Entre um atendimento e outro, o telefone da obstetra Helena Paro tocou: era um colega pedindo orientações para tentar ajudar uma menina de 10 anos, violentada e grávida de seu estuprador no Espírito Santo. O caso ganharia repercussão nacional, e a gravidez avançada, de mais de vinte semanas, impediria o aborto legal, afirmavam alguns. A médica atendera um caso semelhante em abril deste ano, quando uma mulher de 26 anos, grávida de mais de 22 semanas, procurou o Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual), coordenado por ela e ligado ao Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia. A jovem fora estuprada e queria interromper a gestação. A equipe do Nuavidas realizou o procedimento e elaborou um protocolo detalhando recomendações legais e médicas sobre o aborto legal acima de vinte semanas de gravidez – e explicitando que, pela legislação brasileira, não há limite de tempo para interromper uma gestação decorrente de estupro. Nesse depoimento, a obstetra de 42 anos relata sua rotina num serviço de aborto legal: o medo vivido pelas mulheres estupradas, o preconceito dos colegas médicos e as batalhas cotidianas para garantir um direito.
(Em depoimento a Fernanda da Escóssia)
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Quinta-feira, 13 de agosto de 2020
Tomo conhecimento do caso da menina de 10 anos, grávida de seu estuprador, no meu curto intervalo de almoço. Estou em casa, ao lado de minha filha de 16 anos, que se recusa a escutar mais uma vez minha indignação com casos de violência sexual divulgados na mídia. Mensagens de WhatsApp chegam dos grupos relacionados à saúde da mulher de várias partes do país. Perguntam se conheço algum profissional dos serviços de saúde da cidade da menina. Acesso meus arquivos com contatos dos representantes dos serviços brasileiros de atenção a pessoas em situação de violência sexual. Constam dois serviços no Espírito Santo: um em Santa Teresa, outro em Colatina, mas nenhum tem representantes no nosso grupo de WhatsApp (criado após um fórum sobre violência sexual direcionado a profissionais de saúde, organizado em setembro do ano passado pela equipe do Nuavidas). O grupo no WhatsApp tem representantes de mais de trinta serviços que prestam atendimento integral a pessoas em situação de violência sexual, incluindo o aborto previsto em lei.
Tenho reunião com a gestão do hospital para discutir a implementação do atendimento, por telemedicina, a mulheres em situação de aborto previsto em lei. Diante da pandemia de Covid-19, discutimos os trâmites necessários para o tratamento por telemedicina (as pacientes poderiam optar pelo aborto em casa com o uso de medicação e seriam telemonitoradas pela equipe). Esse serviço não apenas facilitará a gestão dos leitos do hospital (pois não precisaremos internar meninas e mulheres com até nove semanas de gravidez, elegíveis para o aborto acompanhado por teleatendimento), mas protegerá pacientes e profissionais da Covid-19. Também facilitará a rotina cansativa de nossa equipe, com várias idas e vindas ao hospital. Somos apenas duas médicas (eu e minha amiga Renata) no Nuavidas, atendendo mulheres em situação de violência sexual e abortamento previsto em lei. Na reunião, revivo a mesma dificuldade quando da implementação do Nuavidas em 2017. Colegas preferem judicializar a questão, pois têm receio de lidar com o aborto previsto em lei, temerosos por serem penalizados (o estigma do aborto como crime contribui para isso) mesmo após nossas exaustivas explicações de que todas as condutas estão previstas nas leis, portarias e resoluções brasileiras (parceiras do Direito redigiram o protocolo conosco). Alguns profissionais receiam que as mulheres possam utilizar a medicação recebida para vendê-la no mercado clandestino.
Só profissionais que nunca escutaram o desespero de meninas e mulheres grávidas de um estupro poderiam cogitar essa hipótese. No caso da menina capixaba, a desnecessária consulta aos órgãos da Justiça para que ela pudesse ter um direito assegurado reflete a insegurança dos gestores e profissionais de saúde com o tema do aborto. Saio da reunião sem decisão concreta sobre nosso protocolo.
Amanhã teremos o retorno de uma mulher grávida de um tipo de estupro muito recorrente: ela foi a uma festa, bebeu, mas não muito, e não se lembra de muitos fatos da festa… Algumas semanas depois, atraso menstrual, mas sem ter tido relação sexual naquele mês… Muitas mulheres só aí se dão conta de que sofreram um estupro. A paciente havia nos procurado bem no início da gravidez, com medo de que pessoas conhecidas tomassem conhecimento de sua situação. Entendo o medo da paciente. Há uma mensagem “subliminar” nos olhares de reprovação que profissionais de saúde nos passam – tanto para pacientes quanto para nós, médicas. Para muitos colegas, somos as pessoas que “vão fazer ‘a maldade’ com uma ‘criança’ que não tem culpa do estupro”. Precisamos urgentemente da aprovação do protocolo para o aborto legal por telemedicina. Antes de dormir, passo por algumas páginas do livro que estou lendo. Geralmente, esse é um momento de relaxamento, gosto de literatura ficcional, mas nessa semana estou lendo Breve História do Feminismo (Carla Cristina Garcia, 2011). Estou pronta para o dia seguinte.
Sexta-feira, 14 de agosto
Acordo cedo, preparo meu café. Sexta-feira é dia de atendimentos no ambulatório do Nuavidas. Temos nove mulheres agendadas e outra possível mulher em demanda espontânea. Procuro chegar mais cedo. No caminho para o hospital, vêm à memória as primeiras mulheres atendidas no serviço. A primeira mulher que teve acesso ao aborto previsto em lei em Uberlândia era universitária e foi estuprada pelo primo, durante férias na casa da tia. Em março de 2017, com o diagnóstico de gravidez, buscou ajuda na Unidade Básica de Saúde próxima à sua casa, onde foi orientada erroneamente que deveria registrar um boletim de ocorrência para ter acesso a seu direito (equívoco comum entre profissionais de saúde no Brasil, já que o tema da violência sexual não faz parte da maioria dos currículos dos cursos da área da saúde no país). Para ela, o registro do boletim de ocorrência estava fora de cogitação. Seu pai mataria seu primo e ele seria preso. É muito comum ouvirmos das mulheres violentadas o sentimento de responsabilidade pela proteção da própria família. Segundo a orientação da enfermeira da unidade, suas opções eram ou registrar o boletim de ocorrência ou iniciar o pré-natal.
E foi assim que a conheci, em uma consulta de pré-natal de uma gravidez com a qual ela não conseguia prosseguir. Ela me contou sua história de violência e mencionou a vontade de recorrer ao aborto ilegal. Orientei sobre seus direitos, sobre a ausência da exigência do boletim de ocorrência ou queixa policial. Pedi que não se castigasse por um crime do qual ela não tinha culpa: ela não merecia se arriscar em um aborto clandestino. Mas sabia que ela enfrentaria resistências. Desde que ingressei na Universidade Federal de Uberlândia como professora da Faculdade de Medicina, em 2011, sempre ouvi dizer que todos os ginecologistas do departamento concordavam em não realizar o aborto previsto em lei por alegação de “objeção de consciência”: “Aqui no hospital, ninguém faz aborto.” De fato, estou na Faculdade de Medicina da UFU desde 1996, quando ingressei no curso de medicina, e nunca vivenciei um caso sequer de aborto por gravidez decorrente de estupro durante o curso de graduação ou residência médica (hoje me dou conta de como o assunto é negligenciado nas escolas e nos hospitais). Porém, muitos desses colegas não alegam objeção de consciência quando precisam interromper gravidezes nos casos de risco de morte para a mulher e de anencefalia fetal. E assim, essa objeção de consciência apenas para o caso de gravidez em decorrência de estupro parece revelar muito mais uma desconfiança da palavra da mulher do que discordância autêntica por questões morais ou religiosas.
A nossa primeira paciente teria que ser resiliente para lutar por seus direitos. Coloquei-me a seu lado (obstetrícia, do latim obstare, remete à ideia de “estar ao lado”), dizendo que, mesmo com as negativas que ela receberia, poderia contar comigo. Eu a encaminhei ao hospital universitário e ela teve a negativa dos profissionais médicos do plantão. A paciente entrou com uma representação junto ao Ministério Público Federal de Uberlândia, que oficiou uma recomendação à gestão do hospital para que se fizesse cumprir o direito da mulher e que se organizasse o serviço para a atenção integral das mulheres vítimas de violência sexual (a tese usada pelo Ministério Público era a de que serviços de saúde não têm consciência e, portanto, não caberia a alegação de objeção de consciência a estabelecimentos de saúde). Assim nasceu o Nuavidas, com uma equipe transdisciplinar de profissionais da saúde (médicas, psicólogas, assistentes sociais, enfermeiras) e do direito (advogadas e assistentes sociais) que atendem pessoas em situação de violência sexual de Uberlândia e toda região do Triângulo Norte, toda sexta-feira.
Hoje foram atendimentos presenciais, remotos (por WhatsApp, Zoom e Meet), retornos de mulheres que passaram pelo aborto legal, gestantes, adolescentes, mães… todas em situação de violência sexual. Saio para o almoço bem tarde e volto rapidamente para o hospital. Resolvo dar um pulo na direção, precisamos tanto da aprovação do protocolo de aborto por telemedicina! Depois de mais uma hora, saio com a aprovação para um piloto do protocolo. Poderemos testar num primeiro caso para avaliar dificuldades, já que se trata de um fluxo novo de trabalho.
No meio da tarde, um colega me pede ajuda para busca de artigos e evidências científicas sobre riscos de gravidez na infância. Penso que ele deve estar tentando escrever algo para ajudar no caso da menina do Espírito Santo. Consigo enviar a ele nosso protocolo assistencial para aborto acima de 20-22 semanas, que redigi há uns meses, depois de atender nossa primeira paciente com essa idade gestacional. Sinto que, de alguma forma, estou ajudando a menina, mesmo que a distância. Chego em casa, tomo banho. Às 22 horas, a primeira paciente a ser atendida por telemedicina começa a sentir cólicas e náuseas. Envio as orientações por WhatsApp. Redijo sua evolução no prontuário. Meia-noite, início do sangramento esperado para o processo de abortamento e a paciente passa bem. Vou dormir com a sensação de dever cumprido.
Sábado, 15 de agosto
Apesar de poder acordar mais tarde, levanto cedo. Preparo o café, separo as roupas para colocar na máquina de lavar. Arrumar a casa não é tarefa prazerosa para mim. Ligo para nossa paciente. Ela está bem, sangrando pouco, sem dor, confirmando que o processo se completou durante a noite. Vamos aguardar mais um pouco para sua “alta”. Redijo a evolução no prontuário remoto. Vou com minha filha almoçar na casa dos meus pais, mantendo o distanciamento necessário. Estou cansada de não poder abraçá-los, triste por não receber o carinho da minha sobrinha querida, que não pode chegar perto de mim por causa do ‘colonavílus’ – ela tem 5 anos e ainda não pronuncia o ‘r’. A menina do Espírito Santo era apenas um ano mais velha que minha sobrinha quando começou a ser violentada. Após o almoço, de volta em casa, entro em contato novamente com nossa paciente. Está ótima. Realizo as orientações de alta. Redijo sua evolução e alta no prontuário.
O telefone toca. É o secretário de estado de Saúde do Espírito Santo, sr. Nésio Fernandes. Ele teve a indicação de que o Nuavidas poderia receber a criança que teve o direito ao aborto negado em seu estado. O coração dispara, entre a incredulidade do direito negado e a possibilidade de ajudar a menina. Estou certa de que temos uma equipe preparada e qualificada para o cuidado integral a essa criança. Sim, sr. secretário, temos todas as condições de recebê-la, inclusive com protocolo elaborado recentemente justamente para casos que chegam “tardiamente” para nosso cuidado.
Lembro-me da primeira mulher que chegou a nosso serviço com mais de 22 semanas de gravidez de um estupro por um amigo da família. Um homem mais velho, da sua confiança. Ela foi violentada e, como a maioria das mulheres que sentem vergonha, medo e culpa pela violência sofrida, não conseguiu contar nada a ninguém. Deixou seus dois filhos com a mãe em sua cidade natal na Bahia para iniciar um emprego no interior de Minas Gerais. Descobriu-se grávida um mês depois. Desesperada, buscou na internet por procedimentos clandestinos, que poderiam colocar sua vida em risco. Economizou para pagar a enorme quantia que os criminosos da internet estavam lhe cobrando. Com a necessidade de prover o sustento de seus filhos na Bahia, passaram-se quatro meses até conseguir dinheiro para o procedimento. Agora, “o procedimento era mais arriscado, e por isso mais caro”, dizia o contato da internet. Ela resolveu buscar outras alternativas e descobriu o Nuavidas em Uberlândia. Reconheci uma mulher batalhadora, que estudou e trabalhou para criar os filhos sem a presença do pai. Além de vítima de uma violência sexual, também era vítima do descaso dos gestores de saúde do país. O Estado negou-lhe o acesso à informação sobre seus direitos e ela chegou ao serviço de saúde com mais de 22 semanas de gravidez. Nossa equipe a acolheu, ela passou por todos os procedimentos necessários para a realização do aborto previsto em lei – acreditem, são muitos termos e relatos que a mulher tem que escrever e assinar! – e foi internada. Durante a madrugada, após a finalização do procedimento, uma colega me aborda, expressando seu desconforto em ter a paciente internada na enfermaria. Ela apenas verbalizou o que os olhares de vários colegas expressam nas mensagens subliminares. Muitos nos questionavam sobre a idade gestacional e argumentavam com toda a certeza de que aquela mulher não tinha aquele direito (o Código Penal brasileiro, promulgado em 1940, não estabelece limites de idade gestacional para o aborto previsto em lei). Seguimos em frente, pois a força da mulher que passou por um estupro e uma gravidez indesejada, expressa nas suas feições de alívio e gratidão, superam qualquer desconforto.
Algumas dificuldades que enfrentamos no cuidado à primeira mulher que chega ao serviço com mais de 20-22 semanas de gravidez me levaram a escrever, em parceria com colegas do Nuavidas, nosso protocolo assistencial para aborto previsto em lei acima de vinte semanas. Acredito que, por causa dele, o secretário de saúde do Espírito Santo tenha chegado até nós. Reafirmo que temos plenas condições de receber a criança, mas não conheço os trâmites necessários para uma transferência interestadual. Minutos depois, o secretário de Saúde liga novamente, afirmando que, por questões administrativas, nosso hospital não poderá receber a menina. Tristeza e desalento. O secretário me questiona se conheço outro serviço que poderá recebê-la. Sei que Olímpio [Barbosa de Moraes Filho, gestor executivo do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM) em Pernambuco] está preparado para cuidar da criança e já teve experiências semelhantes. Coloco-lhe em contato com Olímpio, que não conheci pessoalmente, mas a quem chamo com tranquilidade de amigo. Minutos depois, chega uma mensagem do secretário: a equipe do CISAM/UPE receberá a menina. Precisamos manter essa informação em sigilo. Agradeço de volta, percebendo que ele também se importa com a vida daquela criança. Talvez agora eu consiga descansar.
Domingo, 16 de agosto
Acordo cedo novamente. Sinto um peso no corpo, um cansaço que não vinha sentindo antes. Escuto Caetano enquanto me organizo nos afazeres domésticos. Almoço com distanciamento na casa de meus pais. Chego em casa, celular cheio de mensagens nos grupos. O vídeo da extremista “que não se deve nomear” circulando nas redes. Não consigo assistir nem aos primeiros dez minutos. Náuseas. Coração disparado. Todo o cuidado que tivemos para amenizar o sofrimento da menina por água abaixo. Um show de horrores. Médicos e profissionais de saúde chamados de assassinos. Uma menina de 10 anos, estuprada, violentada por tantas vezes (não só por pessoas, mas também pelo Estado), chamada de assassina, chegando ao hospital escondida no porta-malas do carro. Precisamos nos manifestar. O grupo da Comissão Nacional Especializada de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), coordenado pelo colega Robinson, do Rio Grande do Norte, se mobiliza para escrever uma nota de posicionamento. A sociedade está tentando entender os horrores que presenciamos. Às 23 horas, encontro-me em frente ao computador formatando os ajustes finais da nota da Febrasgo. Sigo insatisfeita com o texto. Ele não diz tudo o que preciso gritar ao mundo. Converso com Cristião, meu colega do Global Doctors for Choice Brazil (GDC). Precisamos escrever sobre as lições que o Brasil pode aprender com a menina capixaba.
Segunda-feira, 17 de agosto
Acordo antes das seis da manhã. Preparo o café. Logo retomo o texto do GDC (Cinco lições que o Brasil deve aprender com o caso da menina de apenas 10 anos do Espírito Santo). O mais difícil é a quinta lição: “Não existe idade gestacional limite para o aborto previsto em lei no Brasil.” A afirmação me remete ao momento em que me dei conta do erro histórico que nós, profissionais de saúde brasileiros, temos cometido no cuidado a meninas e mulheres em situação de aborto por gravidez decorrente de estupro. Foi em janeiro deste ano, quando passei um mês em um estágio no Montefiore Medical Center, hospital do Albert Einstein College of Medicine, em Nova York. Durante uma palestra, fui questionada se a lei brasileira estabelecia limites de idade gestacional para o aborto previsto em lei. A lei de saúde reprodutiva (Reproductive Health Act) do estado de Nova York estava completando um ano e, com ela, deixa de existir qualquer limite de idade gestacional para o aborto nos casos de ausência de viabilidade fetal ou quando necessário para preservar a vida ou a saúde da mulher. Percebi pela primeira vez a ausência do limite no Código Penal brasileiro. Fui pesquisar sobre o conceito de aborto para além daquele encontrado nos livros didáticos. Para minha surpresa, deparei-me com o conceito científico dos termos “aborto induzido” e “aborto espontâneo”. Em nenhum há a menção de idade gestacional, tampouco de peso fetal específico. Retornei ao Brasil pensando nas mulheres que deixamos de assistir por causa do limite (inexistente) de idade gestacional.
Ligo a tevê. Boas notícias: a menina capixaba consegue sorrir. Em poucos minutos, entrarei para aula remota com a turma de bioética do doutorado. Preciso de ajuda para acompanhar a entrada ao vivo de um colega em um programa de tevê, com cobertura completa sobre o caso da menina. Reconheço trechos do nosso protocolo do Nuavidas em partes da decisão judicial. Pela primeira vez desde quinta-feira, choro. Choro pela criança, pelo sofrimento de meninas e mulheres que atendemos toda semana. Pela mulher baiana que, de longe, ajudou a menina capixaba. Retorno ao texto do GDC. Perco o horário da ginástica online. Preciso descansar um pouco. O corpo dói. O ar falta.
Terça-feira, 18 de agosto
O dia promete ser mais tranquilo. Algumas reuniões online de orientação dos alunos da pós-graduação. Reunião com Cristião, do GDC, e assessora de comunicação do grupo. O texto do GDC agitou alguns grupos de WhatsApp. Preciso avaliar uma atividade remota dos estudantes do sétimo período do curso de medicina. Entro em aula remota com eles mais tarde. A discussão é sobre violência sexual e aborto previsto em lei no Brasil. Os estudantes parecem mais engajados na discussão este semestre. Jantar tranquilo com minha filha. Leitura agradável de Breve História do Feminismo. O corpo ainda dói. O ar ainda falta.
Quarta-feira, 19 de agosto
Dia cheio de reuniões. O corpo reclama a falta do exercício, a mente cansada da tela do computador. Antes de sair de casa para uma reunião presencial na direção do hospital (ainda estamos discutindo a implementação do protocolo de aborto previsto em lei por telemedicina, apesar do procedimento piloto ter sido bem-sucedido), as notícias anunciam a alta hospitalar da menina capixaba. Lembro-me da criança mais jovem que chegou ao Nuavidas, de 11 anos, grávida de dezessete semanas, estuprada por dois anos pelo padrasto: “Ainda não sei como engravida. Vou aprender isso na escola só no ano que vem”, ela dizia. Talvez hoje o ar volte aos pulmões. Respiro em alívio.
Quinta-feira, 27 de agosto
Duas semanas se passaram desde a primeira notícia sobre a menina capixaba. Acordo antes das seis da manhã. Abro o computador. Estou presa ao texto desse diário. Pela janela do escritório, os pássaros cantam, e o ipê amarelo floriu. Penso em Nina Simone. É um “novo amanhecer, um novo dia, uma nova vida” (Feeling Good). Esperança de que nossos colegas se juntem a nós. Esperança que se renova nas redes, na juventude, na luta, na resistência.
Sexta-feira, 28 de agosto
Dia de atendimentos no Nuavidas. Nossa agenda parece mais tranquila: quatro mulheres, nenhuma gestante. A caminho do hospital, a sensação de que finalmente terei um final de semana mais tranquilo. O texto deste diário praticamente finalizado, nenhuma previsão de internação no hospital. Talvez consiga almoçar em casa e ter a tarde para concluir o diário. Pouco depois das dez da manhã, entre um atendimento e outro, percebo uma movimentação no grupo de WhatsApp dos serviços brasileiros de atenção ao aborto previsto em lei. Há indignação dos profissionais com a promulgação da portaria 2.282/2020 pelo Ministério da Saúde – a “Portaria da Tortura”. A leitura da portaria dói no corpo. Dói na alma. Condicionar o cuidado em saúde à denúncia da violência sofrida à polícia, à revelia da vontade da mulher, vai contra todos os princípios profissionais e bioéticos que permeiam minha prática médica e docente. Forçar a menina ou mulher a documentar sua discordância (ou concordância) em visualizar o embrião ou feto e apresentar um termo de consentimento com uma listagem (enviesada) dos riscos do aborto são medidas que visam personificar o feto/embrião e dissuadir a paciente de realizar a interrupção da gravidez. Significa torturar meninas e mulheres já violentadas pela sociedade e pelo Estado. A primeira reação é de incredulidade e desespero. Logo me restabeleço, preciso dar continuidade aos atendimentos do Nuavidas. Sei que os profissionais do grupo dos serviços ficarão firmes na resistência a essa e outras medidas autoritárias que estão por vir. Sinto-me fortalecida “ao lado” de colegas de todos os cantos do país. Volto para casa antes do almoço, mas ainda não foi hoje que consegui uma tarde tranquila: foram três entrevistas para tevê e jornais sobre a portaria. Reunião com colegas da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras e juristas para definir estratégias e recomendações aos profissionais de saúde dos serviços de aborto legal. Já é noite. Não finalizei o diário. Preciso pensar num texto para um manifesto dos profissionais de saúde contra a portaria da tortura. Preciso seguir. A resistência à banalidade do mal não permite descanso.