O PSDB, hoje, é uma ombreira. Todo mundo lembra que existiu e que esteve na moda nos anos 1980 e 1990. Mas quem usou ombreira costuma dar um sorriso meio constrangido de canto de boca quando o assunto é mencionado. O fato é que aumentar o estofo dos ombros nos ternos, casacos e blusas dava ares de tiozão a qualquer adolescente.
Não pega bem ser associado a uma ombreira, isso é ponto pacífico em 2024. Mas o PSDB foi além do embaraçoso. As recentes prévias do partido produziram as imagens mais decadentes dos últimos tempos. Não me refiro apenas às fotografias em que correligionários foram flagrados trocando sopapos enquanto suas calças caíam ao tornozelo. Nem somente às baixarias que sequer tinham charme para virar treta de internet. O problema, mais do que tudo isso, está na irrelevância desprovida de carisma que nos foi sendo imposta a cada eleição.
Não estou mais em condições de ver a imagem da minha categoria, Ramphastos sulfuratus, associada a cadeiradas, bolinhas de papel, cuecas brancas, farinata, coxa-creme e naftalina. Por isso, eu, tucano-de-peito-amarelo, por meio de meus advogados, venho nesta carta exigir os direitos exclusivos sobre a imagem da nossa espécie.
Foi um casamento bonito que começou em 1988. “Longe das benesses oficiais, mas perto do pulsar das ruas, nasce o novo partido” era uma epígrafe que soava muito bem. Tucanos, como se sabe, são vaidosos de sua plumagem e de sua vocação para semear a floresta. A associação com figuras importantes na redemocratização como Fernando Henrique Cardoso, Franco Montoro e Mário Covas nos atraiu. Era para o nosso bico.
Abrimos a década de 1990 incentivando o voo de um jovem político promissor. A base vinha forte. Ciro Gomes foi o primeiro governador eleito do PSDB. Voou alto no Ceará: em 1992, segundo o Datafolha, já tinha 72% de aprovação. Terminou o mandato consagrado. Pena que ninguém tinha inventado ainda a reeleição.
Como os tucanos gostam de viver em bando, vimos com bons olhos o partido crescer. Comemoramos quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a importante posição de ministro da Fazenda do presidente Itamar Franco. Os ventos estavam a nosso favor.
Não sei se falo em nome da classe, mas confesso que fui tomado por certa inveja quando vi que as cédulas de real traziam ilustrações de araras e garças. Deliberamos entre nós e chegamos à conclusão de que seria cabotino demais usar o desenho de um tucano. Não precisávamos disso: todo mundo sabia da nossa associação com o plano que estabilizou a economia brasileira.
Naqueles anos, quando as pessoas ainda usavam ombreiras, mullets e teletrim, vivemos nossa lua de mel. Com FHC eleito presidente, a gente estava no topo da cadeia alimentar. Tínhamos seis governadores – São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Ceará, Pará e Sergipe –, catorze senadores, 63 deputados federais e 97 deputados estaduais. Em 1996, foram eleitos 910 prefeitos – quatro deles em capitais – e 6.744 vereadores. Deixamos o PT no chinelo.
Foi quando aconteceu um momento mágico entre pai e filho tucanos. Voei com Cícero, meu primogênito, até o Pico da Neblina. Num dia claro de inverno, contemplamos juntos a imensidão que se estendia abaixo de nossos longos bicos. Pus minha asa sobre seus ombrinhos (sem ombreiras) e disse: “Olhe Cícero, tudo isso que o Sol toca é o nosso reino. Um dia, o Sol vai se pôr. Assim como o meu tempo aqui. E tudo isso será seu.” Cícero, intrigado, disse que não se via como um herdeiro, um nepo-tucano, e apostava na meritocracia. Me emocionei. Eram os primeiros sinais da nova geração.
Ainda voávamos alto em 1999, apesar da crise econômica e dos apagões energéticos. Basta lembrar a lei dos genéricos de José Serra. Nessa época, ele era um político tão generoso que abriu um aeroporto de tucanos em seu cocuruto. E serviu de exemplo para que Geraldo Alckmin também o fizesse, abrindo sua plumagem capilar para nos permitir um pouso no local onde fervilhavam suas ideias.
Não sei precisar muito bem onde tudo começou a degringolar. Sem dúvida, a emenda da reeleição alterou o equilíbrio ecológico, por mais que gostássemos do FHC, nosso príncipe da sociologia. Em 2002, a disputa entre o Serra e o Tasso Jereissati pela candidatura à presidência abriu focos de incêndio e, mais do que isso, jogou uma urucubaca que contaminou todos os processos internos do PSDB dali em diante. O desempenho de Anthony Garotinho, que teve poucos votos a menos que Serra no primeiro turno, já demonstrava a ascensão de um populismo missionário no Brasil.
Nós, tucanos, também debatemos as grandes questões nacionais. Somos capazes de identificar um grande desastre. Foi assim em 2002. Naquela campanha do Serra, arregalamos os olhos e cogitamos uma ruptura pela primeira vez. Ficamos constrangidos ao ver nossa imagem associada à Regina Duarte dizendo que tinha medo.
Devíamos mesmo ter rompido naquele momento. Depois a coisa só piorou. Tentamos nos ater ao Alckmin, mas seu carisma parecia feito de teflon: não conseguíamos aderir. Serra voltou descacetado contra a Dilma em 2010 e escancarou as portas para os sensacionalismos e o populismo religioso. Foi para o hospital por causa de uma bolinha de papel, escolheu Indio da Costa como vice e lançou a tétrica campanha “Serra é do bem” (capaz de traumatizar uma geração inteira de crianças).
Quando a imagem do PSDB começava a se descolar da ombreira para o cashmere de seda, Aécio Neves surgiu em cena. Sabíamos que ali o partido definiria o seu destino: ou voltaria a dar as cartas ou ficaria conhecido apenas como um antagonista do PT. Aécio perdeu por pouco. Ficamos tão tristes quanto o Luciano Huck na apuração dos votos. Mas o pior veio depois, quando Aécio manchou a imagem do partido com inúmeras denúncias de malfeitos. Para completar, abriu o alçapão golpista pedindo a recontagem de votos.
Assistimos a tudo perplexos, aqui do alto. Alguns de nós, injuriados; outros, em negação. Dar farinata a pessoas em situação de rua, como propôs João Doria, talvez não fosse tão desumano assim. Contanto que o PT não fosse governo, estava tudo certo. Filiar Alexandre Frota talvez não fosse má estratégia; pior seria filiar o Nicolás Maduro. E por aí vai.
Foram necessários alguns anos de análise para percebermos que vivíamos uma relação tóxica, e que fomos recalcando nossa essência à medida que formamos nossa autoimagem apenas em negação ao PT. Agora enxergamos com clareza. O PSDB ficou mesmo parado no tempo do discman. Virou um tamagotchi. Na era das redes sociais, não soube viralizar no ódio, na esperança ou no amor. Estacionou na irrelevância. Sequer se esforçou para entender a internet. Prova maior disso é apostar as poucas fichas que lhe restam num apresentador de tevê em pleno 2024. O resultado está aí: 1,8% dos votos. Pífio.
A cadeirada do Datena também doeu em nós. Chega! Temos questões mais importantes com as quais nos preocupar. E temos limites! Não aguentamos mais sermos vinculados ao PSDB. Se um dia inspiramos orgulho nacional, hoje temos sido motivo de chacota.
Queremos liberdade para definir nossos destinos, pois a base dos tucanos está polarizada. Parte deseja carimbar o escudo da CBF no peito amarelo e voar atrás do capitão aonde ele for. Parte deseja se associar à novas ideias de bioindustrialização da Amazônia e vincular nossa imagem à preservação da floresta. E existe ainda uma fatia considerável de tucanos que almeja autonomia para jogar tudo pro alto: querem a liberdade de explorar sua própria imagem nas redes sociais, abrir sites de apostas e virar coaches. Tudo, absolutamente tudo, menos continuar de ombreira.