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anais da antropologia

Tupi or not Tupi… a questão é climática

Novo estudo mostra como a maior incidência de chuvas expandiu a floresta tropical e ajudou os Tupis-Guaranis a conquistarem boa parte da América do Sul

Reinaldo José Lopes | 19 abr 2018_20h58
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A jornada que transformou vastas áreas da América do Sul em domínio quase absoluto dos povos Tupi-Guarani provavelmente foi impulsionada por uma fase de alterações climáticas e ambientais entre 3 000 e 2 000 anos atrás, aponta um novo estudo. Nesse período, o aumento da umidade no território sul-americano, segundo a pesquisa, favoreceu a expansão de florestas tropicais, justamente o ambiente onde os Tupi-Guarani (um grupo originário das matas do sudoeste da Amazônia) surgiram como etnia.

O estudo, publicado por uma equipe internacional de pesquisadores na revista científica The Holocene, é mais um exemplo de como a arqueologia tem levado a uma espécie de inversão de papéis da região amazônica, ao menos do ponto de vista pré-histórico. Hoje uma das áreas mais esparsamente povoadas do continente, a Amazônia guarda muitas pistas de ter sido, no passado, um núcleo dinâmico de crescimento populacional e complexidade social e política, que “exportava” sua cultura a outros pontos da América do Sul. “Quando os europeus chegaram aqui, talvez fizesse mais sentido pensar no Sudeste ou no Nordeste como regiões periféricas, e não centrais, se comparadas à Amazônia”, disse o arqueólogo Eduardo Góes Neves, da USP, que não participou da nova pesquisa, mas é um dos principais estudiosos do passado amazônico no mundo.

“Há uma ideia ainda muito forte entre os pesquisadores de que a gente não teria tido essas grandes expansões culturais e linguísticas pré-históricas na América do Sul, nada que fosse similar aos indo-europeus [grupo que deu origem à maior parte das culturas da Europa, do Irã e da Índia], ou a certos grupos da África. Quando a gente olha com calma, porém, percebe que ocorreram expansões sul-americanas que não ficam nada a dever a esses processos do Velho Mundo”, afirmou Jonas Gregorio de Souza, pesquisador brasileiro que trabalha na Universidade de Exeter, no oeste da Inglaterra, e é um dos autores da nova análise. O coordenador do trabalho é o uruguaio José Iriarte, também de Exeter.

 

Iriarte, Souza e companhia deram ao artigo que descreve seus achados o título de Out of Amazonia (“a partir da Amazônia”), um trocadilho com Out of Africa, a teoria, hoje bastante consolidada entre os paleoantropólogos, de que os seres humanos modernos teriam surgido no continente africano e de lá se espalhado pelo planeta. No trabalho, eles se concentraram em tentar explicar a distribuição geográfica dos grupos Guarani, e não de todos os Tupi-Guarani, por ser uma metodologia mais confiável, explica Souza. “Os dados paleobotânicos e paleoclimáticos [sobre a vegetação e o clima do passado] são muito mais completos no caso da parte sul da distribuição deles, que era o território Guarani na época do contato com os europeus.”

A origem amazônica desses povos é bem aceita há décadas. Uma das principais pistas vem da linguística e tem a ver com a diversidade de idiomas da família Tupi, que perfazem cerca de sessenta línguas e podem ser divididas em dez subfamílias. Acontece que só uma dessas subfamílias, justamente a Tupi-Guarani, pode ser encontrada fora da Amazônia, e nada menos que metade delas existe apenas na atual Rondônia, como mostra o mapa abaixo.

Distribuição das línguas da família Tupi. Em roxo, as subfamílias originais amazônicas; o vermelho e o verde correspondem à família Tupi-Guarani, com o subgrupo Guarani em verde

Em geral, quando a maior parte da variedade linguística de um grupo está concentrada num único local, faz sentido imaginar que tal região é o berço daquele conjunto de línguas, pois ali houve tempo suficiente para que a diferenciação entre dialetos emergisse (mal comparando, é como o DNA, que sofre mutações inexoráveis com o passar dos anos). Os idiomas Tupi-Guarani do Sul e do Sudeste seriam como o português no Brasil atual: recém-chegados e relativamente homogêneos que deixaram seus parentes para trás (no caso do português, as outras línguas europeias derivadas do latim).

Quando Cabral aportou na Bahia, falantes do grupo se espalhavam por uma monumental faixa litorânea que ia, praticamente sem interrupções, da foz do Amazonas ao Uruguai (a divisa entre os Tupis propriamente ditos e os Guaranis ficava mais ou menos no litoral sul de São Paulo, perto do atual município de Cananeia). Um pouco mais ao norte, havia representantes dessa gente até no Amapá; no interior do continente, eles tinham ocupado trechos da Bolívia, boa parte do Paraguai (onde, é claro, o guarani ainda é idioma oficial) e até os arredores da moderna Buenos Aires.

Embora a carta de Pero Vaz de Caminha descreva um idílio tropical durante o primeiro encontro entre lusos e os Tupiniquim baianos, todos os outros relatos coloniais concordam em classificar os Tupi-Guarani como guerreiros por excelência. Participavam de expedições militares por rio ou por mar que atravessavam centenas de quilômetros, praticavam uma forma incipiente de guerra química (queimando pimenta para fazer arder os olhos dos moradores de aldeias sitiadas) e, principalmente, matando e devorando inimigos capturados em festins rituais. Tudo isso levou os especialistas a postular que a ideologia bélica teria favorecido seu ímpeto de expansão, mas apenas esse fator talvez não fosse o suficiente para explicar tantas conquistas territoriais.

Na nova pesquisa, a equipe de Exeter combinou quase 200 datações de sítios arqueológicos Guarani com 73 registros paleoecológicos e uma série de simulações de como era o clima no passado, feitas com os mesmos modelos de computador que servem para fazer projeções sobre mudanças climáticas daqui a décadas. O conjunto dos dados mostra uma tendência constante de aumento de umidade e de áreas de mata fechada em regiões que antes eram mais secas e estavam justamente no caminho postulado para a expansão dos Guarani: a área que liga o sudoeste da Amazônia à bacia do Paraná, com o Pantanal no meio. Um Pantanal cada vez mais úmido, aliás, viraria um “mar interior” no período das chuvas, relativamente fácil de atravessar pelos viajantes vindos da Amazônia.

A distribuição dos sítios arqueológicos indica que os Guarani seguiam preferencialmente o traçado das matas que margeavam os grandes rios dessa região, o que lhes permitiu chegar à bacia do Uruguai (já em território gaúcho e argentino) em torno do ano 500 d.C. As áreas florestadas eram ideais para o plantio do pacote agrícola amazônico trazido por eles (mandioca, batata-doce, inhame, feijão, milho), bem como para a caça. “E não era um processo totalmente passivo”, disse Souza. “Antes de ocupar definitivamente um local, a gente sabe que eles manejavam a mata, introduziam espécies de plantas que seriam úteis para eles dali a alguns anos.” A hipótese do arqueólogo é que outros grupos da região não contariam com um sistema de produção de alimentos tão adequado quanto o dos Tupi-Guarani para ocupar essas regiões, o que também contribuiu para o sucesso dos recém-chegados.

 

Avanços igualmente impressionantes de etnias originalmente amazônicas também parecem ter acontecido nos últimos milhares de anos, assim que a produção de alimentos passou a permitir o surgimento de populações densas no atual território brasileiro. O caso mais emblemático é o dos povos Aruak, a resposta da Amazônia aos fenícios do Oriente Próximo. Canoeiros hábeis, arquitetos de redes de comércio e diplomatas natos, os Aruak parecem ter sido a “cola” que levou à criação das alianças multiétnicas pacíficas no Alto Xingu. Trabalhos coordenados pelos antropólogos Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, e Carlos Fausto, do Museu Nacional da UFRJ, têm revelado que as aldeias do Alto Xingu eram dez vezes maiores do que as atuais antes do contato com os europeus, contando com uma complicada rede de estradas, muralhas, pontes, represas e centros rituais.

Os Aruak, além disso, chegaram ao Pantanal e ao próprio mar do Caribe – pertenciam a esse povo os Taino, primeiros indígenas encontrados por Colombo. E o próprio nome caribenho vem dos Karib, outra grande família linguística que também colonizou as ilhas da América Central.

Ainda não está claro o motivo para esse potencial demográfico da região amazônica, mas Souza lembra que o sudoeste da região (de novo, o lar original dos Tupi) parece ter sido um dos mais importantes centros de domesticação de espécies vegetais do continente, incluindo espécies tão importantes quanto a própria mandioca. A primazia na descoberta da arte da agricultura, portanto, pode ter sido um dos fatores cruciais, assim como ocorreu em outros lugares do mundo.

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