Desde muito jovem, Fernanda Padilha, de 34 anos, tomou para si a tarefa de desvendar um mistério em sua família. Ela queria saber mais sobre a origem dos bisavós, Annie Symberlist e Henrique Luís Sims, pais de sua avó paterna, Rachelle Sims Padilha. Para tanto, vasculhou cartórios, fez contatos com supostos parentes ao redor do mundo e até recorreu à ajuda de um sistema de busca da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, o FamilySearch, que tem uma imensa base de dados genealógicos. Como informação certa, Padilha tinha apenas uma, transmitida por seu pai quando ela era criança em Santos, cidade onde nasceu: os bisavós paternos estavam enterrados em Cubatão. Curiosamente, em um cemitério destinado a prostitutas de origem judaica.
Ao pé da Serra do Mar, Cubatão é o único município desprovido de litoral na região chamada Baixada Santista. Devido a isso, nunca foi uma cidade atrativa para o turismo, mas interessou muito à indústria, por sua localização estratégica, entre o Porto de Santos e a capital paulista, a cerca de 59 km de distância. A partir de 1955, com a inauguração da Refinaria Presidente Bernardes, que já foi responsável pela produção de 50% dos petroquímicos nacionais (hoje é 8%), o município se tornou um indispensável polo industrial para o pretendido salto desenvolvimentista do país. Junto com as fábricas e refinarias, veio a poluição, numa escala tão alta que, na década de 1980, a cidade foi considerada pela onu como a mais poluída do mundo – problema que ainda se tenta amenizar.
Nas primeiras décadas do século XX, Cubatão não poderia supor esse futuro. Era uma localidade amena e discreta, parte da cidade de Santos, e foi lá que prostitutas, cafetinas e cafetões de origem judaica que atuavam na zona portuária decidiram criar sua última morada. Reunidos na Associação Beneficente e Religiosa Israelita, eles conseguiram em 1929 que a Câmara Municipal de Santos cedesse um terreno em Cubatão para o cemitério, que se manteve no local até 1952, quando a área foi ocupada pela Refinaria Presidente Bernardes. Todos os restos mortais foram, então, transladados para o cemitério atual, onde antes havia um sítio, o Cafezal, como descreve a professora Evania Martins Alves, autora da monografia O Cemitério Israelita em Cubatão – Um Capítulo da História dos Judeus na Baixada Santista, seu trabalho de conclusão do curso de história da UniSantos. No estudo, Alves esclarece que a associação formada pelas prostitutas buscava garantir serviços religiosos e enterro a seus associados, impedidos de serem sepultados nos cemitérios tradicionais da comunidade judaica.
A luta por um cemitério não foi exclusividade das prostitutas de Santos: fez sempre parte dos objetivos das associações criadas por trabalhadoras do sexo judaicas nas Américas, seja no Rio de Janeiro ou em São Paulo, seja em Nova York ou em Buenos Aires. “O mais bacana dessa história é como elas deram uma virada na vida e construíram sociedades de ajuda mútua para se manter judias”, diz a historiadora Beatriz Kushnir, autora de Baile de Máscaras – Mulheres Judias e Prostituição – As Polacas e Suas Associações de Ajuda Mútua. “Polacas” foi como ficaram vulgarmente conhecidas as mulheres de origem judaica vindas do Leste Europeu e que no Brasil trabalhavam como prostitutas.
A versão corrente diz que muitas dessas mulheres foram forçadas à prostituição por organizações criminosas judaicas, especialmente pela Zwi Migdal, que atuou até a década de 1930. Mas os estudos de Kushnir indicaram que nem todas as mulheres eram escravas brancas, pois muitas não foram traficadas e já se prostituíam na Europa. Além disso, algumas eram cafetinas, donas do negócio. Para a historiadora, as associações criadas por essas mulheres eram uma tentativa de manter vínculos culturais e espirituais, e provam que havia entre elas uma experiência de sociabilidade que ia muito além do negócio do meretrício e que envolvia afetos, relações familiares e religiosidade.
Em seu livro, Kushnir analisa principalmente as associações ou sociedades beneficentes que criaram o Cemitério Israelita de Inhaúma (conhecido como “Cemitério das Polacas”), fundado em 1916, na Zona Norte do Rio de Janeiro, e um determinado setor do Cemitério Santana (conhecido como “Cemitério Chora Menino”), criado em 1897 pela prefeitura no bairro de Santana, em São Paulo. Nos anos 1970, o setor judaico desse cemitério foi objeto de uma decisão escandalosa: a prefeitura resolveu desapropriá-lo e incorporar a área ao Cemitério de Santana em geral. Isso levou ao posterior traslado dos restos mortais das “polacas” para o Cemitério Israelita do Butantã, porém sem que os nomes delas fossem colocados nas lápides, nas quais se registraram apenas números. Mais tarde, nos anos 2000, devido a pressões da comunidade judaica, os nomes foram estampados nas lápides, com base em uma lista de sepultamentos descoberta no arquivo municipal.
Ao pesquisar sobre a necrópole de Cubatão, Kushnir encontrou a ata de uma Assembleia Geral Extraordinária da associação judaica formada em Santos, datada de 3 de dezembro de 1966. O ano é o mesmo do último sepultamento registrado no cemitério cubatense. Na ata, consta que os membros haviam decidido vender o imóvel da associação – na Rua Amador Bueno, 322, no Centro de Santos (hoje ocupado por uma marmoraria) –, “em virtude de a receita da sociedade estar bastante reduzida, por motivos e causas várias, notadamente pelo falecimento e mudança de domicílio de sócias”. Segundo Kushnir, por volta dos anos 1960, as sócias viviam o fim da associação em Santos, com a morte de seus membros e a impossibilidade de equilibrar receitas e despesas.
Desde 2010, o cemitério judaico faz parte do patrimônio histórico de Cubatão. Foi tombado pela prefeitura e encampado como patrimônio cultural pela Chevra Kadisha – Associação Cemitério Israelita de São Paulo, sociedade dedicada a executar a preparação dos corpos dos mortos de acordo com as leis judaicas. A entidade administra três cemitérios na Região Metropolitana de São Paulo – o da Vila Mariana (criado em 1919), o do Butantã (inaugurado em 1953) e o de Embu das Artes (fundado em 2001) – e o de Cubatão. As quatro necrópoles reúnem mais de 35 mil sepulturas.
A Chevra Kadisha faz a gestão compartilhada do cemitério de Cubatão com a prefeitura da cidade. A associação judaica zela pelas construções, enquanto a administração municipal cuida da limpeza e da jardinagem. Há 68 túmulos ali, seis deles sem identificação, com homens e mulheres enterrados em áreas separadas. Fernanda Padilha é a única pessoa conhecida cujos antepassados foram sepultados no local. Mas não é certo que seus bisavós eram judeus.
Diretor da Chevra Kadisha, o historiador Guilherme Faiguenboim, de 76 anos, só soube da existência do cemitério de Cubatão três décadas atrás. “Lembro que os pais falavam baixinho sobre o assunto das polacas, o pessoal se envergonhava desse passado, não queria que os outros soubessem, mas comecei a escutar e quis saber mais”, diz Faiguenboim, que dedicou à necrópole da Baixada Santista algumas páginas de seu livro Os Primeiros Judeus de São Paulo – Uma Breve História Contada Através do Cemitério Israelita de Vila Mariana, escrito com Paulo Valadares e Niels Andreas.
Sua primeira visita ao local foi em meados dos anos 1990, depois da publicação do estudo de Kushnir e de notícias na imprensa sobre a existência do cemitério. “Após o último sepultamento, caiu em esquecimento”, conta. Faiguenboim lembra que teve dificuldade para achar o lugar. Deparou com um espaço em ruínas, depredado, com lápides rachadas e tomado pelo mato.
Em 1997, foi entregue a primeira reforma do cemitério, feita durante a gestão do então prefeito de Cubatão Nei Eduardo Serra, com o apoio da Chevra Kadisha, então presidida por Marcos Zlotnik. Diante das dificuldades de manutenção constante, Faiguenboim propôs ao prefeito a transferência dos túmulos para o cemitério judaico de Embu das Artes. “Eles acharam que era melhor não transferir, pois o lugar deveria ser uma atração. Resolvemos reformar”, diz. “Não sei dizer o grau de perda da dimensão religiosa, mas é fato que virou algo diferente.” Uma nova reforma foi feita mais de dez anos depois da primeira.
Em seu livro, Faiguenboim lista os que foram sepultados ali, identificando 62 pessoas, sendo 49 mulheres e 13 homens, inclusive Annie Symberlist e Henrique Luis Sims, os bisavós de Fernanda Padilha. O historiador também transcreve as inscrições nas lápides. Supõe-se que os homens que estão no cemitério tenham sido cafetões ou maridos das cafetinas. “Elas eram discriminadas pelos judeus tradicionais, que tinham vergonha delas e dos cafetões, pois eram considerados impuros. Por isso tinham cemitério e sinagoga à parte. O único momento em que se misturavam aos demais judeus era nas apresentações de alguma companhia de teatro ídiche”, explica o historiador. Mas ele acredita que essa questão está hoje mais “pacificada” na comunidade judaica, principalmente nas novas gerações, e diminuiu o nível de tensão em relação a uma memória inconveniente. “Os judeus pediram perdão àquelas mulheres e aos seus descendentes pela discriminação que sofreram”, diz. “Há um esforço maior para entender o que acontecia naquele momento do passado.”
O Cemitério Israelita de Cubatão ocupa uma área de 853 m2, cercada por muros dentro do Cemitério Municipal de Cubatão, na Rua José Vicente, sem número. Para alcançar o local, é preciso atravessar longos corredores de túmulos desprovidos de vegetação. Quando se chega lá, a sensação é a de estar em um jardim, com uma bonita vista para o paredão da Serra do Mar e a Usina Hidrelétrica Henry Borden. Uma jaqueira de galhos amplos fornece sombra para uma dezena de lápides. É um local isolado e melancólico, que convida à reflexão sobre a finitude e o desaparecimento.
As mulheres estão todas enterradas na ala à esquerda do portão de entrada, com os túmulos organizados em seis fileiras. Os homens foram sepultados do lado direito. O primeiro túmulo em geral é o de Regina Finkelstein, falecida em 1924. Entre os homens, o primeiro é o de Wolf Schaverman, que morreu em 1927, como consta em sua lápide, onde também se lê a seguinte mensagem: “Saudade da Sociedade Beneficente Israelita de Santos.”. Pesquisas indicaram que os restos mortais de Finkelstein, Schaverman e de Anna Wilka, que morreram antes da criação da necrópole, estavam originalmente no Cemitério de Paquetá, em Santos, e foram trasladados para o de Cubatão em 1929, quando o local foi inaugurado, assim como a associação.
O túmulo mais recente é o de Haklia Brasnopolshy, falecida em junho de 1966. A maioria das sepulturas é de construção simples, de cimento e pedra, mas há também as sofisticadas, de granito ou mármore, com inscrições em iídiche ou português. Algumas lápides trazem a foto das sepultadas, mas poucas imagens estão em bom estado. A maior parte delas está desbotada ou quebrada.
O túmulo de Henrique Luís Sims (1884-1953) é bem modesto, mas o de sua mulher, Annie Symberlist, tem uma bela lápide de granito, o que indica que a família talvez tivesse mais recursos financeiros quando ela morreu do que na época do falecimento dele, ou que ela exercesse uma função proeminente na associação. Na lápide de Symberlist aparece o apelido Anita entre parênteses, a data de nascimento (15/08/1892) e a de morte (02/12/1964), além da declaração “Saudades de sua filha, genro e netos.” Pode não ser mera coincidência que a associação tenha fechado as portas um ano depois da morte dela.
Nos epitáfios de Cubatão, nota-se em geral a vontade de afirmar uma boa reputação e a existência de relações familiares, com várias mensagens fazendo referência aos filhos, assim como a vínculos com a própria associação beneficente. No túmulo de Liba de Queiroz, morta em 1948, aos 70 anos, a fotografia na lápide está bem visível e sobre a campa está escrito, em iídiche, que ela foi uma “mulher importante e honrada, filha de Aizik Greimer, nasceu em Odessa e morreu com bom nome”. Sua memória é saudada por “esposo, irmã e sobrinhos”.
O portão de acesso ao cemitério está sempre trancado. E quem tem a chave é o funcionário Welington Borges, que programa as visitas e é responsável pela gestão do espaço. Formado em história e técnico administrativo dedicado ao turismo, ele era presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Cubatão quando o cemitério foi tombado. Na sequência, assumiu a recém-criada Secretaria de Cultura e começou a promover o local e fazer visitas guiadas. Ele diz que essas visitas, que não são muito frequentes, aumentaram um pouco desde a terceira reforma, feita em 2019. A prefeitura tem feito a parte dela, cuidando da limpeza, e mantém contato com a Chevra Kadisha para que sejam executados os serviços de manutenção e restauro.
Entre os frequentadores mais assíduos do cemitério está o guia e professor de história Felipe Lichand Paulino, de 27 anos, judeu que vive no bairro paulistano do Bom Retiro e cujos avós vieram da Polônia. Colaborador do canal argentino Turismo Judaico, no YouTube, onde destaca locais que podem ser atrativos aos viajantes judeus, Paulino dedicou um de seus programas à Baixada Santista. Ele mostrou os destinos mais tradicionais na região, como as duas sinagogas de Santos, a Beit Jacob e a Beit Sion, e também apresentou o Cemitério Israelita de Cubatão, despertando a curiosidade de algumas pessoas.
O público-alvo de seus roteiros turísticos são os viajantes judeus estrangeiros que descem de navios de cruzeiro e passam o dia em Santos. Mas o assunto também desperta a atenção de moradores de São Paulo que querem saber mais da história da comunidade judaica na Baixada Santista. Aos turistas que leva ao cemitério, Paulino costuma explicar que as pessoas enterradas ali eram imigrantes do Leste Europeu, vieram para o Brasil na virada do século xix para o xx, fugindo da extrema pobreza em seus países, e por isso mesmo foram impelidas a trabalhar na prostituição, às vezes aliciadas por máfias que atuavam na Europa. Ele sempre ressalta que muitas dessas mulheres souberam dar a volta por cima, reagindo às pressões sociais. “A identidade delas era tão forte que, mesmo excluídas, lutaram para fazer seu próprio cemitério. O poder simbólico disso é muito grande”, diz Paulino, que só se inteirou sobre a história das polacas alguns anos atrás. “A comunidade judaica não fala disso, e algumas historiadoras, por questões de gênero, passaram a se dedicar ao assunto.”
Entre os presentes na reabertura do cemitério, em julho de 2019, estavam o presidente da Chevra Kadisha, Mauro Zaitz, o rabino Shie Pasternak e o historiador Nachman Falbel, professor titular da usp, que dedicou um capítulo de seu livro Judeus no Brasil – Estudos e Notas às polacas. O historiador Guilherme Faiguenboim também estava no local. Na ocasião, Falbel esclareceu que a situação de extrema miséria dos imigrantes do Leste Europeu foi um fator decisivo para tornar as mulheres vítimas de tráfico e levá-las à prostituição no Brasil. O rabino, em nome da comunidade israelita, pediu perdão às prostitutas e destacou “que só tem futuro quem reconhece os erros do passado”.
A responsável pela última reforma foi a restauradora Maria Salete Otama Onady, de 72 anos, que também cuidou da manutenção do Cemitério Israelita da Vila Mariana, criado entre os anos 1920 e 1930. Ela é viúva do primeiro restaurador da necrópole de Cubatão, Stefan Onady, técnico húngaro que durante cinquenta anos atuou na manutenção do Cemitério Israelita do Butantã. Maria Salete não é de origem judaica, e seu marido tampouco era. “Quando ele pegou a tarefa de recuperação nos anos 1990, o cemitério de Cubatão estava totalmente abandonado, tinha plantação de mandioca lá dentro, galinheiro, 90% das sepulturas estavam violadas. Conseguiu deixar os túmulos bonitinhos e recuperar todos os letreiros”, diz ela, que está aposentada, mas ainda presta serviços para a Chevra Kadisha.
Maria Salete conta que a ideia de restaurar o cemitério de Cubatão surgiu depois de jornais apontarem o estado de abandono em que se encontrava. “Na ocasião, a Chevra Kadisha assumiu totalmente a responsabilidade pela recuperação porque a Sociedade Israelita de Santos não quis colaborar.” Os cuidados com o local precisam ser frequentes. “O problema é que, em razão das chuvas, da maresia e do calor sufocante de Cubatão, as inscrições somem muito rápido.” A restauradora diz que a Chevra Kadisha a procurou para uma nova reforma, a quarta, o que ela está ansiosa para fazer. “Os letreiros em hebraico, só eu sei fazer, e é a coisa que toma mais tempo. Às vezes, numa lápide, só resta uma perninha da letra, e eu consigo descobrir qual é.”
Em 2019, quando soube que haveria um evento de reinauguração do Cemitério Israelita de Cubatão, Fernanda Padilha resolveu comparecer e conferir os túmulos de seus bisavôs: Henrique Luís Sims, morto aos 69 anos de idade, e Annie Symberlist, aos 72 anos. “Foi uma cerimônia muito bonita com fotos e discursos comoventes. Conversei com muita gente, e todos se surpreendiam com o fato de existir uma parente direta de pessoas enterradas ali”, recorda Padilha. Ela se emocionou ao ver o túmulo modesto do bisavô, mas com a seguinte inscrição: “Saudades de sua esposa e filha”. E notou a placa dourada reluzente na lápide de granito da bisavó.
Padilha é formada em informática pela Universidade Paulista (Unip) e atualmente vive com o marido em Lisboa, onde trabalha como vendedora de uma loja de roupas. Em sua busca da origem familiar, ela descobriu que, em 10 de março de 1927, a bisavó deixou o porto de Southampton, na Inglaterra, no navio Orania, com destino ao Rio de Janeiro. A vendedora recuperou também um documento de uma viagem do bisavô de Buenos Aires para o Rio, no navio Almanzora, em julho de 1927. Há uma possível coincidência nos bilhetes de viagem de Henrique e Annie: o endereço residencial que aparece é o mesmo, a Casimir Road, nº 13, em Londres. Mas isso não pode ser confirmado porque o bilhete está cortado ao meio. Padilha, porém, está convencida de que os dois se conheciam antes de chegar ao Brasil e moraram na mesma casa na capital inglesa.
Pelo Family Search, ela pode verificar que os dois se casaram na Inglaterra. Annie Dorer (o nome de solteira da bisavó) contraiu matrimônio no dia 11 de abril de 1916, em Londres, com Louis Symberlist, cujo sobrenome ela adotou. No resumo de vida que aparece no sistema de busca dos mórmons, consta que ele nasceu em Londres e era filho de Abraham Symberlist e Dorah Cymbelst. Entretanto, ao vir para o Brasil, Louis Symberlist adotou o nome Henrique Luís Sims. A primeira referência a esse novo nome até agora encontrada está no bilhete da viagem de Buenos Aires. O mesmo nome aparece em todos os documentos posteriores.
No Brasil, é provável que os bisavós de Padilha tenham vivido em São Paulo, pois a filha deles, Rachelle Sims, foi registrada nessa cidade, em 1929, como consta na certidão de nascimento. Embora tenha chegado ao Rio em 1927, a bisavó só recebeu autorização de residência de estrangeiro em 1940, em Santos, mas sem qualquer número de identificação, o que indica alguma precariedade em sua situação legal de imigrante. No atestado de óbito, o número da carteira de identidade consta como “ignorado”.
Sobre a nacionalidade dos bisavós, os documentos encontrados por ela no Brasil divergem. Ora eles aparecem registrados como ingleses, ora como russos ou poloneses. Embora ainda não haja provas, Padilha suspeita que os dois sejam judeus. Ou, ao menos, a bisavó, pois o seu registro de óbito diz que ela nasceu em Varsóvia, na Polônia. No mesmo documento, aparecem os nomes dos pais dela, Moyses Darer e Rachel Darer. Padilha foi atrás de informações sobre os Darer e verificou que o nome correto era Dorer. Ela atribui a diferença a um erro de grafia no Brasil. O trisavô materno ela já sabe que está sepultado em Varsóvia, fez contato com o cemitério e obteve uma foto da lápide. Com a ajuda de primas distantes, descendentes da irmã de Henrique Luis, Norah, também tenta encontrar documentos do censo de Londres para avançar mais na sua pesquisa.
Padilha acredita que o sobrenome Sims, adotado pelo bisavô, seja inventado. Segundo algumas fontes, o sobrenome era usado na Escócia, na Idade Média, sendo provavelmente uma abreviação dos nomes bíblicos Simon ou Simeão. Mas certamente Sims não é um sobrenome judeu nem consta na árvore genealógica de Henrique Luis. O sobrenome Symberlist aparece, segundo ela, com algumas variações na Inglaterra e nos Estados Unidos. Até agora não foi possível explicar os motivos que levaram o avô a mudar a identidade na travessia do Atlântico, mas pode ter sido por causa de atividades associadas à prostituição. Ao manter o sobrenome Symberlist com Annie, que o adquiriu no casamento, Henrique Luis mostrou, porém, que não quis esconder suas origens completamente, deixando pistas para a posteridade.
A bisneta soube que a Inglaterra era uma escala regular para prostitutas e cafetões que vinham do Leste Europeu em direção à América do Sul, principalmente para Buenos Aires, e aos Estados Unidos. O mais sugestivo no levantamento que ela fez, porém, é que o endereço do bisavô na ocasião de sua morte, em 1953 – na Rua Amador Bueno, em Santos – coincide com o da associação beneficente, tal como registrado na última ata, de 1966, que recomenda a venda do imóvel. Não foi descoberto qualquer documento que vincule o nome de Annie ou o de Henrique Luís à associação, mas a coincidência de endereço sugere que eles tiveram algum protagonismo na sociedade.
Padilha tem uma hipótese a respeito disso: os seus bisavós teriam exercido uma posição de poder na estrutura da associação e possivelmente no próprio prostíbulo, tendo em vista a herança que deixaram, que ajudou até agora no sustento de três gerações. As associações, sociedades legalmente constituídas e onde se prestavam serviços religiosos, e os prostíbulos não ocupavam o mesmo endereço. “Meu pai e meu tio negam a história da prostituição, parece que eles têm vergonha do que aconteceu”, afirma Padilha. “Na versão familiar, meus bisavós vieram com dinheiro da Europa. Não tem discussão.” Ninguém na família de Padilha quis acompanhá-la nas pesquisas sobre o passado dos bisavós, mas também não houve qualquer crítica à sua pesquisa.
Quando Rachelle, a filha de Annie e Henrique, nasceu, ela tinha 37 anos e ele, 45, idades relativamente avançadas na época. A avó nunca reclamou de problemas na infância, o que leva Padilha a crer que seus bisavós formaram um casal estável e sem problemas financeiros, mesmo que tenham vivido do meretrício. Ela também conta que seu pai se recorda de ter participado de atividades religiosas judaicas quando era muito pequeno – o que indica que sua avó talvez seguisse o judaísmo, antes de se tornar mórmon.
Na reinauguração do Cemitério Israelita de Cubatão, Padilha teve a oportunidade de conversar com pesquisadores, como a antropóloga Paula Janovitch, que estuda a cultura e a história de São Paulo, inclusive assuntos relacionados à prostituição e aos direitos das mulheres. A antropóloga conta que, nos trinta anos em que se debruça sobre esses temas, deparou com várias pessoas que se diziam descendentes dessas mulheres, mas nunca conseguiram provar, algo que Padilha conseguiu. “Fernanda avançou bastante em sua pesquisa sobre as origens familiares e teve condições de achar documentos reais que em poucas situações podem ser achados. Em busca do passado dela, conseguiu chegar num lugar incrível”, diz Janovitch. Sobre o passado judeu, entretanto, as lacunas são muito grandes para Padilha resolver. “Os documentos não conseguem comprovar o judaísmo dos bisavós. Eles não se declaram ou são declarados judeus em nenhum momento e todos os nomes a gente têm que relativizar. Não consigo ver qualquer pista que vá nessa direção.”
Para Padilha, que seguiu a religião da avó e se tornou mórmon, descobrir o caminho que seus bisavós trilharam é um objetivo fundamental de vida. Logo após visitar o cemitério, ela e o marido venderam tudo que tinham e se mudaram para a Europa. “Minha meta é recuperar o sentido da viagem dos meus ancestrais”, diz ela, que ainda planeja uma viagem à Polônia, onde acredita que estão suas raízes familiares. “Estou esperando uma folga do trabalho para ir até lá. Mas já estou satisfeita só de saber alguns dos lugares por onde eles andaram e algo do que realizaram. Isso me deu muito orgulho. Que luta, que escolhas eles fizeram, não?”