A fila de 2 km de fãs serpenteava pelas ruas da Vila Belmiro ao meio-dia de uma segunda-feira de sol escaldante. Era gente que queria ver Pelé pela última vez. Cada um trazia um motivo para reverenciar aquele que já foi o cidadão mais conhecido do mundo. Saulo Soares, de 36 anos, era o primeiro da fila do velório já na tarde de domingo, quando começaram a ser colocados os gradis. Veio de Juquiá, no Vale do Ribeira, na sexta-feira. Dormiu em frente à estátua de Zito, outro ídolo do Santos, e na porta do Memorial das Conquistas do Santos no dia seguinte.
Não era a primeira vez que Soares teria um breve encontro com Pelé, dono de uma fazenda na sua Juquiá. “Ele inaugurou um Centro Olímpico lá quando eu tinha 14 anos”, contou. “Saí correndo atrás do carro em que ele estava para tentar um autógrafo. Corri bastante pelas ruas, mas não deu.” Duas horas depois de passar ao lado do caixão na área do velório, ele estava de novo próximo de conseguir uma nova passagem. “Eu vou quantas vezes for possível.”
Pelé morreu na quinta-feira, dia 29, em consequência das complicações de um câncer de cólon. Em Santos, onde viveu boa parte da vida, não é difícil encontrar alguém que não tenha tido pelo menos um encontro o Rei. Ele dava um autógrafo e fazia foto, mas logo evaporava. Em ambientes mais sossegados, gostava de conversar. Sérgio Carranca Neto, comerciante de 38 anos, mora na Vila Belmiro e conheceu Pelé aos 10 anos. “Meu avô era preparador físico e fez um trabalho com ele, já ex-atleta, que iria disputar um jogo em sua homenagem, o jogo em que ele completaria 50 anos de idade.” Não foram poucas as vezes em que ele parava uma das suas Mercedes na Rua José de Alencar, onde Carranca morava, para falar com o avô do comerciante. Depois, ficava dando autógrafos para os meninos da rua. “A última dessas visitas acho que foi em 1996 e, depois, só víamos o carro dele passando”, puxa da memória.
Sob o sol da fila, também vindo de Juquiá, o caminhoneiro Luiz Andrada de Macedo, de 69 anos, encontrou Pelé num local inusitado. Era um jovem na década de 1970, e um amigo da família o levou até onde Pelé negociava pessoalmente parte do seu rebanho. Sim, Pelé estava vendendo gado, num dos seus muitos negócios malsucedidos. “Ele foi simpático e deu um autógrafo, como sempre”, lembra Luiz que, depois, só via o Pelé fazendeiro a cortar a pequena cidade de carro.
Pelo velório passaram o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, o ministro do STF, Gilmar Mendes, o prefeito de Santos, Rogério Santos, os presidentes da Fifa, Gianni Infantino, e da Conmebol, Alejandro Dominguez. Os portões foram abertos por volta das 11 horas. Dos alto-falantes do estádio, em volume baixo, como se espera em um velório, saía a voz de Pelé, a cantar um samba calmo. “A vida me ensinou que o prazer dessa glória e desse triunfo é um instante de ilusão, mas que o amor do povo não cabe na razão, é para toda a vida, ilumina o coração.”
Quem teve suas histórias, e muitas, com Pelé é o santista de time e de nascimento José Roberto Torero. Ainda menino, o viu pela primeira vez numa das suas Mercedes, de cor azul. Torero recorda que estava no carro ao lado, com o pai, e o viu por instantes. Pouco tempo depois, o Baleia, ônibus do time do Santos, foi trocar os pneus na loja do pai dele, que chamou o filho para ver a novidade. “Sentei em todos os bancos do ônibus para ter a certeza de que sentaria no banco em que Pelé já tinha sentado.”
Mal sabia o futuro escritor que a bronquite o levaria à Fisioterapia Pelé, no bairro da Ponta da Praia. Claro, era mais um dos negócios do Rei do Futebol, que sempre estava passando por lá. “Eu o via, mas não conseguia, por timidez, falar com ele.”
Décadas depois, Torero reencontrou o ídolo. Ele roteirizou o curta-metragem Uma História de Futebol, de 1998, que chegou a concorrer a um Oscar e que retrata a infância de Pelé. “Quando ele assistiu, chorou”, conta Torero. Pelé era de choro fácil.
Cinco anos depois, o destino de Torero cruzou novamente com o de Pelé. Dessa vez num contato mais estreito. Era para roteirizar o filme Pelé Eterno, de 2004. Foram muitas reuniões, entrevistas. “Estive na casa da mãe dele, dona Celeste, também muito simpática, foram diversos contatos.” Torero conta que, em todos os locais que percorreu com Pelé, ficou impressionado com a simpatia e humildade com que ele tratava as pessoas e a paciência para atender a todos. “Você pode ver as fotos de Pelé por todos esses anos e não vê nenhuma dele estressado, olhando feio para as pessoas ou irritado com o assédio”, diz Torero.
Após a conclusão de Pelé Eterno, uma sessão foi preparada para que Pelé assistisse ao filme com o presidente Lula, à época em seu primeiro mandato. Torero foi convidado e jantou com os dois. “Lula e Pelé conversaram bastante, mas eu estava meio atordoado com toda a situação e prestei atenção a poucas coisas. Lembro que os dois falaram que foram engraxates quando crianças e que a família tinha que ser valorizada para que as coisas melhorassem no país”, afirma Torero.
O presidente Lula compareceu ao velório na Vila Belmiro nesta terça-feira. Depois, o velório foi fechado ao público. O cortejo fúnebre saiu pelas ruas de Santos, percorrendo a orla de Santos até o Canal 6 e passando pela casa de dona Celeste, a mãe de Pelé, que recentemente completou 100 anos. O roteiro cumpre algo que Pelé sempre dizia em suas entrevistas em Santos e, para muitos, era uma desculpa para fugir do assédio do público e dos jornalistas. “Gente, me desculpe, mas eu tenho que ir. Preciso passar na casa da minha mãe. Ela está me esperando.” E ninguém ousava segurar por mais tempo o Rei do Futebol. “Para o Pelé, eram os pais (Celeste e Dondinho, que morreu há 26 anos) e Deus. Muitas vezes eu o acompanhava até a casa de dona Celeste”, conta, pouco antes de entrar no velório, o ex-jogador Manoel Maria, para muitos o maior amigo de Pelé e que teve acesso ao ídolo em seus dias finais no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. “Ele cumpriu a promessa.”