Passava das seis horas da tarde do dia 30 de setembro, uma segunda-feira, quando Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira, presidente da Firjan, a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, encerrou a reunião mensal dos dirigentes sindicais da indústria fluminense no auditório do 2º andar do prédio da entidade, no Centro do Rio. Os ânimos estavam exaltados. A oposição a Gouvêa Vieira, encabeçada por Mauro Campos, presidente do Sinduscon, o Sindicato da Indústria da Construção Civil na região de Volta Redonda, acusava o atual presidente da Firjan de pressionar os associados a aclamarem mais uma tentativa de Gouvêa Vieira permanecer na cadeira que ele ocupa ininterruptamente há 24 anos, em um dos mais longos reinados em entidades empresariais do país.
Dos setenta dirigentes aguardados por Gouvêa Vieira, compareceram 59, incluindo os presidentes do Sindicato da Indústria de Sabão e Velas e do Sindicato Nacional da Indústria de Fósforos. Uma possível nova reeleição acabou de fora da pauta daquele dia, o que não dissipou o clima tenso do encontro. Depois da reunião no auditório, é praxe os dirigentes se dirigirem para o restaurante Margutta Cittá, também no 2º andar, especializado em culinária mediterrânea. Lá são servidos uísque e outras bebidas, acompanhados de petiscos, tudo à vontade, às custas da Firjan – daí o apelido de “0800” para o rega-bofe.
Naquele dia, enquanto caminhava para o “0800”, Campos, o pré-candidato da oposição, interpelou Augusto Cesar Franco de Alencar, assessor de Gouvêa Vieira.
– Queria te pedir um favor. Seu presidente tem dito coisas sobre mim que eu não vou aceitar. Estou mantendo a pré-campanha em um nível alto, mas se ele continuar assim, vou processá-lo na Justiça – ameaçou o dirigente de Volta Redonda.
– Eu não tenho nada com isso – retrucou Franco.
– Sei que vocês são farinha do mesmo saco – respondeu Campos.
Nesse instante, na versão de Campos, Franco tentou dar um soco no rosto do empresário, que conseguiu se defender segurando o braço do oponente. “Eu o empurrei e me afastei”, disse Campos. Em meio aos gritos e impropérios dos dois lados, outros dirigentes se aproximaram e conseguiram apartar a dupla. Naquele dia, o clima no “0800” foi bem menos amistoso do que o normal.
Franco não foi localizado pela piauí. A assessoria da Firjan negou que tenham ocorrido agressões físicas naquele dia. Também por sua assessoria, o presidente da Firjan negou ter se referido ao opositor com adjetivos pouco abonadores. Campos ingressou com ação judicial para que a Firjan forneça as imagens das câmeras de segurança do prédio, que captaram cenas do desentendimento.
Vinte dias depois, em 21 de outubro, também uma segunda-feira, os dirigentes se reuniram novamente no 2º andar do edifício da Firjan. Dessa vez, apenas dezenove empresários compareceram, dos quais dezessete compõem a base de Gouvêa Vieira – a oposição disse ter boicotado o encontro. Gouvêa Vieira estava em viagem aos Emirados Árabes Unidos com o presidente da República, Jair Bolsonaro, mas participou por videoconferência. Em pauta, a possibilidade de Gouvêa Vieira disputar mais um pleito para o comando da entidade, o nono consecutivo desde a primeira vitória, em 1995, quando sucedeu Arthur João Donato. Na época, os industriais pactuaram que o presidente da Firjan teria direito a apenas uma reeleição. Mas, ao completar o primeiro mandato, em 1998, Gouvêa Vieira mudou as regras para ficar mais três anos. Repetiu o expediente no fim do mandato seguinte, em 2001, até que aboliu de vez a proibição de reeleição.
Somente em 2015 é que o regulamento eleitoral da Firjan foi alterado para permitir apenas uma reeleição consecutiva para a presidência da entidade, na esteira do que já propunham federações das indústrias de outros estados, como Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul. Recentemente, a Federação da Indústria do Estado de Mato Grosso, Fiemt, foi além: não só proibiu a reeleição para a presidência como impediu que o presidente em exercício se beneficie pessoalmente de um possível retorno da reeleição no futuro.
Na contramão dessas tentativas de aumentar a rotatividade no comando das federações país afora, o grupo ligado a Gouvêa Vieira na Firjan propôs naquela reunião do dia 21 de outubro um duplo twist carpado no regulamento: que o atual mandato, iniciado em agosto de 2016, fosse considerado o primeiro depois da mudança no regulamento. Assim, Gouvêa Vieira teria direito a participar de mais uma reeleição, a de agosto de 2020, a oitava de seu reinado. A proposta foi aprovada por 17 votos a 2. Mas a disputa pelo comando de uma das mais prósperas federações industriais do país promete mais capítulos tensos.
O que poderia parecer um arrufo de vaidade do high society fluminense é na verdade a disputa pelo controle do orçamento da Firjan, que deve chegar a 800 milhões de reais em 2020. Verba de origem pública, já que os recursos do “Sistema S” provêm do desconto de 1,5% da folha de pagamento das indústrias e devem ser destinados, em tese, ao Sesi e ao Senai, para assistência médica e treinamento dos empregados da indústria. Trata-se de um imposto recolhido pelo governo, mas gerido pelo setor privado. Como são recursos públicos, chamados de parafiscais, estão sujeitos à fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU). Ao mesmo tempo, a Firjan se defronta com os números críticos da indústria no Rio de Janeiro, com o fechamento de 238 mil postos de trabalho nos últimos cinco anos.
Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira assumiu o comando da Firjan em outubro de 1995 prometendo modernizar e democratizar a entidade, depois de um pequeno reinado de quinze anos do seu antecessor, Arthur João Donato. Na época, a família de Gouvêa Vieira era sócia do grupo petroquímico Ipiranga, vendido em 2007 para a Petrobras. Atualmente, ele consta na Receita Federal como um dos sócios da Greenpeople, uma fábrica de sucos comandada pelas filhas dele em Três Rios, interior fluminense.
A oposição a Gouvêa Vieira tem pressionado por mais transparência nas contas da entidade. No início de novembro último, Marcello Tournillon Ramos, membro do Conselho Fiscal da Firjan, solicitou à diretoria da entidade, por meio de ofício, informações detalhadas sobre a execução orçamentária deste ano da federação, com o argumento de que “o patrimônio social da Firjan vem se deteriorando nos últimos anos” e que “por diversas vezes as informações solicitadas aos funcionários da Casa foram parcialmente entregues ou mesmo negadas com o argumento ilegal e abusivo de confidencialidade”. Em resposta, o diretor secretário da federação, Carlos Di Giorgio Sobrinho, disse que, devido a uma sentença da Justiça do Trabalho que determinava o afastamento de Tournillon Ramos da diretoria do Sindicato da Indústria de Borracha do Rio, ele perdera o seu posto na Firjan. Procurado pela piauí, Tournillon Ramos não foi localizado.
Uma auditoria do TCU em 2011 apontou para “pagamentos excessivos” de salários e bonificações para a diretoria da Firjan. Na época, o diretor-geral do sistema Firjan recebia 76,2 mil reais, em valores não corrigidos. Esse mesmo diretor ganhou, ao longo de 2010, um total de 356 mil reais em bonificações por “atingimento de metas”. Gouvêa Vieira abdicou de salário na Firjan. Em nota, a assessoria da entidade informou que “a política salarial em vigor tem por base pesquisas salariais de mercado, prática aceita e condizente com as orientações dos órgãos de fiscalização e controle”. A direção da Firjan não divulga notas fiscais de todas as suas despesas, alegando confidencialidade, mas uma planilha das despesas de 2018 mostra gastos de 1 milhão de reais com “vestuário e rouparia de cama e mesa”, 800 mil reais com hospedagem, 4,9 milhões com publicidade e 2,1 milhões com patrocínios. Em 2018, a entidade gastou 7 milhões de reais com a rubrica “segurança e vigilância”.
No início da década, a Firjan gastou 120 milhões de reais na compra e reforma do palacete Guinle de Paula Machado, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, com 7,5 mil metros quadrados de área construída. Atualmente, a Casa Firjan virou um dos espaços mais conhecidos da instituição, funcionando também como centro cultural e espaço para realização de palestras e eventos.
Diplomático, Gouvêa Vieira sempre conseguiu manter laços com o poder, não importando o partido nem a ideologia do governante de plantão. Se nos anos 1990 era próximo ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, na década seguinte estreitou relações com o petista Lula e o então governador no Rio, Sérgio Cabral. Durante a campanha eleitoral do ano passado, o presidente da Firjan estreitou relações com o atual ministro da Economia, Paulo Guedes. Foi em palestra na sede da entidade que Guedes disse, em dezembro de 2018, que pretendia “meter uma faca no sistema S”. Na época, Gouvêa Vieira contemporizou. “Quando se colocam juntas as instituições do comércio e da indústria, é evidente que tem recursos para serem reduzidos. Existe uma sinergia natural”, afirmou. O presidente da Firjan acabaria indicado por Guedes para a presidência nacional do Conselho Nacional do Sesi, cargo que assumiu em fevereiro último. Desde então, acumula as duas funções.
Nas oito vezes em que disputou a presidência da Firjan, em apenas uma enfrentou um candidato de oposição: foi em 2013, quando venceu com facilidade a chapa encabeçada por Ariovaldo Rocha, presidente do Sindicato Nacional da Indústria Naval. Em 2020, a disputa pelo cargo promete ser bem mais renhida. “Vamos ingressar na Justiça para impedir uma nova candidatura do Eduardo Eugênio. Vai ser uma guerra de liminares judiciais”, diz o pré-candidato da oposição Mauro Campos.
Mas a campanha nem começou, alianças e nomes estão sendo negociados, e o quadro está aberto ainda. A oposição também busca nomes mais agregadores que Campos. Questionado se é mesmo candidato pela nona vez, o presidente da Firjan, por meio da assessoria do órgão, despistou: “Uma eventual candidatura será avaliada no momento oportuno.”