Foram 67 dias desde a prisão de Fabrício Queiroz, quando o presidente da República se aquietou de vez, até uma nova grande crise causada por seu descontrole. É verdade que, com a saída do ex-juiz Sergio Moro do governo, já se observava uma mudança na comunicação de Bolsonaro, tanto online como offline. Após o dia 18 de junho, no entanto, o presidente saiu de seu modo “campanha” permanente, dialogando principalmente com a chamada “ala ideológica” de seus apoiadores, em embate com as instituições, para uma modorrenta prestação de contas permanente.
Tentando criar a todo tempo a sensação de que o nome dele agora seria “trabalho”, Bolsonaro fez 76 threads no Twitter desde o fatídico 18 de junho, com números intermináveis sobre obras, asfaltamento, entrega de insumos para o combate à Covid-19, recordes de apreensão de drogas, asfaltamento de novo e mais uma vez asfaltamento de rodovias. Não que Bolsonaro não tenha feito threads antes, mas chamou atenção o volume no período, com mais de uma por dia, um acréscimo de cerca de 20% nesse novo formato em relação ao período anterior.
O tal Bolsonaro paz e amor ia de vento em popa. O auxílio emergencial, após o pagamento da terceira parcela, enfim batia no coração da população mais pobre, inflando a aprovação do presidente, em especial no Nordeste e dentre os estratos mais baixos. A classe média conservadora, grande maioria hoje no país, não precisava mais se esconder dos rompantes chucros do presidente e passava até a elogiar seu “amadurecimento”. Certamente não viram a cena de Bolsonaro mostrando uma caixa de cloroquina para emas. Esse tipo de conteúdo alcançava mais a chamada ala ideológica de seus seguidores, que vibrava (e ainda vibra) com o medicamento diariamente.
Mesmo com o crescente número de pessoas mortas por Covid-19, tudo ia melhorando, dizia o presidente. Os governadores e prefeitos afrouxavam o isolamento social, permitindo a reabertura da economia. No Congresso, o estreitamento da relação com o Centrão ia se consolidando. As pequenas crises do dia a dia, como as desavenças internas sobre a CPMF e as disputas entre olavistas e militares, eram resolvidas sem grande alarde. Os ataques dos bolsolavistas nas redes também estavam diminuindo e, quando ocorriam, como por exemplo nos casos de busca e apreensão na casa de influenciadores digitais, tinham alcance limitado, uma vez que não eram reverberados pelo maior digital influencer desse agrupamento: o próprio Bolsonaro.
Paralelamente, o número de menções a “Bolsonaro” no Twitter, após explosão no início da pandemia, ia caindo, num comportamento semelhante à sua avaliação negativa – como mostram os dados da pesquisa XP/Ipespe. Para Bolsonaro, o “falem mal mas falem de mim” não vale. Recordemos a campanha eleitoral de 2018, em que seu crescimento se deu com seu silêncio no pós-facada.
Era o que os militares chamariam de céu de brigadeiro, até acontecerem três fatores explosivos. O primeiro foi a (bem-sucedida) estratégia da oposição, ajudada pelos meios de comunicação de massa, é verdade, de colocar no “colo” de Bolsonaro as 100 mil mortes pelo novo coronavírus atingidas em 8 de agosto. A resposta do presidente veio num post em que criticou o editorial da Rede Globo, afirmando que a emissora só espalhou pânico e discórdia e que comemorou a marca negativa. A contraofensiva do agrupamento bolsonarista acabou se dividindo em dois argumentos contraditórios. O primeiro dizia que o governo fez muito, não foi omisso, ao contrário do que o editorial do JN alegara (como nesta postagem de Carla Zambelli). O segundo argumento dizia totalmente o contrário: que Bolsonaro não conseguiu fazer o que pretendia, uma vez que o “sistema” – leia-se o Supremo Tribunal Federal (STF), principalmente – impediu várias medidas que o presidente pretendia colocar em prática.
O segundo fator foi a aproximação da investigação, antes restrita a Flavio Bolsonaro e Fabrício Queiroz, em relação à esposa do presidente, Michelle Bolsonaro. Os cheques depositados na conta da primeira-dama, que antes haviam sido explicados como devolução de um empréstimo a Queiroz, foram multiplicados, na esteira também da multiplicação de depósitos em dinheiro vivo na loja de chocolates de Flavio Bolsonaro.
O terceiro fator, e não menos importante, foi o crescimento de Bolsonaro nas pesquisas. Políticos não resistem ao poder inebriante do apoio popular. Transformam-se quase que em super-heróis. Em um curto espaço de tempo o presidente dobrou Paulo Guedes, anunciou pagamento do auxílio emergencial até dezembro e se dispôs, de forma inédita em seu governo, a “enfrentar” o mercado, pedindo um inusitado “patriotismo” neste momento para os Faria Limers.
Na semana passada, o presidente, surfando o crescimento de sua popularidade, começou a demonstrar algum desconforto com uma vida sem polêmicas. Seria uma amostra do que estaria por vir. As duas notícias mais compartilhadas no Facebook na manhã de quinta-feira (20) já pareciam o “velho” Bolsonaro voltando.
A primeira dizia respeito a um autoelogio pela condução do governo na pandemia, em que o presidente se qualificou como um dos melhores do mundo (Correio Braziliense: Bolsonaro: “Não vi no mundo quem enfrentou melhor a pandemia do que nós” – 180 mil interações no Facebook). A segunda versava sobre uma daquelas típicas declarações negacionistas de Bolsonaro sobre o uso da máscara durante a pandemia (UOL: Bolsonaro diz que máscara tem eficácia quase nula; ciência aponta proteção – 52 mil interações no Facebook).
Mas, no último domingo (23), uma pergunta mais ostensiva de um jornalista do Globo, relembrando os depósitos de Queiroz para Michelle, fez o presidente sair do prumo. “Minha vontade é encher tua boca de porrada.” A oposição, como que aguardando ansiosamente (há 67 dias) pelo momento do “eu avisei”, não tardou em se aglutinar. A força das redes foi avassaladora: 2,7 mil tuítes por minuto. Governistas ficaram atônitos, tentaram a todo custo desviar do assunto, buscando fazer com que a história se transformasse numa perseguição da Rede Globo a Bolsonaro, uma armadilha.
Na manhã seguinte, mais uma tentativa de sua base, agora circulando o vídeo da fala de Bolsonaro simulando que a pergunta do repórter tenha sido provocativa e merecedora da rude resposta dada por Bolsonaro: “Vamo visitar nossa feirinha da catedral” virou “vamo visitar sua filha na cadeia”. Influenciadores como Rodrigo Constantino entraram cegamente nessa linha. Em vão.
Foram desmentidos até pelos influenciadores bolsonaristas. Base governista demonstrando descoordenação.
Desta vez, a oposição, que costuma cair em todas as cascas de banana do presidente, não entrou na onda da paranoia de que a Rede Globo estaria perseguindo Bolsonaro. Apenas se limitou a perguntar sobre Michelle. A exigir uma resposta do presidente nas redes. Foram mais de 1 milhão de tuítes com textos iguais ou com variações a “Presidente @jairbolsonaro, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”. Interessante, e mais devastador para Bolsonaro, é que atores de fora da política foram os principais destaques no episódio. Felipe Neto (sempre ele), Gabriela Prioli e até a improvável atriz Paolla Oliveira obtiveram alcance altíssimo.
Mais figuras inusitadas: entraram na onda também a atriz Bruna Marquezine, o cantor Caetano Veloso e a cantora Anitta. O assunto extrapolou mesmo a política.
Essa estratégia de questionar insistentemente o presidente sobre os depósitos para Michelle – que seguiu a todo vapor na manhã desta segunda (24) – deixou bolsonaristas falando sozinhos. A preocupação não recaiu sobre o repórter ou a Rede Globo. A cobrança é sobre o fato gerador de toda a confusão: os cheques na conta de Michelle. Deu resultado.
Ainda não sabemos quais serão as consequências para o governo da volta do velho Bolsonaro à ativa. Não sabemos sequer se ele voltará à reclusão após pito do mercado, Centrão e militares. Relembremos só aquela máxima (que para Bolsonaro vale ao contrário) do “falem mal mas falem de mim”: de ontem pra hoje foram mais de 2,4 milhões de menções ao presidente no Twitter. O assunto explodiu.
Como saldo, 85% das publicações de ontem e hoje são negativas para Bolsonaro. Foi uma volta difícil para o presidente “lacrador”. Curiosamente o maior beneficiário dessa escorregada pode justamente ser o… mercado. Paulo Guedes está numa luta inglória pela “austeridade a qualquer custo” tão demandada pelo – antipatriota, segundo Bolsonaro – mercado. Antagonizando com Guedes, os militares desenvolvimentistas e o Centrão terão que se esforçar para botar o presidente dentro da caixa de Pandora novamente. Até adiaram o anúncio de um pacote com medidas econômicas.
P.S.: Para quem defendia que Bolsonaro tinha tido apenas uma recaída, no evento denominado “Brasil vencendo a Covid-19”, o presidente declarou que “jornalista ‘bundão’ tem chance menor de sobreviver à Covid”. Ele voltou.