomas depressivos. Em uma das crises, pegou uma gilete para se mutilar, mas foi impedida pela mãe, que percebeu o desespero da filha. Após o episódio, Maiara começou a tomar hormônios femininos por conta própria, sem prescrição médica e sob “orientação” de colegas que conheceu nas ruas de Colombo, na região metropolitana de Curitiba, município em que reside.

Quase ao mesmo tempo, ela se cadastrou para ser atendida no Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais (CPATT), de Curitiba, uma das cinco unidades públicas do país que, além de prestar os serviços especializados de saúde, fornecem o tratamento hormonal pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A fila de espera, no entanto, era longa. Maiara continuou a tomar hormônios sem acompanhamento médico por três anos, até dezembro de 2021, quando passou pela primeira consulta no CPATT. Atualmente, ela espera o resultado de exames endocrinológicos para começar a retirar gratuitamente os hormônios, que serão receitados de acordo com sua condição clínica. A mulher trans de 26 anos de idade também passará por acompanhamento psicológico e social na unidade.

Desde que se assumiu como mulher trans, Maiara Amaro nunca mais teve um emprego formal – Fotos: Acervo pessoal

Atualmente, a cada dez dias Maiara gasta do próprio bolso cerca de 80 reais na compra de comprimidos que atuam como bloqueadores hormonais e de anticoncepcionais, que contêm hormônios femininos. Quando o estado passar a lhe fornecer gratuitamente os medicamentos, o dinheiro gasto vai ajudar no orçamento doméstico. Maiara, que mora com a mãe, chegou a trabalhar como vendedora de uma loja de roupas, ainda antes de começar a transição. Desde que se assumiu como mulher trans, contudo, viu as portas se fecharem e nunca mais teve um emprego formal. Sem conseguir trabalho há três anos, precisou recorrer à prostituição.

“Eu comecei a transição com a ajuda de uma moça trans que conheci na rua. Ela me disse que eu deveria começar a reposição hormonal imediatamente, porque quanto mais velha eu começasse, mais lentos seriam os efeitos. Eu me sinto aprisionada no meu corpo, desenvolvi ansiedade e depressão. Conheço meninas que tentaram se matar ou se cortar, como eu tentei”, contou Maiara. “Tudo isso porque somos invisíveis para o Estado. Não temos acesso a moradia, a maioria de nós precisa ir para a prostituição e não temos condições ou assistência para ser quem somos”, acrescentou. 

A oferta diminuta de serviços de saúde especializados no atendimento a pessoas transexuais confirma o que Maiara diz: a exclusão é praticamente uma regra. Dados do DataSus mostram que, entre 2015 e 2021, foram feitos pouco mais de 21,1 mil atendimentos para tratamento hormonal no processo de transição de gênero ou preparatório para cirurgia de redesignação de sexo, por meio do serviço público de saúde. Os procedimentos se concentram nos cinco únicos ambulatórios do SUS – no Paraná, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo – destinados a atender transexuais e que oferecem tratamentos hormonais. Outras unidades da federação mantêm ambulatórios especializados, mas sem o fornecimento de hormônios pelo serviço público. A maior parte dos atendimentos hormonais pelo SUS – 13,4 mil – foi realizada no Paraná. Ao longo dos últimos seis anos, esses serviços custaram pouco mais de 1,1 milhão de reais ao SUS. Em 2021, os tratamentos hormonais para pessoas trans consumiram 332 mil reais, o equivalente a 0,0002% do orçamento do Ministério da Saúde.

“Se a gente pensar na dimensão continental deste país, é um serviço que não tem alcance e que não consegue absorver todas as demandas da população trans. Para sanar isso, seria preciso um aperfeiçoamento muito grande, para que houvesse capilaridade e orientação já na atenção básica, para que a pessoa transexual não recorra a tratamentos clandestinos ou por conta própria. Por isso destacamos esses ambulatórios especializados e o acesso aos tratamentos pelo SUS como fundamentais”, disse Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Aos 56 anos, ela mesma fez tratamento hormonal ao longo das décadas de 1980 e 1990, seguindo a orientação de colegas, sem supervisão médica.

Mesmo com pouca oferta e estrutura enxuta, o atendimento nos ambulatórios especializados faz a diferença para travestis e transexuais que precisam dos serviços. Em sua primeira consulta no CPATT, em dezembro do ano passado, por exemplo, Maiara já sentiu a diferença em relação a outras unidades de atenção básica que tinha procurado anteriormente. “No postinho de saúde, eu tinha sido atendida com muita transfobia. Um enfermeiro dizia, apontando para mim: ‘Como a gente vai explicar isso para as crianças?’ No CPATT, foi completamente diferente. Fui atendida por uma enfermeira que humaniza muito o atendimento, que acolhe. Fez muita diferença para mim”, disse Maiara.

Apesar de responder por 64% dos atendimentos hormonais realizados pelo SUS nos últimos seis anos, o ambulatório do Paraná também tem suas limitações. Habilitado pelo Ministério da Saúde em 2016, o CPATT tem uma estrutura relativamente simples: ocupa um anexo com seis consultórios, uma sala de aplicação e uma sala de reuniões no edifício da 2ª Regional de Saúde Metropolitana, em um prédio histórico no Centro de Curitiba. A equipe conta com uma médica, três psicólogos, uma assistente social, uma enfermeira e uma técnica de enfermagem. Por se tratar de um serviço especializado, para ter acesso ao atendimento os pacientes precisam ser encaminhados pela atenção básica (os postos ou unidades básicas de saúde). Desde o início de suas atividades, a unidade atendeu a 881 usuários. Atualmente, há exatos quatrocentos pacientes ativos recebendo algum tipo de acompanhamento e cerca de seiscentos na fila de espera. 

“A maioria dos pacientes já chega com a transição concluída ou em andamento, tomam os hormônios por conta própria há muito tempo, às vezes em quantidades erradas. Fazemos uma análise caso a caso. O atendimento é individualizado, com acompanhamento especializado”, explicou a coordenadora do CPATT, Andressa Verchai de Lima. “Temos uma estrutura pequena, mas que tem feito a diferença para quem é atendido. Os pacientes ainda sofrem muita discriminação lá fora, em unidades básicas. Também temos relatos de dificuldades de inclusão na fila”, acrescentou.

Ainda que o CPATT tenha sido criado para atender a transexuais de todo o Paraná, o público do interior do estado tem enfrentado barreiras para acessar os serviços. Até agora, o ambulatório recebeu pacientes de 82 dos 399 municípios paranaenses. Na percepção dos profissionais do próprio ambulatório, a distância é um dos entraves que afasta usuários de outras regiões. Outro ponto é a falta de capacitação de servidores da atenção básica, que não encaminham corretamente o público-alvo ao ambulatório especializado. “Tem municípios que nem sequer sabem da existência do CPATT e, assim, não fazem o encaminhamento. A barreira maior está lá na ponta, perto da residência dos possíveis usuários”, comentou Andressa.

Desde 2016, Rose Annie Macfergus, de 52 anos, é paciente do CPATT, onde mensalmente passa por acompanhamento endocrinológico e recebe os hormônios que precisa tomar. Moradora de Paranavaí, a mais de 500 km de Curitiba, ela precisa sacolejar por horas em longa viagem em ônibus da prefeitura ou de linha. Em geral, sai de casa antes da meia-noite para chegar à capital no início da manhã seguinte. Ela aponta que a cada viagem, as transexuais que residem em sua região perdem três dias de trabalho, o que acaba as desencorajando a seguir no tratamento. 

Rose Annie Macfergus precisa viajar horas para chegar onde recebe acompanhamento endocrinológico – Foto: Acervo pessoal

“Eu cheguei a viajar por dez horas para ser atendida. As pacientes precisam passar o dia em Curitiba, sem dinheiro para comer. A maioria das meninas acaba desistindo do atendimento”, contou Rose. “As cafetinas cobram por dia. Estamos falando de pacientes que são empurradas à prostituição, que precisam fazer um programa para comprar um lanche. Não podem perder três dias de ‘ponto’. Como conseguem ir a Curitiba? Eu não entendo por que esse atendimento não é descentralizado. É desumano a trans ser obrigada a fazer uma viagem dessas, quando podia ser atendida na própria cidade”, acrescentou.

O CPATT até desburocratizou o processo de acesso aos medicamentos. Para retirar os hormônios, os pacientes podem preencher um formulário autorizando outra pessoa – o motorista do município, por exemplo – a pegar os medicamentos na farmácia da Secretaria de Estado da Saúde. Assim, uma pessoa trans que esteja em condições clínicas estáveis precisaria ir ao ambulatório em Curitiba uma vez a cada seis meses, para renovar a receita médica. 

“Reconhecemos que existe essa dificuldade de o público-alvo vir pra cá. Um paciente do interior não consegue fazer acompanhamento psicológico aqui, porque não tem condições de vir a cada quinze dias. Seria melhor se tivesse um ambulatório em cada macrorregião do estado, mas ainda estamos em boas condições em comparação a outros estados”, contemporiza Andressa, a coordenadora do CPATT.

A falta de acompanhamento especializado pode trazer uma série de complicações a quem faz a transição de gênero. Nos homens trans, os males mais comuns são obesidade, hipertensão e diabetes. Nas mulheres, a falta de supervisão médica pode provocar problemas circulatórios graves, hipertensão, derrame e infarto. Por se tratarem de doenças comuns, não há levantamentos específicos sobre essas enfermidades entre os transexuais, mas não faltam exemplos. Quatro anos atrás, a técnica de enfermagem Chopelly Santos, de 40 anos, começou a sentir dores agudas e muita coceira na perna. Foi diagnosticada com trombose, chegou a passar por cirurgias e, desde então, precisou adotar uma série de cuidados. 

“O trombo já danificou meus vasos linfáticos. Se eu andar muito, acumulo líquido e meus tornozelos ficam inchados. Preciso tomar um medicamento preventivo para não dar enfarto nem embolia”, disse a mulher trans, moradora de Recife, Pernambuco. “Isso tudo porque eu fiz uso demasiado de hormônios sem acompanhamento, por um período muito estendido. É claro que a falta de acesso a atendimento pelo serviço público contribuiu muito pra isso, mas eu não me arrependo. Eu precisava fazer a minha transição”, ressaltou.

 

No interior do Paraná, Rose Annie Macfergus não esconde o rancor por jamais ter conseguido realizar seu maior sonho: passar por uma cirurgia de redesignação de sexo – outro procedimento do processo transexualizador. Com uma história de vida forte, em que relata ter sido vítima de uma série de violências (de estupro e agressões a ter fugido de casa temendo ser assassinada), ela tentou suicídio três vezes. Na última, em 2016, tomou três cartelas de antidepressivos de uma só vez. Chegou a ser hospitalizada com gravidade, mas sobreviveu. Recente relatório divulgado pelo Grupo Gay da Bahia aponta que 24 pessoas da população LGBTI+ cometeram suicídio no ano passado.

“Eu não tive vida. Só tive que lutar para ser eu, no soco, na porrada, vendo gente como eu morrer todos os dias. Nenhuma trans tem direito a uma transição decente. Quem se matou, não foi porque era prostituta ou trans, mas porque sabia que ia ter que viver incompleta. O que mais me dói é saber que vivi tudo o que vivi sem conseguir me tornar quem eu queria ser desde os 12 anos”, disse Rose. “Todo mundo fala em inclusão, mas a vida inteira o Estado tem sido omisso e nos enganado. Você me perdoe, mas eu só consigo sentir ódio”, emendou, com firmeza.

A julgar pelos números, a raiva de Rose tem justificativa. O acesso a cirurgias de redesignação de sexo pelo SUS é ainda mais restrito que outros atendimentos. Segundo o Ministério da Saúde, apenas 180 procedimentos foram realizados nessas unidades, entre janeiro de 2016 e dezembro de 2021: média de 36 por ano. Segundo a Antra, a fila de espera para passar pela operação é de mais de dez anos. Apenas cinco hospitais estão habilitados a fazer os procedimentos gratuitamente, nas cidades de Goiânia, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. 

Na região metropolitana de Curitiba, Maiara Amaro tenta não perder as esperanças. No ano passado, ela chegou a orçar o serviço em clínicas particulares, mas o preços a assustou: 40 mil pela cirurgia de redesignação de sexo, Além disso, ela gostaria de passar pelo procedimento de feminilização facial (40 mil reais) e de implantação próteses de silicone (10 mil reais). A partir do posto de saúde da atenção básica, ela se inscreveu na fila do SUS, mas se frustrou com a previsão da espera. Ao abordar o tema, a mulher fica com a respiração entrecortada e luta para conter as lágrimas.

“Me desculpa, mas isso mexe muito comigo. Eu sinto uma disforia muito grande. Toda vez que eu paro para pensar, eu me sinto como uma mulher incompleta. Por eu não ter uma vagina, penso que vou ser diminuída, que vão ter vergonha de mim. Isso é terrível. Eu só queria ter um corpo em que eu me reconhecesse. Acho que tenho esse direito”, disse. 

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